Chamam-lhe escritora pop, universal, da felicidade, do humor, pelo modo como olhava a época em que viveu. Morreu em 17 de julho de 1817, há mais de 200 anos e a sua obra parece mais lida do que nunca. O que tem Jane Austen?
– por Isabel Lucas
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Uma mulher está sentada no chão, no que parece ser o topo de uma colina. Olha em frente, mas vemo-la de costas. Apenas uma ínfima parte do rosto está descoberta. Tem um vestido azul e uma touca, também azul. A mão esquerda repousa sobre os joelhos dobrados. É a posição de quem observa mas não se deixa ver. É uma imagem de 1804, e Jane Austen talvez olhe o mar. A aquarela foi pintada por Cassandra, irmã mais velha de Jane, e é a única a representar a criadora de um dos universos mais ricos da literatura mundial, mas de cujas feições pouco se sabe. Duzentos anos após a sua morte o seu rosto permanece um mistério.
Ou quase. Há um desenho, um esboço, também de Cassandra. Jane está também sentada, braços cruzados, outra vez a touca na cabeça, com uns caracóis revoltos a sair do pano; lábios finos, olheiras, traços severos que, dizem alguns estudiosos da escritora, não condizem com a sua escrita: irônica e sem amargura, vigorosa. Nem o que conta dela quem a conheceu: amável, excêntrica contadora de histórias, que gostava de viajar embora nunca tenha saído de Inglaterra, aberta ao mundo. Esse esboço inspirou outra imagem, feita por uma sobrinha pouco depois de Jane morrer. Aí a expressão surge calma e o cabelo retocado. Foi esse o rosto escolhido para a nota de 10 libras criada pelo Banco de Inglaterra para assinalar o bicentenário da morte de Jane Austen ocorrido em 18 de Julho de 1817, quando ela tinha 41 anos. Isso, apesar das críticas que condenam a escolha. Dizem que a imagem trai o que se pensa ser a verdade física da escritora. O fato é que é a única mulher, além da rainha de Inglaterra, a constar de uma nota oficial no Reino Unido.
Não há um retrato definitivo de Jane Austen e o seu rosto parece ter a liberdade de se adaptar à imagem que dele constrói cada um dos seus leitores. Em contrapartida, o seu legado, o que a faz continuar a ser lida tantos anos depois, é tão claro quanto feito desse mistério que faz com que uma obra emocione e gere nova arte. O que há em Jane Austen que a mantém mais viva do que o foi no seu próprio tempo?
“Os enredos das seis obras-primas que deixara completas, aparentemente tão semelhantes entre si, poderiam ficar-se pela inóspita categoria de ‘literatura leve’, não fosse a complexidade verbal entre linhas, entre páginas, a análise fulgurante e intrincada das relações sociais e familiares, o retrato de tantas personagens inesquecíveis, tudo acompanhado pelo som da música dos bailes e das festas, amarfanhado nas pregas dos vestidos ou na poeira dos caminhos, atordoado nas deslocações pelas estradas de Inglaterra, no caos do tempo e das paixões, mas destinado a uma harmonia final e longamente desejada”, escreve Helena Vasconcelos, crítica literária do Público, grande conhecedora da obra de Jane Austen. É um excerto de Não Há Tantos Homens Ricos Como Mulheres Bonitas que os Mereçam (Quetzal, 2016), uma ficção/ensaio de Vasconcelos a partir da vida e da obra da autora que entrou no cânone com livros como Orgulho e Preconceito, Sensibilidade e Bom Senso, Emma ou Mansfield Park.
A tese é da protagonista, Ana Teresa, e sustenta-se na de Helena Vasconcelos, a sua criadora. Em declarações ao Público, salienta o humor clássico de Jane Austen como uma das características mais contemporâneas da obra austeniana. “O lado visual tem ajudado a que permaneça, os filmes, as séries, o modo como aquilo fica tão bem no cinema. Mas há uma filosofia por detrás, arguta e cômica. Um cômico clássico, no sentido de marcar o bem e o mal nos seres humanos, à imagem do que fez Aristófanes, desmontando personagens, fazendo o contraste do que é humano. Isso atravessa o tempo porque tem a ver com o que é mais básico no ser humano”, afirma, alertando para outra característica de Austen: a capacidade de pintar o quadro da sua época. “É uma época charneira, de grandes alterações sociais e culturais, e o confronto entre o antigo e o moderno está lá, nas suas personagens. As heroínas dos romances têm os traços dessa mudança, e são sempre ela, Austen, nas suas várias personae”. Além disso há “uma predisposição para a felicidade” que irá contrastar com o período seguinte, o romantismo, e o culto do catastrófico.
