“O Magma, aqui dentro, reagiu, tomou vida própria, individualizou-se, libertou-se do meu desamor e fez-se criatura autônoma, com quem talvez eu já não esteja muito de acordo, mas a quem a vossa consagração me força a respeitar.”
– João Guimarães Rosa, trecho do discurso, na ABL, quando do prêmio ao Magma, em 1936.
Boiada
— “Eh boi!… Eh boi!…
É gado magro,
é gado bravo,
que vem do sertão.
E os cascos pesados,
atropelados,
vão martelando o chão
na soltura sem fim do Chapadão do Urucuia…
— “Boiada boa!…”
Ancas cavadas,
costelas à mostra,
chifres pontudos de curraleiros,
tinir de argolas de bois carreiros,
sol de fornalha… poeira vermelha…
Úberes murchos,
corcovas rombas,
berros, mugidos,
bafagem suada,
sangue de ferroadas,
muita bicheira…
— “Que sol!… Que poeira!…
E a manada corre,
cangotes baixos,
focinhos em baba,
sacolejando ossos e couros,
num tropel de tropão…
— “Boiada boa!…”
— “Galopa, Joaquim,
que o gado estoura
por esse Goiás afora!…
Enterra a espora!…”
— “Que sol!… Que poeira!…”
Barbelas moles,
lombos selados,
cachaços brutos,
— “Eh caracu mocho, como berra feio!…”
— “Eh boi!… Eh boi!…”
Golpes de raspa,
refugos tontos, cornadas doídas,
gado selvagem, gado sem ferro…
— “Olha a vaca malhada
investindo os outros!…
Ferra a vaca, Raimundo!…”
— “Que terra brava!…”
— “Que sol!… Que poeira…”
Cacundas ondulantes,
desabaladas,
como as águas de um rio…
— “Eh boi!… Eh boi!…
Novilhos rajados,
garrotes mateiros,
zebus enormes,
vacas turinas,
cheiro de curral…
— “Corre, Zé Grande, cercar o boi preto
que esparramou!…”
— “Olha o bicho atacando!…
Olha o bicho crescendo na vara!…
Firma na vara, mulato bom!…”
— “Põe pra lá, marrueiro!…”
— “Verga e não quebra,
que é de pau-d′arco da beira d′água,
Seu Coronel!…”
— “Boiada boa!…”
O gado agora rola cansado,
e a trovoada trota
do fundo do chão…
— Ó João Nanico, por que canta assim?…
Tem aumentado seu gado miúdo?…”
— “Gabarro e peste mataram tudo…”
— “Está pensando será na crioula?…”
— “Fugiu, que tempo, foi pra Bahia,
por esse mundão de Deus…”
— “Morreu no eito, já faz um ano,
picado de urutu…”
— “Então, João Nanico,
por que canta assim?!…”
— “Ai, Patrão, que a vida é uma boiada,
e a gente canta pra ir tocando os bois…”
— “Ó João Nanico, mineiro velho,
quer vir comigo pra Paracatu?!…”
— “O gado é bravo?… A pinga é boa?!…
Ai, Patrãozinho, vamos embora,
vamos embora pro Paracatu!…”
– João Guimarães Rosa, do livro “Magma”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 28.
§
Caranguejo
Caranguejo feiíssimo,
monstruoso,
que te arrastas na areia
como a miniatura
de um tanque de guerra…
Gosto de ti, caranguejo,
Câncer meu padrinho
nas folhinhas,
pois nasci sob as bênçãos do teu signo
zodiacal…
Teu par de puãs cirúrgicas oscila
à frente do escudo lamaçento
de velho hoplita.
E mais oito patas, peludas,
serrilhadas,
de crustáceo nobre,
retombam no mole desengonço
de pés e braços muito usados,
desarticulados,
de um bebê de celulóide.
Caranguejo sujo,
desconforme,
como um atarracado Buda roxo
ou um ídolo asteca…
És forte e ao menor risco te escondes
na carapaça bronca,
como fazem os seres evoluídos,
misantropos, retraídos,
o filósofo, o asceta,
o cágado, o ouriço, o caracol…
Caranguejo hediondo,
de armadura espessa,
prudente desertor…
Para as luas do amor, quero aprender contigo,
quero fazer como fazes, animalejo frio,
que, tão calcariamente encouraçado,
só sabes recuar…
– João Guimarães Rosa, do livro “Magma”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 42.
