“Em Rûmî passamos da metafísica do ser para a metafísica do não-ser. […] E os místicos morrem de amor. A vida e a morte iluminam as águas do silêncio. Do silêncio do não-ser. Da fruição divina. O Tudo e o Nada. Desabitar-se para habitarse.
Sair para não-sair. Morrer pra não-morrer. Tal a dialética dos místicos. Seguir da névoa ao resplendor da Lua. Das águas turvas para as águas claras. E assim, para os sunitas, as águas deste Mundo movem-se, entre fluxo e refluxo, criação e destruição.”
– Marco Lucchesi, em “A Sombra do Amado: Poemas de Rûmî”. [tradução Marco Lucchesi e Luciana Persice]. Rio de Janeiro: Fissus, 2000, p. 13-14.
“Rûmî buscava uma imagem viva do divino e estava apto a contemplá-la. Shams colocou-se no lugar do Amado, o que permitiu ao Rûmî refletir e realizar-se nele. Sol-espelho, era a um só tempo o Sol da verdade (Shams ul-Haqq como é chamado no poema “A lua de Tabriz”, que abre a presente antologia) e o espelho polido no qual Rûmî pôde reconhecer seu próprio sol em pleno brilho”
– José Jorge de Carvalho, em “Poemas Místicos: Divan de Shams de Tabriz”. Jalâl ad-Din Rûmî. [seleção, introdução e tradução José Jorge de Carvalho]. São Paulo: Attar Editorial, 1996, p. 27.
Sou artista…
Sou artista, pintor, desenho imagens,
nenhuma se compara a Teu fulgor.
Sei criar mil fantasmas, dar-lhes vida,
mas se vejo Teu rosto, dou-lhes fogo.
Serves Teu vinho ao ébrio na taberna,
e abates toda a casa que construo.
Nossa alma sem Ti se dissolve: água na água,
vinho no vinho: sinto Teu perfume.
Cada gota de meu sangue te implora:
“Faz-me Teu par e dá-me Tua cor.”
Sofre minha alma na casa de argila:
“Entra, Amado, senão hei de partir!”
– Jalâl ad-Din Rûmî, em “A flauta e a Lua: poemas de Rûmî”. [tradução Marco Lucchesi; fotos de Riccardo Zipoli]. Edição bilíngue. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2016.
§
Mostra teu rosto de chamas,
Amado, pois me consumo
de alegria; e tu perguntas:
“Até quando irás arder?”
Impões a regra do vinho;
como podem se acalmar
nesse estado desmedido
o pensamento, a alma frágil?
Sopras incansavelmente
dentro de teu junco da alma.
Mas se tanto te arrebatas,
por que culpas esse junco?
Como cobrir teu fulgor,
Se houvesse mais de mil véus?
Tantos véus não bastariam
para eclipsar o teu rosto.
Ah, esse amor tão singelo,
que as aparências iludem!
Gira em torno dessa chama,
ó chacal, ó assassino!
Se tu foste sábio um dia,
como podes estar louco?
E se ao amor não pertences,
como vives tu com ele?
Os átomos de meu corpo
vão silenciosos no templo.
E por detrás do silêncio,
ouvem-se gritos dispersos.
Eu perguntei a Shams de Tabriz:
“Quem são estes que guardam silêncio?”
E ele: “Quando for chegada a hora,
hão de se revelar aos teus olhos.”
– Jalâl ad-Din Rûmî, em “A Sombra do Amado: Poemas de Rûmî”. [tradução Marco Lucchesi e Luciana Persice]. Rio de Janeiro: Fissus, 2000.
§
EU e TU
Sentados no palácio duas figuras,
São dois seres, uma alma, tu e eu.
Um canto radioso move os pássaros
Quando entramos no jardim, tu e eu!
Os astros já não dançam, e contemplam
a lua que formamos, tu e eu!
