Cenário fictício: 10 de agosto de 2017, em uma cidade próxima. Auditório de uma universidade de Direito lotado para uma palestra. Mesa expositora composta por membros da mais alta elite jurídico-política das instituições brasileiras. Fala de encerramento de um palestrante: (…) Machismo ou realidade? É preciso reconhecer que determinadas situações representam um alto risco para vida e segurança das mulheres e é preciso que elas tenham consciência disso. Mulheres que bebem até cair se colocam em situação de risco para estupro e é preciso que elas tenham consciência disso. Não estou culpabilizando a vítima, a culpa nunca é da vítima. Mas mulheres que bebem se colocam na situação, assumem o de risco…
Essa é uma fala corriqueira, aparentemente inofensiva, mas que nos seus desdobramentos práticos e no contexto atual tem efeitos extremamente nocivos. Através de uma brincadeira clássica serão elencados de forma breve algumas questões dissimuladas nesse discurso sofisticado que se apresenta corriqueiramente cheio de boas intenções:
1 – O enfoque no comportamento da vítima:
Será que as 47,6 mil mulheres estupradas em 2014 (legalmente registradas) usavam roupas curtas ou beberam até cair? Quantas das 4.465 mulheres assassinadas na última década no Brasil estavam tarde da noite em ruas desertas ou escuras? O que será que mulheres negras fazem para aumentar o risco das suas próprias mortes, já que nos últimos 10 anos houve um aumento de 54% de assassinatos nesse perfil (2003 a 2013), enquanto o número de mulheres brancas assassinadas caiu 10% no mesmo período?
São perguntas evidentemente absurdas e grotesca, mas que são exemplificações concretas do que pode ser extraído quando se faz uma análise de violências de gênero centralizadas nos comportamento das pretensas vítimas.
2- Manual do bom comportamento para mulheres:
Lembram da fala do policial Michael Sanguinetti em uma palestra sobre segurança na Escola de Direito Osgode Hall, em Toronto, que impulsionou o movimento do SlutWalk (marcha das vadias)? No episódio Sanguinetti teria dito aos/às estudantes: “Vocês sabem, eu acho que nós estamos fazendo rodeios aqui. Disseram-me que eu não deveria dizer isso, mas as mulheres devem evitar se vestir como vagabundas, para não ser tornarem vítimas (de ataques)”. Qual a diferença dessa fala para a ilustrada no nosso cenário fictício? Nenhuma, talvez a franqueza e falta de sofisticação ao posicionar a vítima como uma das responsáveis pelo estupro.
É interessante observar que essas falas escancaram uma falta de vontade e de preparo das políticas de segurança pública no que tange a violências de gênero. Ao invés de problematizar as ações dos agressores e a própria conjuntura da sociedade, que alimentam essas violências, opta-se por uma via curta, perversa e superficial que observa o comportamento das mulheres. A mulher estava na rua ou em casa? Que roupa ela usava? Quanto será que ela bebeu?
Dessa forma o estupro figura como uma espécie de dispositivo de controle social1 legítimo e apto a determinar diretrizes de comportamentos adequados e ideais para as mulheres: “Ninguém é estuprada lavando a louça.”
3- A bebida como manobra de deslocamento:
Por que, para se falar de violência de gênero, é preciso usar a imagem de uma mulher ingerindo álcool, senão para promover no imaginário social de dominação o “direito” da punição, do controle pela força?
A bebida têm uma dupla função nessas discussões: 1) reforçar a culpabilização de mulheres que ao beberem se entregariam de bandeja à possíveis situações de violência, ; 2) garantir o privilégio da dúvida nas ações e escolhas do agressor. É como afirma a brilhante advogada criminalista e professora de Direito Penal da UFPR e PUCPR, Priscila Plachá em suas aulas: é impressionante o papel da bebida (drogas em geral) nessas discussões. Ela tem uma capacidade de (re) direcionar a linha argumentativa para caminhos totalmente diversos. A bebida agrava a condição de responsabilidade da vítima, questionando até que ponto ela se colocou naquela situação ao ingerir conscientemente a substância, mas a mesma tem uma capacidade de desresponsabilização do autor ao lhe garantir o direito da dúvida. Será que a mulher não se ofereceu nem um pouquinho? Será que ela não incentivou?