§
Elegia
Teu sorriso se abriu como uma anêmona
entre as covinhas do rosto infantil.
Estavas de pijama verde,
nas almofadas verdes,
os pezinhos nus, as pernas cruzadas,
pequenina,
como um ídolo de jade
que teve por modelo uma princesa anamita.
Tuas mãos sorriam,
teus olhos sorriam,
o liso dos teus cabelos pretos sorria,
e mesmo me sorriste,
e foi a única vez…
Não pude calçar, com beijos os teus pezinhos,
e não pudeste caminhar para mim…
Mas é bem assim que os meus sonhos se possuem.
– João Guimarães Rosa, do livro “Magma”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 50.
§
Alaranjado
No campo seco, a crepitar em brasas,
dançam as últimas chamas da queimada,
tão quente, que o sol pende no ocaso,
bicado
pelos sanhaços das nuvens,
para cair, redondo e pesado,
como uma tangerina temporã madura…
– João Guimarães Rosa, do livro “Magma”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 54.
§
Verde
Na lâmina azinhavrada
desta água estagnada,
entre painéis de musgo
e cortinas de avenca,
bolhas espumejam
como opalas ocas
num veio de turmalina:
é uma rã bailarina,
que ao se ver feia, toda ruguenta,
pulou, raivosa, quebrando o espelho,
e foi direta ao fundo,
reenfeitar, com mimo,
suas roupas de limo…
– João Guimarães Rosa, do livro “Magma”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 56.
§
Amarelo
Kuang-Ling,
pintor chinês de máscara de cera,
feliz de ópio, e ébrio de dragões,
molha o pincel na água de ocre
do Huang-Ho,
e, entre lanternas de seda,
pinta e repinta,
durante trinta anos,
sulfúreos e asiáticos girassóis,
na incrível porcelana de um jarrão
dos Ming…
– João Guimarães Rosa, do livro “Magma”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 57.
§
Anil
O voo, quase vertical, da jaçanã fugida
levantou meu olhar,
no dorso esbelto, de zinco polido,
à calota do céu,
liso, congelado em calmaria,
e quase sólido, em cobalto líquido.
Pensei que a ave fosse frechar, de cheio,
para pescar peixinhos escamados de ouro:
as estrelas que mergulharam de madrugada…
E que a água longe se abrisse
nos nove círculos concêntricos
das nove beatitudes…
Mas o pássaro foi breve um grânulo dissolvido,
entre nuvens fugindo como flocos de espuma,
com a paisagem a luzir, no seio de uma bolha,
o sol a se desmanchar, como um sabão redondo,
e o céu todo água, num côncavo de bacia
onde lavam o dia…
– João Guimarães Rosa, do livro “Magma”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 57.
§
Desterro
Eu ia triste, triste, com a tristeza discreta dos fatigados,
com a tristeza torpe dos que partiram tendo despedidas,
tão preso aos lugares
de onde o trem já me afastara estradas arrastadas,
que talvez eu não estivesse todo inteiro presente
no horror dessa viagem.
Mas a minha tristeza pesava mais do que todos os pesos,
e era por causa de mim, da minha fadiga desolada,
que a locomotiva, lá adiante, ridícula e honesta,
bracejava,
puxando com esforço vagões quase vazios,
com almas cheias de distância, a penetrar no longe.
A tarde subiu do chão para a paisagem sem casas,
e o comboio seguia,
cada vez mais longe, mais fundo, a terra mais vermelha,
o esforço maior, as montanhas mais duras,
como sabem ser duros os caminhos,
pelos quais a gente vai, só pensando na volta…
Coagulada em preto,
a noite isolou as coisas dentro da tarde,
e o barulho do trem foi um rumor de soçobro
no fundo de um mar sem tona.
Nem mesmo foi a noite: foi a ausência
brusca e absurda do dia.
Tão definitiva e estranha, que eu me alegrei, esperando
o não continuar da vida,
o não-regresso da luz, o não-andar-mais do trem…
– João Guimarães Rosa, do livro “Magma”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 60.
§
Paisagem
No quadrilátero do arrozal,
verde-aquarela,
cortam-se em ângulos retos
canais azuis de água polida.
No ar de alumínio,
as libélulas verdes vão espetando
jóias faiscantes, broches de jade,
duplas cruzetas, lindos brinquedos,
nos alfinetes de sol.