Enlaçados no amor, sem tu nem eu,
Livres de palavras vãs, tu e eu!
Bebem as aves do céu a água doce
De nosso amor, e rimos tu e eu!
Estranha maravilha estarmos juntos:
Estou no Iraque e estás no khorasan
– Jalâl ad-Din Rûmî, em “A Sombra do Amado: Poemas de Rûmî”. [tradução Marco Lucchesi e Luciana Persice]. Rio de Janeiro: Fissus, 2000.
§
A lua de tabriz
Com a maré da manhã surgiu no céu uma lua.
De lá desceu e fitou-me.
Como o falcão que arrebata o pássaro,
Essa lua agarrou-me e cruzou o céu.
Quando olhei para mim, já não me vi:
Naquela lua meu corpo se tornara,
Por graça, sutil como a alma.
Viajei então em estado de alma
E nada mais vi senão a lua.
Até que o segredo do saber divino
Me foi por inteiro revelado:
As nove esferas celestes fundiram-se na lua
E o vaso do meu ser dissolveu-se inteiro no mar.
Quando o mar quebrou-se em ondas,
A sabedoria divina lançou sua voz ao longe.
Assim tudo ocorreu, assim tudo foi feito.
Logo o mar inundou-se de espumas,
E cada gota de espuma
Tomou forma e c.orpo.
Ao receber o chamado do mar,
Cada corpo de espuma se desfez
E tornou-se espírito no oceano.
Sem a majestade de Shams de Tabriz
Não se poderia contemplar a lua.
Nem tornar-se mar
– Jalâl ad-Din Rûmî, em “Poemas Místicos: Divan de Shams de Tabriz”. [seleção, introdução e tradução José Jorge de Carvalho]. São Paulo: Attar Editorial, 1996.
§
Encontro de almas
Vem,
Conversemos através da alma.
Revelemos o que é secreto aos olhos e ouvidos.
Sem exibir os dentes,
Sorri comigo, como um botão de rosa.
Entendamo-nos pelos pensamentos,
Sem língua, sem lábios.
Sem abrir a boca,
Contemo-nos todos os segredos do mundo,
Como faria o intelecto divino.
Fujamos dos incrédulos
Que só são capazes de entender
Se escutam palavras e vêem rostos.
Ninguém fala para si mesmo em voz alta.
Já que todos somos um,
Falemos desse outro modo.
Como podes dizer à tua mão: “toca”,
Se todas as mãos são uma?
Vem, conversemos assim.
Os pés e as mãos conhecem o desejo da alma.
Fechemos pois a boca e conversemos através da alma.
Só a alma conhece destino de tudo, passo a passo.
Vem, se te interessas, posso mostrar-te
– Jalâl ad-Din Rûmî, em “Poemas Místicos: Divan de Shams de Tabriz”. [seleção, introdução e tradução José Jorge de Carvalho]. São Paulo: Attar Editorial, 1996.
§
A evolução da forma
Toda forma que vês
tem seu arquétipo no mundo sem-lugar.
Se a forma esvanece, não importa,
permanece o original.
As belas figuras que viste,
as sábias palavras que escutaste,
não te entristeças se pereceram.
Enquanto a fonte é abundante,
o rio dá água sem cessar.
Por que te lamentas se nenhum dos dois se detém?
A alma é a fonte,
e as coisas criadas, os rios.
Enquanto a fonte jorra, correm os rios.
Tira da cabeça todo o pesar
e sorve aos borbotões a água deste rio.
Que a água não seca, ela não tem fim.
Desde que chegaste ao mundo do ser,
uma escada foi posta diante de ti, para que escapasses.
Primeiro, foste mineral;
depois, te tornaste planta,
e mais tarde, animal.
Como pode ser isto segredo para ti? [1]
Finalmente foste feito homem,
com conhecimento, razão e fé.
Contempla teu corpo – um punhado de pó –
vê quão perfeito se tornou!
