LITERATURA

Jorge Luis Borges – poemas

POEMA DOS DONS
Ninguém rebaixe a lágrima ou censura
Esta declaração da maestria
De Deus, que com magnífica ironia
Me deu mil livros e uma noite escura.

Desta terra de livros fez senhores
A olhos sem luz, que apenas se concedem
Sonhar com bibliotecas e com cores
De insensatos parágrafos que cedem

As manhãs ao seu fim. Em vão o dia
Lhes oferta seus livros infinitos,
Árduos como esses árduos manuscritos
Que pereceram em Alexandria.

De fome e sede (narra a história grega)
Morre um rei entre fontes e jardins;
Eu erro sem cessar pelos confins
Dessa alta e funda biblioteca cega.

Enciclopédias, atlas, o Oriente
E o Ocidente, eras, dinastias,
Símbolos, cosmos e cosmogonias
Brindam os muros, mas inutilmente.

Lento nas sombras, a penumbra e o nada
Exploro com o báculo indeciso,
Eu, que me figurava o Paraíso
Como uma biblioteca refinada.

Algo, que nomear ninguém se atreva
Com a palavra acaso, arma os eventos;
Outro já recebeu noutros cinzentos
Ocasos os mil livros e esta treva.

Ao errar pelas lentas galerias
Chego a sentir com vago horror sagrado
Que sou o outro, o morto, tendo dado
Os mesmos passos pelos mesmos dias.

Qual de nós dois escreve este poema
De um eu plural e de uma mesma mente?
Que importa o verbo que me faz presente
Se é uno e indivisível o dilema?

Groussac ou Borges, olho este querido
Mundo que se deforma e que se apaga
Em uma pálida poeira vaga
Que se parece ao sonho e ao olvido.

.

POEMA DE LOS DONES
Nadie rebaje a lágrima o reproche
Esta declaración de la maestría
De Dios, que con magnífica ironía
Me dio a la vez los libros y la noche.

De esta ciudad de libros hizo dueños
A unos ojos sin luz, que sólo pueden
Leer en las bibliotecas de los sueños
Los insensatos párrafos que ceden

Las albas a su afán. En vano el día
Les prodiga sus libros infinitos,
Arduos como los arduos manuscritos
Que perecieron en Alejandría.

De hambre y de sed (narra una historia griega)
Muere un rey entre fuentes y jardines;
Yo fatigo sin rumbo los confines
De esta alta y honda biblioteca ciega.

Enciclopedias, atlas, el Oriente
Y el Occidente, siglos, dinastías,
Símbolos, cosmos y cosmogonías
Brindan los muros, pero inútilmente.

Lento en mi sombra, la penumbra hueca
Exploro con el báculo indeciso,
Yo, que me figuraba el Paraíso
Bajo la especie de una biblioteca.

Algo, que ciertamente no se nombra
Con la palabra azar, rige estas cosas;
Otro ya recibió en otras borrosas
Tardes los muchos libros y la sombra.

Al errar por las lentas galerías
Suelo sentir con vago horror sagrado
Que soy el otro, el muerto, que habrá dado
Los mismos pasos en los mismos días.

¿Cuál de los dos escribe este poema
De un yo plural y de una sola sombra?
¿Qué importa la palabra que me nombra
Si es indiviso y uno el anatema?

Groussac o Borges, miro este querido
Mundo que se deforma y que se apaga
En una pálida ceniza vaga

Que se parece al sueño y al olvido.
– Jorge Luis Borges, em “Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista”. [traduções de Augusto de Campos]. São Paulo: Terracota, 2013.

§

XADREZ
I

Em seu grave rincão, dois jogadores
Regem peças, sem pausa. O tabuleiro
Os prende até a aurora no certeiro
Âmbito em que se odeiam duas cores.

Dentro irradiam mágicos rigores
As formas: torre homérica, ligeiro
Cavalo, audaz rainha, rei guerreiro,
Bispo oblíquo e peões ameaçadores.

Quando os rivais já se tiverem ido,
Quando o tempo os houver já consumido,
Por certo não terá cessado o rito.

O Oriente é a origem dessa guerra
Cujo anfiteatro é hoje toda a terra.
Como o outro, este jogo é infinito.

II

Tênue rei, bispo em viés, encarniçada
Rainha, torre à frente e peão alerta
No branco e negro de uma estrada incerta
Buscam e travam a batalha armada.

Não sabem que da mão predestinada
Do jogador depende o seu destino,
Nem sabem que um rigor adamantino
Sujeita-lhes o arbítrio e a jornada.