Pairam suspensas, em vôo de caça,
horizontal,
e jogam, a golpes de tela metálica
das asas nervadas, reflexos de raios,
que hipnotizam as muriçocas tontas…
A libelinha pousa na ponta
do estilete de uma haste verde,
que faz arco (pronto!…)
e a leva direta à boca,
aberta e visguenta, de um sapo cinzento…
– Glu!… Muitas bolhas na escuma…
E as outras aeroplanam, assestando
para o submersível,
os grandes olhos redondos,
com quarenta mil lentes facetadas…
– João Guimarães Rosa, do livro “Magma”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 62-63.
§
Lunático
Vou abrir minha janela sobre a noite.
E já bem noite, a lua,
alta a um terço do seu arco,
terá de deslizar pelo meu quarto adentro,
e passear sobre o meu rosto, adormecido e lívido,
quando eu sair a sonhar pelas estradas noturnas,
sem fim, sem marcos, nem encruzilhadas,
que levam à região dos desabrigos…
Sonharei com mares muito brancos,
de águas finas, como um ar dos cimos,
onde o meu corpo sobrenada solto,
por entre nelumbos que passam boiando…
Ouvirei a rainha do País do Suave Sonho,
cantando no alto sempre o mesmo canto,
como a sereia do sempre mais alto…
E a janela se fecha, prendendo aqui dentro
o raio suave que prendia a lua…
Para que eu soçobre no mar dos nenúfares grandes,
onde remoinham as formas inacabadas,
onde vêm morrer as almas, afogadas,
e onde os deuses se olham como num espelho.
– João Guimarães Rosa, do livro “Magma”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 64.
§
Sono das Águas
Há uma hora certa,
no meio da noite, uma hora morta,
em que a água dorme. Todas as águas dormem:
no rio, na lagoa,
no açude, no brejão, nos olhos d’água.
nos grotões fundos.
E quem ficar acordado,
na barranca, a noite inteira,
há de ouvir a cachoeira
parar a queda e o choro,
que a água foi dormir…
Águas claras, barrentas, sonolentas,
todas vão cochilar.
Dormem gotas, caudais, seivas das plantas,
fios brancos, torrentes.
O orvalho sonha
nas placas da folhagem.
E adormece
até a água fervida,
nos copos de cabeceira dos agonizantes…
Mas nem todas dormem, nessa hora
de torpor líquido e inocente.
Muitos hão de estar vigiando,
e chorando, a noite toda,
porque a água dos olhos
nunca tem sono…
– João Guimarães Rosa, do livro “Magma”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 66.
§
Reportagem
O trem estacou, na manhã fria,
num lugar deserto, sem casa de estação:
a parada do Leprosário…
Um homem saltou, sem despedidas,
deixou o baú à beira da linha,
e foi andando. Ninguém lhe acenou…
Todos os passageiros olharam ao redor,
com medo de que o homem que saltara
tivesse viajado ao lado deles…
Gravado no dorso do bauzinho humilde,
não havia nome ou etiqueta de hotel:
só uma estampa de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro…
O trem se pôs logo em marcha apressada,
e no apito rouco da locomotiva
gritava o impudor de uma nota de alívio…
Eu quis chamar o homem, para lhe dar um sorriso,
mas ele ia já longe, sem se voltar nunca,
como quem não tem frente, como quem só tem costas…
– João Guimarães Rosa, do livro “Magma”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 68.
§
Iniciação
E nem mais existirá a esperança do trágico…
E no vazio,
em vão apelareis para as grandes catástrofes,
para a vaidade do ranger dos dentes,
para o pavoroso das formas não de todo feitas,
sob o terrível das forças verticais…
Sumirão as espadas suspensas de fios,
sumirá a mão que escreve nas paredes
do festim velho,
e a Esfinge dormirá nas areias eternas…
Somente o segredo, acordado, no caminho claro,
na encruzilhada de todos os caminhos,
andando na tua frente, desvendado,
mais difícil de crer do que de decifrar…
Teu pensamento, tua fé e teu desejo,
criando, à tua escolha, o teu destino…
E se fores forte,
olha bem para cima,
para ver como é sorrindo
que morre o teu Pai…
– João Guimarães Rosa, do livro “Magma”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 71.
§
Distância sentimental
Mesmo ao sonhar contigo,
só consigo que me ames noutro sonho
dentro do meu sonho primitivo…
– João Guimarães Rosa, de “Poemas”, do livro “Magma”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 72.
§
Epigrama
Ó lua cheia,
ocular de um longo telescópio branco
que devassa o páis dos amores platônicos…
– João Guimarães Rosa, de “Poemas”, do livro “Magma”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 72.
