No dia 19 de abril de 2017, sob a justificativa de ter ultrapassado os limites da liberdade de expressão ao não ter alicerçado seu direito à crítica a alguma ideia construtiva para o leitor ou quem presencia a crítica (retirado da sentença), Eleonora Menicucci, ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres no governo Dilma, foi condenada a pagar R$ 10.000,00 a título de danos morais à Alexandre Frota, ator, diretor, ex-modelo, ex-comediante, ex-jogador de futebol americano, apresentador, empresário e ex-participante da indústria pornográfica.
O contexto do processo é dotado de três momentos essenciais: (1) em maio de 2014, Alexandre Frota ao participar de um programa de entrevistas para divulgar um “espetáculo de humor biográfico” (palavras utilizadas por Alexandre Frota – clique aqui para ver o vídeo na íntegra), tentou arrancar risadas da audiência ao narrar de forma detalhada como supostamente obteve sexo sem consentimento, com base em muita violência, de uma mulher e mãe de santo. Ficção ou não, piada ou não, o nome dessa ação no Brasil é estupro, artigo 213 do Código Penal. (2) Em agosto de 2015, a promotora e coordenadora do Grupo de Enfrentamento à Violência Doméstica (GEVID) do Ministério Público de São Paulo, Silvia Chakian instaurou um procedimento investigativo por entender que a narrativa de Frota evidencia intolerância religiosa e preconceito, além de incitar estupro. Para a promotora “argumentos de que os fatos não ocorreram, que o episódio é fictício e que faz parte de uma stand-up comedy ou de uma piada não convencem ou minimizam a responsabilidade criminal nesse caso, que será apurado pelo Ministério Público”[1]. Entretanto, para o promotor Paulo Sérgio de Castilho foi necessário arquivar[2] a acusação contra Alexandre Frota, pois configurar esse fato como crime poderia configurar cerceamento à liberdade de expressão. (3) E finalmente, em 2016, Alexandre Frota se reuniu com o ministro da educação, Mendonça Filho, para falar sobre o projeto educacional “Escola Sem Partido”. Menicucci, por sua vez, criticou o encontro e disse, na ocasião, que Frota “não só assumiu ter estuprado uma mulher, mas também faz apologia ao estupro”.
Na sentença de duas páginas e meia, a juíza Juliana Nobre Correia revelou que os limites do Direito à liberdade de expressão foram violados, vez que Menicucci atacou Alexandre Frota, com referência a situação de estupro, em contexto que envolvia simples audiência com o Ministro da Educação para tratar de projeto relacionado à educação (retirado da sentença). A fundamentação e a argumentação da decisão concentraram-se apenas em reproduzir mecanicamente, através do livro do ex-ministro da Justiça e hoje ministro do STF Alexandre de Moraes, que a liberdade de expressão é um direito constitucional, porém os excessos porventura ocorridos devem ser passíveis de exame do Poder Judiciário, com consequente reparabilidade frente ao dano sofrido.
A operação jurídica realizada na análise deste caso concreto parece ignorar não só o contexto fatídico da fala de Eleonora Menicucci, como também a caracterização do que seria a liberdade de expressão e seus limites – pelo menos aqueles utilizados para fundamentar a sentença. Nota-se que o discurso de Menicucci em vez de ser tratado como uma denúncia da naturalização da cultura do estupro, do machismo e da intolerância religiosa na sociedade brasileira, é reduzido a um ataque à figura de um suposto comediante que faz das várias formas de violência contra as mulheres piadas públicas – piadas estas, que segundo ele, repito, são baseadas em histórias reais fatos de sua vida (basta ver no vídeo).
Enquanto o discurso ofensivo, em formato de piada, de Alexandre Frota é protegido sob a ameaça de cerceamento da liberdade de expressão, o discurso crítico, em formato de denúncia, de Eleonora Menicucci é considerado como um comentário que ultrapassa a livre manifestação de ideias, pois não tem como alicerce uma ideia construtiva (retirado da sentença). Mas que ideia construtiva seria essa?