Também o jogador é prisioneiro
(Segundo Omar) de um outro tabuleiro
De negras noites e de brancos dias.

Deus move o jogador, e este, a peça.
Que Deus atrás de Deus a trama começa
De pó e tempo e sonho e agonias?

.

AJEDREZ
I

En su grave rincón, los jugadores
Rigen las lentas piezas. El tablero
Los demora hasta el alba en su severo
Ámbito en que se odian dos colores.

Adentro irradian mágicos rigores
Las formas: torre homérica, ligero
Caballo, armada reina, rey postrero,
Oblicuo alfil y peones agresores.

Cuando los jugadores se hayan ido,
Cuando el tiempo los haya consumido,
Ciertamente no habrá cesado el rito.

En el Oriente se encendió esta guerra
Cuyo anfiteatro es hoy toda la Tierra.
Como el otro, este juego es infinito.

II

Tenue rey, sesgo alfil, encarnizada
Reina, torre directa y peón ladino
Sobre lo negro y blanco del camino
Buscan y libran su batalla armada.

No saben que la mano señalada
Del jugador gobierna su destino,
No saben que un rigor adamantino
Sujeta su albedrío y su jornada.

También el jugador es prisionero
(La sentencia es de Omar) de otro tablero
De negras noches y de blancos días.

Dios mueve al jugador, y éste, la pieza.
¿Qué Dios detrás de Dios la trama empieza
De polvo y tiempo y sueño y agonía?
– Jorge Luis Borges, em “Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista”. [traduções de Augusto de Campos]. São Paulo: Terracota, 2013.

§

A LUIS DE CAMÕES
Sem lástima e sem ira o tempo vela
As heróicas espadas. Pobre e triste
Em tua pátria nostálgica te viste,
Oh capitão, para enterrar-te nela

E com ela. No mágico deserto
A flor de Portugal tinha perdido
E o áspero espanhol, antes vencido,
Ameaçava o seu costado aberto.

Quero saber se aquém dessa ribeira
Última compreendeste humildemente
Que tudo o que se foi, o Ocidente

E o Oriente, a espada e a bandeira,
Perduraria (alheio a toda a humana
Mudança) na tua Eneida Lusitana.

.

A LUIS DE CAMOENS
Sin lástima y sin ira el tiempo mella
Las heroicas espadas. Pobre y triste
A tu patria nostálgica volviste,
Oh capitán, para morir en ella

Y con ella. En el mágico desierto
La flor de Portugal se había perdido
Y el áspero español, antes vencido,
Amenazaba su costado abierto.

Quiero saber si aquende la ribera
Última comprendiste humildemente
Que todo lo perdido, el Occidente

Y el Oriente, el acero y la bandera,
Perduraría (ajeno a toda humana
Mutación) en tu Eneida lusitana.
– Jorge Luis Borges, em “Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista”. [traduções de Augusto de Campos]. São Paulo: Terracota, 2013.

§

LIMITES
Dos caminhos que estendem o poente
Um (não sei qual) há de ser percorrido
A última vez, por mim, indiferente,
E sem que o adivinhe, submetido

A Quem prefixa onipotentes normas
E uma secreta e rígida medida
Às sombras, imaginações e formas
Que destecem e tecem esta vida.

Se para tudo há termino e há compasso
E última vez e nunca mais e olvido,
Quem nos dirá de quem, em nosso espaço,
Sem sabê-lo, nos temos despedido?

Sob o cristal já gris a noite apaga;
Do alto dos livros que um borrão tisnado
Da sombra espalha pela mesa vaga,
Algum deles jamais será folheado.

Há no Sul um portão enferrujado
Com grandes jarras de alvenaria
E tunas que a mim estará vedado
Como se fosse uma litografia.

Para sempre fechaste a porta certa
E há um espelho que te aguarda insano;
A encruzilhada te parece aberta
E a vigília, quadrifonte, Jano.

Entre as memórias sempre existe aquela
Que se perdeu um dia no horizonte;
Não se verão descer àquela fonte
Nem o alvo sol nem a lua amarela.

Não achará tua voz o tom que o persa
Deu à sua língua de aves e de rosas,
Quando ao acaso, ante a luz dispersa,
Queiras dizer as coisas mais preciosas.

E o incessante Ródano e o logo,
Todo o ontem sobre o qual hoje me inclino?
Tão perdido estará como Cartago
Que no fogo e no sal viu o latino.

Creio ouvir na manhã o atarefado
Rumor de uma longínqua multidão.
É tudo o que foi caro e olvidado;
Espaço e tempo e Borges já se vão.

.