§
Delírio
No parque morno, um perfumista oculto
ordenha heliotrópios…
Deixa aberta a janela…
Minhas mãos sabem de cor o teu corpo,
e a alcova é morna…
Apaguemos a luz…
Não sentes na tua boca
um gosto de papoulas?…
Passa o lenço de seda de tuas mãos
sobre minha fronte,
e não me digas nada:
a febre está, baixinho, ao meu ouvido,
falando de ti…
– João Guimarães Rosa, do livro “Magma”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 89.
§
Gargalhada
Quando me disseste que não mais me amavas,
e que ias partir,
dura, precisa, bela e inabalável,
com a impassibilidade de um executor,
dilatou-se em mim o pavor das cavernas vazias…
Mas olhei-te bem nos olhos,
belos como o veludo das lagartas verdes,
e porque já houvesse lágrimas nos meus olhos,
tive pena de ti, de mim, de todos,
e me ri
da inutilidade das torturas predestinadas,
guardadas para nós, desde a treva das épocas,
quando a inexperiência dos Deuses
ainda não criara o mundo…
– João Guimarães Rosa, do livro “Magma”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 91.
§
Sonho de uma tarde de inverno
Fiquei, longamente, a ler, no frio
da tarde quieta,
uma crônica do tempo merovíngio,
dos monges da Abadia de Cluny.
E um rádio gritante trouxe pela janela,
todo o banzo e o azougue de um samba sensual:
vôo de cantáridas tontas
no hálito de incenso de uma nave,
fenestrada de ogivas e ventanas
e toda colorida de vitrais…
E no vago torpor do meu subsonho,
vi como trabalhava,
extasiado, na penumbra
parda de um meio inverno,
um monge
rendilhador de jóias de ouro,
discípulo, talvez, de Santo Elói:
depois de modelar um cimo de coroa,
com Virtudes de auréola
em meio de anjos louros,
e de cinzelar,
na pasta de sol frio do rebordo
de um anel real,
uma rosácea, um gládio e um globo,
deixou errar seus dedos e seus sonhos,
e fez crescer, no jalde de um cibório,
o relevo de uma Vênus
com um Cupido ao solo…
E era tão bela a sua idéia de ouro,
e foi tão casto e cristão o beijo longo
que ele pôs na deusa,
que a tênue poeira flava do seu êxtase
de pronto se esvaiu.
E então, febril,
murmurando, constante, um exorcismo,
santificando traços, disfarçandos os nus,
fez depressa da Vênus uma Virgem,
e do pagãozinho alado um menino Jesus.
Depois, sorrindo, o santo joalheiro
rezou, com outro beijo, a sua contrição…
E mil diabinhos crepitaram nas chamas,
rubros, rindo,
porque agora o seu beijo
fora ardente e pagão.
– João Guimarães Rosa, do livro “Magma”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 95-96.
§
Hierograma
No jardim pagão,
entre os panos de púrpura de uma fúcsia
poliandra,
oito estamos preguiçosos
namoram um pístilo voluptuoso…
A brisa baralhou
o enxame azul de borboletas
que se casavam nas corolas,
e logo todas trocaram de par…
o jasmineiro desfolha e derrama
na suburra do charco,
em lácteos jasmins de cheiro açucarado,
os beijos mais raros de uma Imperatriz…
Beija-me…
Depois, se não me quiseres,
dir-te-ei, depressa, o nome
de alguém que te ama…
– João Guimarães Rosa, do livro “Magma”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 97.
§
Tentativa
Manhã básica, alcalina,
neutralizando a gota ácida do sol.
O tornassol do céu, no fundo
do grande tubo de ensaio,
vai se espessando, cada vez mais azul.
Dos poços da marna alagada,
cheios, como frascos chatos sem gargalos,
sobem vapores alvacentos.
A pressão calca cinco atmosferas,
e o calor cresce,
nas alavancas de pirômetros negros,
dilatando as sombras.
Rápida,
uma revoada triangular de periquitos
estraleja e crepita,
flambada em alça enorme de platina,
como o fio de chama, fugidio e verde,
de um sal de boro…
Quanto esforço da manhã,
para riscar tão alto,
um corisco de esperança…
– João Guimarães Rosa, do livro “Magma”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 125.
§
O cágado
Numa dobra da serra
há um minadouro,
uma bica,
e um poço azul.
