<<À COISAS DE POESIA>>
De Soares Guiamar — despercebido, impresso, inédito, fora-de-moda — que queria livro, o “Anagramas”, e disse palpites: Ser poeta é já estar em experimentada sorte de velhice. Toda poesia é também uma espécie de pedido de perdão.
Ou… Ou
A moça atrás da vidraça
espia o moço passar.
O moço nem viu a moça,
ele é de outro lugar.
O que a moça quer ouvir
o moço sabe contar:
ah, se ele a visse agora,
bem que havia de parar.
Atrás da vidraça, a moça
deixa o peito suspirar.
O moço passou depressa,
ou a vida vai devagar?
– João Guimarães Rosa, do livro “Ave, palavra”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 6ª ed., 2009.
§
Pescaria
A Mário Matos
O peixe no anzol
é kierkegaardiano.
(O pescador não sabe,
só está ufano.)
O caniço é a tese,
a linha é pesquisa:
o pescador pesca
em mangas de camisa.
O rio passa,
por isso é impassível:
o que a água faz
é querer seu nível.
O pescador ao sol,
o peixe no rio:
dos dois, ele só
guarda o sangue frio.
O caniço, então,
se sente infeliz:
é o traço de união
entre dois imbecis…
– João Guimarães Rosa, do livro “Ave, palavra”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 6ª ed., 2009.
§
Teorema
Malmequer falhado,
cão madrugador,
pôde simples fado:
tem amado.
Malmequer maior,
deus decapitado;
se cumprido for,
viverá de amor.
Malmequer e bem,
com porquê e a quem:
severo exercício,
amar é transgredir-se.
– João Guimarães Rosa, do livro “Ave, palavra”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 6ª ed., 2009.
§
Parlenda
Papagaio foi à caça
voltou para Portugal
ausência de verdes matas
extinta raça real.
Deu voz de um príncipe louro
viagem por bem e mal.
Deixou-me suas palavras
apenas, no vegetal
caladas; ouro e segredo
um castelo e um coqueiral.
Mas a vida que me herdaram
viver, é bem desigual
— velas no mar, um degredo
e a saudade: azuis e sal.
Que eu sofra noites florestas
e minha culpa, por al.
– João Guimarães Rosa, do livro “Ave, palavra”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 6ª ed., 2009.
§
Alongo-me
O rio nasce
toda a vida.
Dá-se
ao mar a alma vivida.
A água amadurecida,
a face
ida.
O rio sempre renasce
A morte é vida.
– João Guimarães Rosa, do livro “Ave, palavra”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 6ª ed., 2009.
§
O aloprado
O aloprado
sai devagar
entra no mundo
fundo do mar.
Olha por tantas janelas
só em espelho está a olhar.
Mais vê, aí, seu coração:
que o mar é lágrimas e luar.
E desde então
e desde amar
pode ir mais fundo;
nunca, voltar.
– João Guimarães Rosa, do livro “Ave, palavra”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 6ª ed., 2009.
§
Os três burricos
Por estradas de montanha
vou: os três burricos que sou.
Será que alguém me acompanha?
Também não sei se é uma ida
ao inverso: se regresso.
Muito é o nada nesta vida.
E, dos três, que eram eu mesmo
ora pois, morreram dois;
fiquei só, andando a esmo.
Mortos, mas, vindo comigo
a pesar. E carregar
a ambos é o meu castigo?
Pois a estrada por onde eu ia
findou. Agora, onde estou?
Já cheguei, e não sabia?
Três vezes terei chegado
eu — o só, que não morreu
e um morto eu de cada lado.
Sendo bem isso, ou então
será: morto o que vivo está.
E os vivos, que longe vão?
– João Guimarães Rosa, do livro “Ave, palavra”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 6ª ed., 2009.