O efeito espelho
Eis Austen, contemporânea duzentos anos depois. Numa escrita aparentemente simples, fruto de um notável poder de observação, rompeu com a tradição do romance gótico para escrever muito próximo da realidade e do que se pode chamar a banalidade. No caso de uma mulher nascida e criada no campo, num quotidiano baseado nas relações familiares com o casamento como instituição nuclear e garante econômico da existência feminina. Nesse contexto, o clero surgia como mediador influente ajudando a complexificar a teia social e doméstica que alimenta a ficção de Austen. Sempre sob a lupa do humor, de que é exemplo uma das mais célebres e citadas frases de Austen no arranque de Orgulho e Preconceito: “É uma verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro na posse de uma boa fortuna, anda necessariamente à procura de uma esposa.” Numa das cartas que sobreviveram à censura destrutiva da sua irmã, Cassandra, Jane Austen escreveu: “As mulheres solteiras têm uma propensão horrível para serem pobres e só isso representa um poderoso argumento a favor do matrimônio.” É à luz desse tempo, o mesmo em que ocorre a Revolução Francesa do outro lado do oceano, e a impede de conhecer o mundo, que a obra de Jane Austen se constrói e o seu gênio se revela.
O gênio da banalidade
Ela nasceu nesse meio, rural, em Steventon, região do Hampshire, a 13 de Dezembro de 1775, sétima de oito filhos do reverendo George Austen, que detectou muito cedo na filha a paixão pelos livros que ele também tinha. Não pertencendo a uma família abastada, longe disso, George tratou de alimentar a voragem da Jane leitora, que começou muito cedo a escrever notas em pequenos blocos. Foi também George a reconhecer o talento da filha e a recomendá-la a um editor em Londres. Em 1811 era publicado Sensibilidade e Bom Senso, e os outros seguiram-se-lhe, sempre sem o seu nome na capa. Orgulho e Preconceito (1813), Mansfield Park (1814), Emma (1815). Os restantes seriam publicados postumamente e já com Jane Austen associado ao título: A Abadia de Northanger (1818), Persuasão (1818) — o último livro que escreveu e que destoa da aura luminosa dos anteriores —, e Lady Susan, novela epistolar que se pensa ter sido escrita em 1794, teria Austen 19 anos, e foi publicada pela primeira vez em 1871. Deixou por acabar Sandington. A última frase que escreveu nesse romance data de 18 de Março de 1817, quatro meses antes de morrer vítima de um possível envenenamento causado por um remédio comum na época.
Desde cedo deixou claro que seria escritora. Não casou, viveu parte da sua vida com a irmã Cassandra, dois anos mais velha, e depois da morte do pai, passou por Bath até se fixar em Winchester numa casa cedida pelo irmão, Edward. Foi aí que viveu a fase mais produtiva de uma obra quase toda publicada em Portugal pela Relógio d’Água, editora que ainda este ano vai pôr no mercado a obra completa de Jane Austen em edição especial de capa dura. “É uma obra transversal, com personagens que perduram”, refere o editor Francisco Vale. “Ela dá a vida interior, familiar, mas dá também a inserção social de forma intensa. As suas personagens não têm participação na reforma social, como as de Dickens, mas o retrato está lá. A fortuna é desejada, mas não há referências à sua origem; a avaliação é de carácter; há desaire, mas há uma meritocracia de sentimento”.
E há a capacidade de inaugurar o romance moderno e ao mesmo tempo parecer ter alcançado o “auge da modernidade”, expressão usada pelo escritor britânico Ian McEwan que elege o romance A Abadia de Northanger como o seu livro preferido de Austen. “Influenciou profundamente o meu romance Expiação”, conta no Guardian de sábado passado, onde se perguntou a sete escritores que romance de Jane Austen preferiam. “Ela entendeu o culto da sensibilidade e riu à socapa com isso”, disse Hilary Mantel, que prefere Jack and Alice, obra de juventude da escritora, que terminou o primeiro romance aos 14 anos, Amor e Amizade.
São duas escolhas menos óbvias entre as obras de uma autora de quem Harold Bloom, um dos críticos ocidentais mais influentes da segunda metade do século XX, disse ser “filha de Shakespeare”. Sublinhando a ironia e “interioridade dramática” dos seus livros, Bloom afirma em Génio (Temas e Debates, 2002): “Nesta nossa realidade, cada vez mais virtual, há três autores aparentemente imunes à decadência da autêntica leitura: Shakespeare, Austen e Dickens. Este fenómeno não obedece a razões políticas nem a razões de culto: das páginas destes escritores surgem personagens principais e personagens secundárias com uma profusão inigualável na língua inglesa.” Em Abril de 2004, ainda no Guardian, outro crítico, James Wood, diz isto de Austen num artigo sobres as raízes do humor: “Para Jane Austen, casar-se — ou melhor, apaixonar-se — é a conversão de ‘rir de’ em ‘rir com’, desde que cada amante, equilibrando o outro, ria igualmente do outro, criando uma nova forma de riso, espécie de gargalhada igual.” Significa tirar a mulher da condição de menoridade a que estava destinada, o contrário do que afirmam os seus críticos quando lhe apontam superficialidade ao tratar de temas como o amor, o casamento e o dinheiro.
É verdade, esses são os principais assuntos de Austen, mas olhados de forma literariamente revolucionária. Noutra carta que sobreviveu, Austen afirmava que não se “deixaria acomodar ao papel feminino de imbecil.” Para ela, escolha ou acaso, o casamento não foi a escolha, metáfora do final feliz. Ela viu-o de fora, como escritora. Não riu com o outro. Riu à socapa.
Fonte: Público
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