Um sonho eterno – Transcrição dos comentários gravados do narrador e poeta argentino Jorge Luis Borges (2 de julho de 1983)
Minha primeira lembrança de Kafka é do ano de 1916, quando decidi aprender o idioma alemão. Antes, tinha tentado estudar russo, mas fracassei. O alemão acabou sendo muito mais simples e a tarefa foi gratificante. Tinha um dicionário alemão-inglês e depois de uns meses não sei se conseguia entender o que lia, mas podia apreciar a poesia de alguns autores. E foi quando li o primeiro livro de Kafka que, embora não lembre agora exatamente, acho que se chamava Onze Contos.
O fato de que Kafka escrevia de maneira tão simples me chamou a atenção, já que eu mesmo podia entendê-lo, apesar de o movimento impressionista, tão importante nessa época, ter sido marcado, em geral, pelo barroco, que jogava com as infinitas possibilidades do idioma alemão. Depois, tive a oportunidade de ler O Processo e a partir desse momento passei a acompanhar sua obra continuamente. A diferença essencial em relação aos seus contemporâneos e até mesmo aos grandes escritores de outras épocas, como Bernard Shaw e Chesterton, por exemplo, é que com eles o leitor é obrigado a levar em conta a referência local, a conotação do tempo e do lugar. O que também é o caso de Ibsen e de Dickens.
Kafka, por outro lado, tem textos, sobretudo os contos, onde se estabelece algo eterno. Podemos ler Kafka e pensar que suas fábulas são tão antigas como a história, que esses sonhos foram sonhados por homens de outra época sem necessidade de vinculá-los à Alemanha ou à Arábia. O fato de haver escrito um texto que ultrapassa (em informação) o momento de sua concepção, é notável. É possível pensar que foram redigidos na Pérsia ou na China e aí está seu valor. E quando Kafka faz referências é profético. O homem que está aprisionado por uma ordem, o homem contra o Estado, esse foi um de seus temas preferidos.
Eu traduzi o livro de contos cujo primeiro título é ‘A Transformação’ e nunca soube por que todos decidiram chamá-lo de ‘A Metamorfose’. É um disparate, eu não sei quem teve a ideia de traduzir assim essa palavra do mais simples alemão. Quando trabalhei com a obra, o editor insistiu em deixá-la como está porque já era famosa e se vinculava a Kafka. Acho que os contos são superiores a seus romances, que, por outro lado, nunca terminam. Têm um número infinito de capítulos, porque seu tema é de um número infinito de postulações.
Gosto mais de seus relatos breves e, embora não haja, agora, nenhuma razão para qualificar um sobre outro, escolheria aquele conto sobre a construção da muralha. Eu escrevi também alguns contos nos quais tratei, ambiciosa e inutilmente, de ser Kafka. Há um, intitulado La Biblioteca de Babel e algum outro, que foram exercícios na tentativa de ser Kafka. Esses contos eram interessantes, mas eu me dei conta de que não tinha cumprido meu propósito e de que devia buscar outro caminho. Kafka foi tranquilo e até um pouco secreto e eu escolhi ser escandaloso.
Comecei sendo barroco, como todos os jovens escritores e agora trato de não sê-lo. Tentei também ser anônimo, mas qualquer coisa que escreva se reconhece imediatamente. Kafka não quis publicar muito em vida e pediu que destruíssem sua obra, o que me lembra o caso de Virgílio, que também encarregou seus amigos de destruírem a não concluída Eneida. A desobediência destes fez com que, felizmente para nós, a obra se conservasse. Eu acho que nem Virgílio nem Kafka queriam, na realidade, que seus trabalhos fossem destruídos. Senão eles mesmos teriam se encarregado do trabalho. Se eu atribuo a tarefa a um amigo, é um modo de dizer que não me responsabilizo. Meu pai escreveu muitíssimo e queimou tudo antes de morrer.
Kafka foi um dos grandes autores de toda a literatura. Para mim, é o número um deste século. Eu estive nos atos do centenário de Joyce e quando alguém o comparou com Kafka disse que isso era uma blasfêmia. É que Joyce é importante dentro da língua inglesa e de suas infinitas possibilidades, mas é intraduzível. Por outro lado, Kafka escrevia em um alemão muito simples e delicado. Ele se importava com a obra e não com a fama, isso é indubitável. De todas as maneiras, Kafka, esse sonhador que não quis que seus sonhos fossem conhecidos, agora é parte desse sonho universal que é a memória. Nós sabemos quais são suas datas, qual foi sua vida, que é de origem judaica e tudo, mas isso vai ser esquecido, apenas seus contos continuarão a serem contados.
*Originalmente publicado por El País Brasil, em 8.4.2015.
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