§
Motivo
O menino foi andando
entrou num elevador
a casa virou montanha
o luar partiu-a em três
o menino saiu de selvas
montado no gurupés
adormeceu sobre neve
despertou noutro cantar
mas deu-se que envelhecera
bem antes de despertar
então ele veio andando
só podia regressar
ao porquê, ao onde, ao quando
— a causa, tempo e lugar.
– João Guimarães Rosa, do livro “Ave, palavra”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 6ª ed., 2009.
§
Adamubies?
Corpo triste
alva memória
tenho fadiga
não tenho história.
Triste sono:
sonhar quero.
Pelo que espero
tudo abandono.
Corpo triste, triste sono,
faz frio à beira da cova.
Onde espero a lua nova
como um cão espera o dono.
– João Guimarães Rosa, do livro “Ave, palavra”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 6ª ed., 2009.
§
<<NOVAS COISAS DE POESIA>>
Perguntam-me por mais versos de Soares Guiamar. Não são possíveis. Ele agora para longe, certo à beira do Riachinho Sirimim, lugar de se querer bem. Tenho, porém, outro poeta de bolso: Meuriss Aragão. Jovem, sem jeito, em sua primeira fase, provavelmente extinta. Vejam, se serve.
Mulher
Mar
Morte
Devoro-me de a mais a
imagem indesmanchável
desfazendo-me — eis e
voos entes e sei — vagas
em mim despedaçadamente
vasto a
som sal soledade
aos
céu e céu
olhos leste-oeste olhos
onde entre onde
me movo
morro-me e
me arranco de ti
a ti: a
amarga.
– João Guimarães Rosa, do livro “Ave, palavra”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 6ª ed., 2009.
§
Saudade, sempre
Sem mim
me agarro a um tanto de mim
não aqui
já existente
sobre tudo e abismo.
Horas são outrora
além-de. O
muito em mim me faz:
som de solidão.
– João Guimarães Rosa, do livro “Ave, palavra”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 6ª ed., 2009.
§
Saudade, sempre
(Versão aflita)
Alma é dor escondida.
O coração existe
animal a um canto
— o triste.
Posso pecar contra ti
ingenuamente:
há fogo, o fundo
o instante; não,
o esquecimento
é voluntária covardia.
– João Guimarães Rosa, do livro “Ave, palavra”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 6ª ed., 2009.
§
A ausente perfeita
Mal refletida em multidão de espelhos,
traída pela carne de meus olhos,
pressentida
uma ou outra vez, quando
consigo gastar um quanto da minha
pesada consolação transitória —
poderás ser:
a ave
a água
a alma?
– João Guimarães Rosa, do livro “Ave, palavra”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 6ª ed., 2009.
§
A espantada estória
O relógio o
crustáceo
de dentro de polo-norte
e escudos de vidro
em dar remedido
desfechos indivisos
cirúrgicas mandíbulas
desoras antenas;
ele entranha e em torno e erra
o milagre monótono
intacto em colmeias;
nem e sempre outro adeus
me não-usa, gasta o
fim não fim:
repete antecipadamente
meu único momento?
… nele
eternizo
agonizo
metalicamente
maquinalmente
sobressaltada
mente
ciente.
– João Guimarães Rosa, do livro “Ave, palavra”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 6ª ed., 2009.
§
<<SEMPRE COISAS DE POESIA>>
Sá Araújo Ségrim — poeta comprido — é outro dos anagramáticos, de que hoje disponho. Se bem talvez um tanto discípulo de Soares Guiamar, sob leves aspectos, sofre só e sozinho verseja. Sei que pensa em breve publicar livro: o “Segredeiro”, e do supracitado é, às vezes, o que prefiro. Será que conosco concordam?
Distância
Um cavaleiro e um cachorro
viajam para a paisagem.
Conseguiram que esse morro
não lhes barrasse a passagem.
Conseguiram um riacho
com seus goles, com sua margem.
Conseguiram boa sede.
Constataram:
cai a tarde.
Sobre a tarde, cai a noite,
sobre a noite a madrugada.
Imagino o cavaleiro
esta orvalhada e estrelada.