Quando tiveres cumprido tua jornada,
decerto hás de regressar como anjo;
depois disso, terás terminado de vez com a terra,
e tua estação há de ser o céu.
Passa de novo pela vida angelical,
entra naquele oceano,
e que tua gota se torne mar,
cem vezes maior que o Mar de Oman. [2]
Abandona este filho que chamas corpo
e diz sempre “Um” com toda a alma.
Se teu corpo envelhece, que importa?
Ainda é fresca tua alma.
– Jalâl ad-Din Rûmî, em “Poemas Místicos: Divan de Shams de Tabriz”. [seleção, introdução e tradução José Jorge de Carvalho]. São Paulo: Attar Editorial, 1996.
[1] Lembrando que isto foi dito em pleno século XIII, em meio ao islamismo.
[2] Na simbologia persa, estava associado ao Oceano Divino.
§
O mundo além das palavras
Dentro deste mundo há outro mundo
impermeável às palavras.
Nele, nem a vida teme a morte,
nem a primavera dá lugar ao outono.
Histórias e lendas surgem dos tetos e paredes,
até mesmo as rochas e árvores exalam poesia.
Aqui, a coruja transforma-se em pavão,
o lobo, em belo pastor.
Para mudar a paisagem,
basta mudar o que sentes;
E se queres passear por esses lugares,
basta expressar o desejo.
Fixa o olhar no deserto de espinhos.
– Já é agora um jardim florido!
Vês aquele bloco de pedra no chão?
– Já se move e dele surge a mina de rubis!
Lava tuas mãos e teu rosto
nas águas deste lugar,
que aqui te preparam um fausto banquete.
Aqui, todo o ser gera um anjo;
e quando me veem subindo aos céus
os cadáveres retornam à vida.
Decerto vistes as árvores crescendo da terra,
mas quem há de ter visto o nascimento do Paraíso?
Viste também as águas dos mares e dos rios,
mas quem há de ter visto nascer
de uma única gota d’água
uma centúria de guerreiros?
Quem haveria de imaginar essa morada,
esse céu, esse jardim do paraíso?
Tu, que lês este poema, traduze-o.
Diz a todos o que aprendeste
sobre este lugar.
– Jalâl ad-Din Rûmî, em “Poemas Místicos: Divan de Shams de Tabriz”. [seleção, introdução e tradução José Jorge de Carvalho]. São Paulo: Attar Editorial, 1996.
§
Eu sou tu
Sou as partículas de pó à luz do sol,
sou o círculo solar.
Ao pó digo: “não te movas”,
e ao sol: “segue girando”.
Sou a névoa da manhã
e a brisa da tarde.
Sou o vento da copa das árvores
e as ondas contra o penhasco.
Sou o mastro, o leme, o timoneiro e a quilha
e o recife de coral em que naufragam as embarcações.
Sou a árvore em cujo galho tagarela o papagaio,
sou silêncio e pensamento, e também todas as vozes.
Sou o ar pleno que faz surgir a música da flauta,
a centelha da pedra, o brilho do metal.
Sou a vela acesa e a mariposa
girando louca ao seu redor.
Sou a rosa e o rouxinol
perdido em sua fragrância.
Sou todas as ordens de seres,
a galáxia girante,
a inteligência imutável,
o ímpeto e a deserção.
Sou o que é
e o que não é.
Tu, que conheces Jalal-ud-Din
Tu, o Um em tudo,
diz quem sou.
Diz: eu sou
Tu.
– Jalâl ad-Din Rûmî, em “Poemas Místicos: Divan de Shams de Tabriz”. [seleção, introdução e tradução José Jorge de Carvalho]. São Paulo: Attar Editorial, 1996.