Ressalte-se que estabelecer limites e condições genéricas à liberdade de expressão são formas históricas de dissimulação de arbitrariedades na restrição de liberdades individuais e sociais, bem como na imposição de censuras e discursos oficiais de matizes variadas[3]. Deslocando a discussão para um território menos jurídico, é interessante observar como a suposta fragilidade da argumentação e da fundamentação e a falta de objetividade da sentença, somados a ideia de que a definição da liberdade de expressão é algo universal, pleno e absoluto serve de forma extremamente conveniente enquanto instrumento de reforço dos privilégios de setores dominantes da nossa sociedade. A suposta lacuna legal e jurídica é utilizada, penetrada e mobilizada para operar na prática como um mecanismo apto a permitir alguns, tornando-os possíveis ou inventando-os como privilégios restritos a determinados setores dominantes, vetando e isolando qualquer “ameaça” a direitos que parecem ter destinatários exclusivos.
Para além da discussão téorica-jurídica que exalta como o pleno exercício da liberdade de expressão constitui um interesse público em si mesmo, vez que a manifestação individual na democracia pluralista serve de fundamento para o exercício de outras liberdades e direitos fundamentais[4], é possível observar como elementos aparentemente neutros e que não precisam de muito explicação como no caso concreto da liberdade de expressão – devido a suposta característica de transcendência estabelecida em manuais de Direito – não hesitam em proclamar sua imperiosa dissimetria.
Se tal é a situação, a sentença, ao aparentemente apresentar argumentos e fundamentações frágeis, não erra seu objetivo. Ao contrário, ela o atinge ao colocar em plena luz do dia, pelo rito oficial dos meios jurídicos, o desenho visível e irredutível dos limites de uma liberdade de expressão útil que isola e sublinha os privilégios de uns e massacra outros. Ela contribui para (re) produzir desiquilíbrios duráveis na sociedade brasileira que a muito tempo oferece um vasto cardápio de desigualdades pessoais por cor, entre sexos, classes e regiões[5]. E tudo isso chancelado pela figura simbólica e representativa de uma mulher.
De forma quase caricata, é possível dizer, que na República Democrática de Direito brasileira, governada por maridos, campeã nos rankings mundiais da taxa de homicídios de mulheres (destaque para o homicídio de mulheres negras)[6] e da baixa representação política de mulheres[7], homens poderosos (ou não) podem discursar livremente que mulheres merecem ou não ser estupradas ou ainda podem transformar o estupro de mulheres em uma piada. Na mesma República, em que a verba para atendimento à mulheres em situação de violência foi reduzida em 61%, mulheres não podem repudiar a participação de homens que fazem piadas sobre estupro e intolerância religiosa em assuntos de políticas públicas sem que o limite da liberdade de expressão lhes seja empurrado goela abaixo.
[1] Disponível em: http://agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/alexandre-frota-presta-depoimento-nesta-quinta-sobre-relato-de-estupro-de-mae-de-santo/ Acessado em: 09/05/2017.
[2] Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-out-30/mp-arquiva-acusacao-alexandre-frota-apologia-estupro . Acessado em 09/05/2017.
[3] Cf. MONTERO, Javier Terrón. La Libertad de exprésion y Constitución, 1980, apud Porfírio Barroso e Maria del Mar Lopes Tavalera, La libertad de exprésion y sua limitaciones constitucionales, 1998.
[4] De Farias, Edilsom Pereira, Colisão de direitos: a honra. a intimidade a vida privada e a imagem versus
a liberdade de expressão e informação, 2000.
[5] DOS SANTOS, Wanderley Guilherme. Horizonte do desejo: instabilidade, fracasso coletivo e inércia social. Rio de Janeiro: FGV, 2007.
[6] Cf. FLACSO. Mapa da Violência 2015: Homicídios de Mulheres no Brasil. 2015. Disponível em: < http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossie/pesquisas/mapa-da-violencia-2015-homicidio-de-mulheres-no-brasil-flacsoopas-omsonu-mulheresspm-2015/> Acessado em: 10/05/2017.
[7] Disponível em: < https://nacoesunidas.org/brasil-fica-em-167o-lugar-em-ranking-de-participacao-de-mulheres-no-executivo-alerta-onu/> Acessado em: 10/05/2017.
* Julia Gitirana, colunista da Revista Prosa Verso e Arte. Formada em Direito pela PUC-Rio, especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC, Mestre em Direito pela PUC-Rio, Doutoranda em Políticas Públicas pela UFPR e apaixonada por filosofia.
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