O pensar do cavaleiro
talvez o amar, ou nem nada.
Imagino o cachorrinho
imaginário na estrada.
Caía a tarde.
Para a tarde o cavaleiro
ia, conforme avistado.
Após, também o cachorro.
Todos — iam, de bom grado,
à tarde do cavaleiro
do cachorro, do outro lado
— que na tarde se perderam,
no morro, no ar, no contado.
Caiu a tarde.
– João Guimarães Rosa, do livro “Ave, palavra”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 6ª ed., 2009.
§
Recapítulo
Neste dia
quieto e repartido em tédio e falta de coragem,
não mereci a música que sofro na memória,:
não me doeram a fuga, o espesso, o pesado8, o opaco;
não respondi.
Apenas fui feliz?
– João Guimarães Rosa, do livro “Ave, palavra”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 6ª ed., 2009.
* 8 pesado. Variante: torto, tardo.
§
Contratema
A lua luz em veludo
barba longa
respingada de violetas.
Perdidos todos os verdes
— cor que dorme —
desconforme
se escoa o mundo no abandono.
Eis que belos animais,
quente resplandor nos olhos,
quente a vida com maldade,
vêm das sombras.
Assim o sol
seu rio alto,
novos ouros, novas horas,
revolve agudas lembranças.
Fria, a noite fecha as asas
— mundo erguido, céu profundo —
sol a sol
ou sono a sono?
– João Guimarães Rosa, do livro “Ave, palavra”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 6ª ed., 2009.
§
Rota
Antes que me vissem triste
ou que outras voltas me dessem
entendi contrário rumo
desci esta rua até o fim
concedi-me aos prólogos:
a nuvem válida
a estátua de alma
a véspera de véspera
o cenho da calma
o fogo, imágico
o doer intacto
a santa no armário
o cume calabouço
a lembrança do peixe
o celeumatário
o outro anão
a mulher de pés no chão
as senhas vagas
o homem enrodilhado
a ânfora e a âncora
o jacto de madrugada
a folga
a força.
– João Guimarães Rosa, do livro “Ave, palavra”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 6ª ed., 2009.
<<QUANDO COISAS DE POESIA>>
Se lhe não firo a modéstia, direi, aqui, depressa, que Sá Araújo Ségrim, em geral, agradou. Por isso mesmo, volta, hoje, com novos poemas, que só não sei se escolhemos bem. Sendo coisas mui sentidas. Sendo o que ele não sabe da vida. Digam-me, o mais, amanhã. Leiam-no, porém.
Ária
Em meio ao som da cachoeira
hei-de ouvir-me, a vida inteira
dar teu nome.
Tudo o mais levam as águas,
mágoas vagas12
para a foz.
Vida que o viver consome.
Um rio, e, do rio à beira,
tua imagem. Minha voz.
A cachoeira
diz teu nome.
– João Guimarães Rosa, do livro “Ave, palavra”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 6ª ed., 2009.
* 12 – vagas. Variante: sagas.
§
Querência
Um vaga-lume
muge
na noite e distância
de uma chuva que estiou, chuvinha,
de uma porteira que bate, que range e que bate,
de um cheiro de únicos úmidos verdes inventos
de amigas árvores, agradadas,
de um marulho de riacho,
de muitos e matinais pássaros,
de uma
esperança-e-vida-e-velhice e morte
que faz em mim.
– João Guimarães Rosa, do livro “Ave, palavra”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 6ª ed., 2009.
§
Escólio
O que sei, não me serve.
Decoro o que não sei.
Relembro-me:
deslumbro-me, desprezo-me.
O querubim é um dragão
suas asas não se acabam.
Sempre ele me acha em falta
ou no remorso de tanta lucidez.
Somos, anciãos, amargos.
Tão amargos, juntos,
que temos de construir
do nada —
que é humano e nos envolve.
A gente tem de tirar dele
algo, pedaço de alto:
alma, amor, praga13 ou poema.
