Em dezembro passado morreram dois italianos que participaram ricamente da história do cinema brasileiro: Andrea Tonacci e Antonio Meliande. Nascidos no exterior, mas imersos e interessados nos problemas daqui, não foram casos isolados de “gringos” que se fizeram cineastas aqui, ou ao menos, em sua passagem, tiveram ou ainda tem notável contribuição para com a sétima arte tupiniquim.
Vários nomes poderiam ser mencionados, desde o moçambicano Ruy Guerra, figura central do Cinema Novo, até o chinês John Doo ou o português Jean Garrett, ambos cineastas da Boca do Lixo. Tão ou mais notável é a presença de diretores de vizinhos sulamericanos, e três argentinos merecem lembrança imediata, como capítulos à parte no cinema brasileiro: Carlos Hugo Christensen, Gustavo Dahl e Hector Babenco.
Christensen, criado em Buenos Aires, chegaria ao Brasil na década de 50, fugindo de seu país natal por problemas políticos. Passaria antes por outros países, como Peru e Venezuela, e aqui se ancoraria. Com imensa versatilidade, incorporou um “espírito de brasilidade” como poucos, filmando o Rio de Janeiro com cenário, tendo Orígenes Lessa e Pedro Bloch como roteirista e adaptando a literatura brasileira para as telas. “O menino e o vento”, de 1966, adaptação do conto de Aníbal Machado, é um registro pra lá de sensível sobre o interior de Minas Gerais.
Gustavo Dahl rodou “O bravo guerreiro” (1969), obra-prima do cinema político brasileiro, além de “Uirá” (1973), “Tensão no Rio” (1981) e diversos documentários. Sua importância se estende no âmbito político, tendo trabalhado nas extintas Embrafilme e Concine e dirigido o Centro Técnico Audiovisual até de sua morte, em 2011.
Babenco, nascido em Mar del Plata, se tornaria um dos mais prestigiados diretores brasileiros ao redor do mundo. “Pixote” (1981) seria sucesso no Brasil e no exterior, o que lhe garantiria um elenco internacional em “O beijo da mulher aranha” (1984), com direito a Oscar de melhor ator para William Hurt. Com “Ironweed” (1987), seria o primeiro (argentino) brasileiro a ter as portas abertas em Hollywood, com Jack Nicholson e Meryl Streep no elenco. Realizaria pérolas não tão lembradas (injustamente) como “Brincando nos campos do Senhor” (1991) e “Coração iluminado” (1997), e voltaria ao sucesso de bilheteria com “Carandiru” (2003). Babenco faleceu em 2016, pouco após filmar “Meu amigo hindu”, com Willem Dafoe.
Em “Pixote” e também em “Lúcio Flávio” (1977), seu primeiro grande sucesso, trabalhou com o maranhense José Louzeiro e com o chileno Jorge Durán como roteiristas. Durán se tornaria outra figura singular do cinema brasileiro, não apenas por sua capacidade de entendimento da realidade deste país, mas por sua vocação para, de certa maneira, sintetizar uma espécie de “espírito latino-americano” em sua obra. Falemos um pouco de Jorge Durán.
Tal como Carlos Hugo Christensen, Durán aportou no Brasil após problemas políticos em seu país natal – chegou aqui em 1973, ano do golpe de estado promovido por Pinochet. Sua preocupação política se encontra presente não apenas em suas parcerias como roteirista, mas sobretudo em seu trabalho como diretor de cinco longas-metragens. Em “Lúcio Flávio” e “Pixote” de Babenco, já surgem características que encontraremos em seu trabalho “solo”, como diretor, argumentista e roteirista. A aversão às autoridades, a polícia corrupta e violenta, o Estado patrocinador da brutalidade e no caso de “Lúcio Flávio”, a referência ao regime militar e aos esquadrões da morte. O mesmo espírito se encontraria em “Nunca fomos tão felizes” (1984), longa de Murilo Salles roteirizado pelo chileno-brasileiro, história vivida no auge da repressão do regime militar brasileiro.
Jorge Durán faria sua estreia na direção em 1978, com “O escolhido de Iemanjá”. Misto de drama com aventura, traz como eixo a necessidade de resistência de uma comunidade carioca perante o poder do capital – assunto que de tempos em tempos ressurge no cinema nacional e cuja reencarnação mais recente e famosa se encontra em “Aquarius”.