BIOGRAFIA DE RÛMÎ
Mawlana Jalal-ad-Din Muhammad Rûmî (30 de setembro de 1207 – 17 de setembro de 1273), também conhecido como Mawlana Jalal-ad-Din Muhammad Balkhi ou ainda apenas Rûmî ou Mevlana foi um poeta, jurista e teólogo sufi persa do século XIII. Seu nome significa literalmente Majestade da Religião; Jalal significa majestade e Din significa religião.
Desde menino teve contato com muitos sufis eruditos da época viajou bastante. Seu nome está associando à Anatólia romana onde viveu muito tempo (Konya); era chamada pelos turcos do sultanato Seljúcida, de terra de Rum, referência ao império romano do Ocidente, o império bizantino. A Anatólia recebia muitos persas orientais abalados com as invasões mongóis. Apesar de passar a maior parte da sua vida na Turquia, sempre escreveu em persa. Tornou-se professor muito popular e tinha como alunos todo tipo de gente.
Aos 37 anos (1244) conheceu Shams de Tabriz. O afeto e cumplicidade espiritual entre ambos marcou sua poesia e a história do sufismo. Rûmî desenvolveu o Sama (que teria praticado com Shams), uma dança extática em que os derviches giram em torno de si, imitando o movimento de rotação e translação dos planetas. Depois da morte de Rûmi seu filho Walad formalizou a ordem MAVLEVI dos derviches giradores.
A importância de Rûmî transcende os conceitos de nacionalidade e etnia. Sua presença é marcante na literatura persa, turca e em na Ásia Central. Seus poemas são amplamente conhecidos e traduzidos em vários idiomas.
Rûmî é autor de obra impar entre as quais se destacam: Os Poemas Místicos, Divan de Shams de Tabriz contém 3230 gazéis e cerca de 2000 rubaiyyat. É a maior coleção de poemas místicos jamais escrita. O Masnavi, tratado filosófico-teológico, conta com 6 livros com textos diversos: passagens corânicas, alegorias, sermões. Com 25 mil versos é um dos grandes textos espirituais, conhecido na tradição sufi como o Alcorão Persa.
Fonte: Revista Zunai
:: A flauta e a Lua: poemas de Rûmî. [tradução Marco Lucchesi; fotos de Riccardo Zipoli]. Edição bilíngue. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2016. {nova edição reunida de A sombra do amado: poemas de Rûmî e O canto da unidade: em torno da poética de Rûmî}. [antologia]
:: O canto da unidade: em torno da poética de Rûmî. [organização Faustino Teixeira e Marco Lucchesi; tradução Marco Lucchesi e Rafi Moussavi]. Rio de Janeiro: Fissus, 2007. {Com comentários de Leonardo Boff, Mário Werneck Filho, Heliane Miscali, Pablo Beneito e Pilar Garrido}
:: A Sombra do Amado: Poemas de Rûmî. [introdução e tradução Marco Lucchesi e Luciana Persice]. Rio de Janeiro: Fissus, 2000.
:: Onde dois oceanos se encontram. Jalâl ad-Din Rûmî. [tradução James Cowan]. Rio de Janeiro: Gente, 1999.
:: Fihi-ma-fihi – o livro do interior. Jalâl ad-Din Rûmî. [tradução Margarita Garcia Lamelo, {a partir} traduit du persan par Eva Vitray-Meyrovitch]. Rio de Janeiro: Edições Dervish, 1993.
:: Masnavi. Jalâl ad-Din Rûmî. [tradução Mônica Udler Cromberg e Ana Maria Sarda; prefácio Omar Ali-Shah]. Rio de Janeiro: Edições Dervish, 1992.
:: Poemas Místicos: Divan de Shams de Tabriz. Jalâl ad-Din Rûmî. [seleção, introdução e tradução José Jorge de Carvalho]. São Paulo: Attar Editorial, 1996; 2006.
Em antologias
CARVALHO, José Jorge de. (tradução e organização). Os melhores poemas de amor da sabedoria religiosa de todos os tempos. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
Filmes
:: Rumi: poeta do coração / Sufis do Afeganistão
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