– João Guimarães Rosa, do livro “Ave, palavra”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 6ª ed., 2009.
* 13 – praga. Variante: lágrima.
§
Tornamento
I
A viagem dos teus cabelos —
estes cabelos povoariam legião de poemas
e as borboletas circulam indagando tua cintura,
incertamente. Teu corpo em movimento
detém uma significação de perfume.
O som de um violino conseguiria dissolver
um copo de ouro?
II
Houve reis que construíram seus nomes milenários
e poetas que governam palácios em caminhos.
Povos. Proêmios. Penas.
Mas toda você, um gosto só, matar-me-ia a sede
e teus pés e rosas.
III
Às vezes — o destino não se esquece —
as grades estão abertas,
as almas estão despertas:
às vezes,
quando quanda,
quando à hora,
quando os deuses,
de repente
— antes —
a gente
se encontra.
– João Guimarães Rosa, do livro “Ave, palavra”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 6ª ed., 2009.
§
<<AINDA COISAS DA POESIA>>
Outro anagramático é Romaguari Sães, o “embevecido”, escondedor de poemas. No grupo, é considerado como um tanto diferente. Tem outra música. Tem um amor mais leve, originário, avançado. Disse, uma vez, em entrevista, que a poesia devia ser um meio de “restituir o mundo ao seu estado de fluidez, anterior, exempta”. Aprovam-no?
Marjolininha
(Bailía)
Ai de mim —
te vejo…
esmolinha que me dás:
uma aurora
e um
seixo14;
e quanto digas
quanto faças
quanto és
— Princesa! —
como ruidoso15 é o mundo
e redondo16 o mar.
As estrelas são17 boizinhos
que de dia vão18 pastar.
Carinhos me deste;
de ti vou dizer:
maria me maria
quero teu pensar
quero teu celeste
quero teu terrestre
quero teu viver.
Onde, onde, onde
estás?
Vou medir teus gestos
vou saber teus passos
maria do centro
maria do sempre
maria do amar:
em ti quero estar.
– João Guimarães Rosa, do livro “Ave, palavra”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 6ª ed., 2009.
* 14 – seixo. Variantes: aceno; signo.
* 15 – ruidoso. Variante: idoso.
* 16 – redondo. Variante: irredondo.
* 17 – são. Variante: vão.
* 18 – vão. Variante: são.
§
Cândida
(Marjolininha)
Candinha sonha comigo
no sonho sou seu amigo.
Eu que nunca vi Candinha
Reconheço-a na poesia.
Sonho que Candinha dorme
sonho que Candinha sonha
neste mundo certo e enorme
nesta vida não tristonha.
Candinha sonha um abrigo
no futuro — no conforme.
Que da simples alegria
o seu sonho se componha.
Candinha? Um sonho se sonha.
– João Guimarães Rosa, do livro “Ave, palavra”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 6ª ed., 2009.
§
Presença e perfil da moça de chapeuzinho cônico
Em primeiro lugar
ela não está presente;
vizinha de mim
indefinidamente.
Tudo o mais, isto sim,
ela representa:
representa o fim
de qualquer começo.
(Do chapéu, não me esqueço.)
Seu perfil repensa
um outro pensamento.
(A moça pousada
no meu pensamento.)
Repetindo o inédito
ela se representa.
– João Guimarães Rosa, do livro “Ave, palavra”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 6ª ed., 2009.
§
Marjolininha (9ª)
Correi, meninas, que o prado
pede vosso bailado.
Bailai, meninas,
eis, sim, que o prado
sempre é um chamado
por vós outras — flores,
pés multicores:
— o amor desejado
o alado.
Ide.
Voai, meninas,
o amor vos pede.
Sabei que os verdes do prado
só estão fugindo.
Sabei, oh flores, meninas.
Correi.
Se as flores do prado só estão fingindo,
é o amor esperado que já vem vindo.
Bailai, meninas.
– João Guimarães Rosa, do livro “Ave, palavra”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 6ª ed., 2009.
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