Seu trabalho seguinte como diretor será, talvez, o mais marcante de sua carreira. “A cor do seu destino” (1987) é o que poderíamos chamar de uma autêntica obra latino-americana. Um filme sobre a ditadura chilena ambientado em pleno Rio de Janeiro, com elenco quase todo brasileiro. Trama que envolve uma família formado por um pai chileno (Franklin Caicedo), uma mãe brasileira (Norma Bengell), que no Chile se conheceram e cujo filho mais velho (Chico Diaz, que surge em lembranças a todo momento), foi preso e morto pelo regime de Pinochet. Estamos no Brasil, década de 80, e o protagonismo passa ao filho caçula, Paulo, vivido por Guilherme Fontes, nascido em Santiago mas criado no Rio, adolescente às turras com a namorada (Andrea Beltrão) e que hospeda a prima chilena Patrícia (Júlia Lemmertz), que havia sido presa no Chile.
Em meio ao calor feérico do Rio, as lembranças do Chile povoam todo o filme, na mente de Paulo, cada vez mais interessado e revoltado com a situação que vitimou seu irmão, curioso com o passado da família. A presença de Patrícia re-estabelece de forma avassaladora sua conexão com o Chile. Durán compõe um drama político que, se ataca a ditadura chilena, parece se referenciar também à brasileira, ou à argentina, ou à uruguaia; em suma, um filme sobre a brutalidade dos regimes que marcaram a América Latina. Ao mesmo tempo, coloca em evidência uma geração confusa, oitentista, meio hedonista, mas também curiosa sobre o passado recente.
Aqui também surge outra marca do universo de Durán: a figura dos jovens, assunto pra lá de presente em sua obra, como veremos em “Proibido proibir” (2007) e “Romance policial” (2014). Ainda sobre “A cor de seu destino”: a cena final, envolvendo os personagens de Guilherme Fontes, Andrea Beltrão e Júlia Lemmertz, na embaixada chilena no Rio, é uma das mais fortes e belas do cinema brasileiro da década de 80.
O próximo longa do diretor chileno-brasileiro seria realizado somente vinte anos depois. “Proibido proibir”, com Caio Blat, Alexandre Rodrigues e Maria Flor no centro das atenções, traz as preocupações centrais do cineasta: os conflitos da juventude, sua discussão meio confusa sobre política, a violência policial e o desamparo dos mais pobres. Filme que por vezes assume postura de indignação, e no qual Durán mostra muita sensibilidade ao tratar da miséria carioca, entre outros assuntos.
“Não se pode viver sem amor” (2010) talvez seja seu trabalho mais singular. Como sempre num cenário tipicamente carioca, traz elementos fantásticos, dialoga abertamente com a fantasia. O desfecho desse filme já meio esquecido é surpreendente, e em alguma medida, encantador.
Seu último trabalho até o momento é “Romance policial”, protagonizado por Daniel de Oliveira e a chinela Daniela Ramírez. Tal como em “A cor de seu destino”, não apenas a política, mas o retorno ao Chile, adentram o coração da narrativa. Daniel de Oliveira é Paulo, rapaz que deixa o Rio em busca de aventura, e vai parar no Atacama. Daí se sucede uma série de intrigas por conta de um assassinato no local. Em clima de suspense, temos um brasileiro rodeado por chilenos em seu país, com as belas paisagens do Atacama, picos gelados, formações exóticas e atmosfera mística. Códigos essenciais do cinema de Durán ressurgem com força, como seu interesse pela juventude e seus rumos e o desafio às autoridades – inclusive com referências aos tempos de Pinochet.
Assim como Babenco e Christensen, que ora e outra voltavam a seus países de origem, Durán transita entre Brasil e Chile – países a um só tempo vizinhos e distantes – com desenvoltura, confunde-se com ambos. Consegue concatenar imagens da Guanabara com montanhas geladas andinas e paisagens desérticas, como as que surgem em “A cor de seu destino”. Sobretudo, consegue a façanha – raríssima em nossas terras – de mostrar o quão estamos, latino-americanos, mais próximos e parecidos do que supomos.
* André de Paula Eduardo é jornalista, formado na Unesp, onde fez mestrado em Comunicação. Pesquisa cinema brasileiro, torce pro Santos e é apaixonado por Brahms e Pink Floyd. Colunista e colaborador da Revista Prosa Verso e Arte.
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