E ali, na água redonda, pequenina e fria,
mora um cágado escafandrista,
filósofo pessimista,
que tem a mania de perseguição.
Quando o sol bate de cheio,
ele traz para fora a cuia emborcada,
e se aquece, aberto, em cima da laje,
chato, cascudo e feio.
Mas, se alguém pisa perto,
ele escorrega e pula, na água mansa
que explode e respinga.
Leva bom tempo
para assomar o focinho
de periscópio.
Mas, se é falso o alarma,
lá vem aflorando, levemente, à tona,
a concha remendada com fiapos de limo.
Depois, mais afoito,
o prudente reptil
passeia o dorso, convexo e abaulado,
como um “U-18”
da base de Kiel.
E o caipira guarda a vida do monstrengo
(Ai! meus pecados todos!…),
se o matarem, o olho d’água se evapora
(Ai! minha felicidade pequenina!…)
E o cágado, lento e pré-diluviano,
na cacimba da grota, espera outro Dilúvio…
– João Guimarães Rosa, do livro “Magma”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 126-127.
§
Necrópole
O monte, agachado e cinzento,
é um elefante de pedra.
E a noite, igual a muitas outras noites,
com alguém pregando panos pesados
para esconder estrelas,
com asas de paina de corujas
transportando agouros,
com dedos em lábios invisíveis
impondo silêncio…
O monte dorme.
Os homens que escavam, aos poucos, o granito
fizeram dele quase uma esfinge.
e há muitos morros iguais, onde dormem esfinges,
á espera dos cansaços do futuro
Sem a luz ter sido feita no primeiro dia.
sem que possa haver descanso no último dia,
forças vagas vão criando a vida,
longe do rud rumor do muito real…
Na grande noite, uma lâmina cega
trabalha o bloco denso do Infinito,
talhando abstrações
E, de monte para monte, se transmitem
transcendências absurdas:
o problema
dado ao elefante Iriarte pelo Deus Vichnu…
– João Guimarães Rosa, do livro “Magma”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 128-129.
§
Paraíso filosófico
No jardim dos Hespéridas, sem flores
na discrição dos tufos de folhagem,
passeiam passos lentos
homens de túnica longa,
como os magos da Rosa-Cruz.
Sob os pomos das luzes do Capricórnio aceso,
o relógio do tempo
há muito que parou, os dedos superpostos,
como o dia e a noite,
porque não há mais noite e nem dia…
Ar parado,
lagos vidrados,
e vasos,
muitos vasos,
vasos vazios…
Os anciãos perpassam
intérminos terraços,
com olhos tranquilos, olhos gelados,
de tanto olharem o sol.
E as mãos tateiam calmas,
como se os dedos mergulhassem
a translucidez de uma água,
esculpindo
invisíveis e impossíveis formas novas…
– João Guimarães Rosa, do livro “Magma”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 130.
§
Saudade
Saudade de tudo!…
Saudade, essencial e orgânica,
de horas passadas,
que eu podia viver e não vivi!…
Saudade de gente que não conheço,
de amigos nascidos noutras terras,
de almas órfãs e irmãs,
de minha gente dispersa,
que talvez até hoje ainda espere por mim…
Saudade triste do passado,
saudade gloriosa do futuro,
saudade de todos os presentes
vividos fora de mim!…
Pressa!…
Ânsia voraz de me fazer em muitos,
fome angustiosa da fusão de tudo
sede da volta final
da grande experiência:
uma só alma em um só corpo,
uma só alma-corpo,
um só,
um!…
Como quem fecha numa gota
o Oceano
afogado no fundo de si mesmo…
– João Guimarães Rosa, do livro “Magma”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 132.
§
Bibliocausto
Que a minha mão não trema
ao deitar no fogo forte e primitivo
todos os traidores
que me deram veneno.
Queimarei o frio
geometrizador da vida
lapidada através de lentes bem polidas
(ah, o horror daquela pedra voando,
tangida pela mão de não sei que demônio,
e a pensar, pelo espaço, que ainda tem arbítrio!…)…
Queimarei o detrator,
maníaco e vaidoso,
que quis deter a vida numa câmara lenta,
para a tingir depois numa câmara escura
(ah, o inferno galopando às doidas,
nos cavalos sem freios
da vontade cega e sem destino!…)…
Queimarei o louco,
ébrio de orgulho,
raivoso de fraqueza,
que destilava haxixe em frascos verdes
na paisagem alpina
(ah, o prazer com que ainda o queimaria
em cada uma das voltas pavorosas
do seu Eterno Retorno!…)…
E só ficará comigo
o riso rubro das chamas, alumiando o preto
das estantes vazias.