4 – A naturalização do constructo “homem-predador”
Esse tipo de análise que se centraliza no papel interpretado pela vítima, no caso mulheres, é em geral uma fantasia de homens sobre o que a Mulher deveria ser. Elas são projeções de como a mulher deveria ser através do olhar do Homem. Trata-se de um olhar masculino que atribui à mulher um papel de submissão que comporta diversas significações hierarquizadas2. Nos seus desdobramentos, essa lógica revela mais sobre um suposto imaginário de quem deve ser o Homem do que se possa imaginar…
É interessante observar que o papel interpretado por mulheres serve de fonte primária para a construção do papel interpretado pelo homem. Seguindo a lógica, se a Mulher é uma vítima-coisa, uma presa, um corpo a ser possuído, o Homem, em contrapartida, é o predador, o garanhão mulherengo, o estuprador em potencial… Bizarro, não? Mas seguindo a extensão da linha de raciocínio é exatamente aí que vamos esbarrar: “Prendam suas cabras, pois o bode está solto”.
5 – A invisibilização dos espaços domésticos:
Esse tipo de comentário fomenta um imaginário de que a maioria dos crimes de violência de gênero ocorrem nos espaços públicos. Entretanto, segundo dados levantados pelo Ipea em 2011, 70% dos estupros são cometidos por parentes, namorados ou amigos/conhecidos da vítima, o que indica que o principal agressor está no espaço doméstico, visto que as diversas forma de violência ocorrem principalmente dentro dos lares.
6 – A invisibilização de outros grupos:
Uma outra questão que é colocada no lado de fora nesses discursos tão preocupados com o que mulheres devem/podem fazer para não assumirem riscos, são os outros grupos vítimas de estupro. Segundo dados do Ipea de 2011, 70% das vítimas de estupro no Brasil são crianças e adolescentes. Destaque-se que em metade das ocorrências envolvendo menores (meninas na faixa de 17 anos) há um histórico de estupros anteriores e,novamente, 70% dos estupros são cometidos por parentes, namorados ou amigos/conhecidos da vítima.
Também muito pouco comentado e empurrado cada vez mais para a sombras -inclusive por esse tipo de discurso – é o abuso de meninos. Registrou-se em 2014 uma média diária de 13 denúncias de abusos de meninos. O número ainda representa menos de 30% dos casos com meninas, mas de acordo com especialistas, também é alarmante.
Depois de todos esses dados é ainda concebível discorrer sobre estupro como algo relacionado ao comportamento de mulheres? Será que estupro é coisa de mulher?
7- Quem fala, onde fala, para quem fala e sobre o que se fala:
Dentre todas as possibilidades que é possível investigar na temática de violência de gênero, será que o mais adequado (eticamente) para um homem na figura de intelectual ou membro da elite jurídico-política é analisar o comportamento de mulheres na sociedade brasileira? Se fosse uma mulher na figura de intelectual ou membro da elite jurídico-política, seria ainda assim adequado?
Não se trata de defender que há um lugar de fala rígido e específico, delimitado, por exemplo, por um rótulo de gênero. Na perspectiva que me debruço, apoiada, por exemplo, em postulados de Foucault e Linda Alcoff, os espaços de falas são por óbvio abertos a todos/as, mas isso não quer dizer que é possível dizer qualquer coisa na teoria. É preciso ter uma atitude exigente, prudente e experimental apta a confrontar o que se pensa, o que se diz com o que se faz, o que se é, onde se fala, do que se fala e para quem se fala.
Resgatando o contexto fictício: Não é no mínimo perturbador um homem, na posição de intelectual-palestrante, representante de uma elite jurídico-política, falar sobre o comportamento de mulheres, criando representações de mulheres na sociedade brasileira, na temática de violência de gênero para uma platéia? Notem não se trata, por exemplo, de uma conversa pessoal entre pai e filha. É uma conversa com uma platéia, uma plateia que no caso é composta (teoricamente) por futuros/as integrantes das instituições jurídicas do país… Qual a contribuição para esse tipo de público que essa fala pode ter? Lembrando que no Brasil apenas 35% dos casos de estupros são notificados e dentre os motivos para subnotificações tão baixas está a vergonha das vítimas, o sentimento de culpa e o medo de ser julgada e maltratada por aqueles de quem deveria receber apoio e ajuda – em casa, na delegacia ou no hospital.
Num país em que 33,3% da população acredita que a vítima é culpada, em que 42% dos homens acham que mulheres que se dão ao respeito não são estupradas e que 30% dos homens acreditam que mulher que usa roupas provocativas não pode reclamar se for estuprada, será mesmo que uma fala dessas tem algo a acrescentar? Nesse cenário em que o machismo é a realidade constata em dado pelo Datafolha (2016) onde está o bom mocismo dessa fala?
1 Brownmiller, Susan. Against Our Will: Men, Women, and Rape. Simon & Schuster. 1975
2 Beauvoir, Simone. O Segundo sexo: fatos e mitos; tradução de Sérgio Milliet. 4 ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1980.
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