Porque eu só preciso de pés livres,
de mãos dadas,
e de olhos bem abertos…
– João Guimarães Rosa, do livro “Magma”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 138-139.
§
Amanhecer
Floresce, na orilha da campina,
esguio ipê
de copa metálica e esterlina.
Das mil corolas,
saem vespas, abelhas e besouros,
polvilhados de ouro,
a enxamear no leste, onde vão pousando
nas piritas das acácias amarelas.
Dos charcos frios
sobem a caçá-los redes longas,
lentas e rasgadas de neblina.
Nuvens deslizam, despetaladas,
e altas, altas,
garças brancas planam.
Dançam fadas alvas,
cantam almas aladas,
na taça ampla,
na prata lavada,
na jarra clara da manhã…
– João Guimarães Rosa, do livro “Magma”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 140.
§
Chuva
Vai chover chuva de vento.
Já estou sentindo um cheiro d’água,
que vem do céu cinzento.
As formigas lavadeiras cruzam o quintal
em filas compridas de correição.
Minhocas brotam à flor da terra.
– Eh aguão!…
A chuva vai vir da banda da serra,
porque o joão-de-barro abriu a sua porta
virada para o sul.
As sementinhas do meloso seco
devem estar lançando na poeira.
Eu não ouvi o primeiro trovão,
mas o zebu está escutando,
com a cabeça encostada no chão.
Três urubus passam no alto,
em vôo lento,
em reta longa.
Vão para as lapas dos lajedos.
“Vai fazer tua casa, Urubu!…
Tempo de chuva aí vem, Urubu!…”
Já deve estar chovendo nas cabeceiras da serra,
porque o ribeirão engrossa, cor de terra.
Vai chover chuva de vento.
Os bois vêm correndo, pasto abaixo,
procurando as árvores do capão.
Vai invernar…
Eu hoje amanheci alegre,
querendo cantar…
O vento já chegou nas casuarinas,
e o sapo saiu de debaixo da laje
para um buraco no meio do pátio
onde vai se encher uma lagoa.
– Eh aguão!…
– Olá, José, arreia meu Cabiúna,
liso do casco à testa,
preto do rabo à crina,
que eu vou sair pelo cerrado afora,
a galopar, com a chuva me correndo atrás…
Ela já vem, branquinha, cheirando a água nova,
e a serra está clarinha, neblinando…
A chuva vem rolando, vem chiando,
e o vento assoviando
– Galopa, Cabiúna, que a água vem vindo,
e as sementinhas do meloso seco estão dançando…
– João Guimarães Rosa, do livro “Magma”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 142-144.
§
Integração
Deitado no chão, fofo de tantas chuvas,
acompanho as pontas dos cipós que oscilam,
o respirar das folhas,
o saltitar de cócegas nas patas dos gafanhotos,
e o crescer rampante da trepadeira brava,
avançando em meus braços.
Oh! a canção viva
do liso verde-azul dos sanhaços nos galhos,
e o pio dos gaturamos maduros,
fino e gostoso como um caldo de fruta!…
O céu,
limpo, azul e côncavo, na altura,
é um recanto de corpo,
pronto a se contrair, ao primeiro contato,
num único espasmo de volúpia sóbria…
Inútil erguer-me: mais alta é a gameleira…
Mas meus dedos afundam no chão amolecido,
como raízes nuas…
Desce-me ao fundo do peito e terra inteira,
no cheiro molhado da poeira,
e os meus olhos sobem, tateando os verdes…
– João Guimarães Rosa, do livro “Magma”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 145.
§
Consciência cósmica
Já não preciso de rir.
Os dedos longos do medo
largaram minha fronte.
E as vagas do sofrimento me arrastaram
para o centro do remoinho da grande força,
que agora flui, feroz, dentro e fora de mim…
Já não tenho medo de escalar os cimos
onde o ar limpo e fino pesa para fora,
e nem deixar escorrer a força dos meus músculos,
e deitar-me na lama, o pensamento opiado…
Deixo que o inevitável dance, ao meu redor,
a dança das espadas de todos os momentos.
e deveria rir, se me retasse o riso,
das tormentas que poupam as furnas da minha alma,
dos desastres que erraram o alvo do meu corpo…
– João Guimarães Rosa, do livro “Magma”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 146.
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