LÍMITES
De estas calles que ahondan el poniente,
Una habrá (no sé cuál) que he recorrido
Ya por última vez, indiferente
Y sin adivinarlo, sometido

A quién prefija omnipotentes normas
Y una secreta y rígida medida
A las sombras, los sueños y las formas
Que destejen y tejen esta vida.

Si para todo hay término y hay tasa
Y última vez y nunca más y olvido
¿Quién nos dirá de quién, en esta casa,
Sin saberlo, nos hemos despedido?

Tras el cristal ya gris la noche cesa
Y del alto de libros que una trunca
Sombra dilata por la vaga mesa,
Alguno habrá que no leeremos nunca.

Hay en el sur más de un portón gastado
Con sus jarrones de mampostería
Y tunas, que a mi paso está vedado
Como si fuera una litografía.

Para siempre cerraste alguna puerta
Y hay un espejo que te aguarda en vano;
La encrucijada te parece abierta
Y la vigila, cuadrifronte, Jano.

Hay, entre todas tus memorias, una
Que se ha perdido irreparablemente;
No te verán bajar a aquella fuente
Ni el blanco sol ni la amarilla luna.

No volverá tu voz a lo que el persa
Dijo en su lengua de aves y de rosas,
Cuando al ocaso, ante la luz dispersa,
Quieras decir inolvidables cosas.

¿Y el incesante Ródano y el lago,
Todo ese ayer sobre el cual hoy me inclino?
Tan perdido estará como Cartago
Que con fuego y con sal borró el latino.

Creo en el alba oír un atareado
Rumor de multitudes que se alejan;
Son lo que me ha querido y olvidado;
Espacio y tiempo y Borges ya me dejan.
– Jorge Luis Borges, em “Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista”. [traduções de Augusto de Campos]. São Paulo: Terracota, 2013.

§

BALTAZAR GRACIÁN
Labirintos, palíndromos, emblemas,
Gelada e laboriosa ninharia,
Foi para este jesuíta a poesia,
Reduzida por ele a estratagemas.
Alma sem música, foi todo engano:
Herbário de metáforas e argúcias,
Tendo veneração pelas astúcias
E desdém pelo humano e sobreumano.
Não o moveu a antiga voz de Homero
Nem a, de prata e lua, de Virgílio;
Não viu o amargo Édipo no exílio
Nem o Cristo morrendo no madeiro.
Às brilhantes estrelas orientais,
Que empalidecem pela vasta aurora,
Apodou com palavra pecadora
As galinhas dos campos celestiais.
Desconhecendo tanto o amor divino
Como o outro que em duas bocas arde,
Eis que o surpreende a Pálida uma tarde,
A decifrar estrofes de Marino.
Seu destino ulterior não há na história.
Abandonado às mutações da impura
Tumba o pó que antes foi sua figura,
A alma de Gracián entrou em glória.
O que sentiu ao contemplar de frente
Arquétipos e Luzes das alturas?
Chorou talvez e disse: inutilmente
Busquei alento em sonhos e imposturas.
O que lhe ocorre quando o inexorável
Sol de Deus, a Verdade, o ilumina?
Quem sabe o deixa cego a luz divina
Em meio a essa glória interminável?
Sei de outra conclusão. Preso aos seus temas
Minúsculos, Gracián não viu a glória
E segue revolvendo na memória
Labirintos, palíndromos e emblemas.

.

BALTAZAR GRACIÁN
Laberintos, retruécanos, emblemas,
Helada y laboriosa nadería,
Fue para este jesuita la poesía,
Reducida por él a estratagemas.
No hubo música em su alma; sólo un vano
Herbario de metáforas y argucias
Y la veneración de las astucias
Y el desdén de lo humano y sobrehumano.
No lo movió la antigua voz de Homero
Ni esa, de plata y luna, de Virgilio;
No vio al fatal Edipo en el exilio
Ni a Cristo que se muere en un madero.
A las claras estrellas orientales
Que palidecen em la vasta aurora,
Apodó con palabra pecadora
Gallinas de los campos celestiales.
Tan ignorante del amor divino
Como del otro que en las bocas arde,
Lo sorprendió la Pálida una tarde
Leyendo las estrofas del Marino.
Su destino ulterior no está en la historia;
Librado a las mudanzas de la impura
Tumba el polvo que ayer fue su figura,
El alma de Gracián entro en la gloria.
¿Qué habrá sentido al contemplar de frente
Los Arquetipos y los Esplendores?
Quizá lloró y se dijo: Vanamente
Busqué alimento en sombras y en errores.
¿Qué sucedió cuando el inexorable
Sol de Dios, La Verdad, mostro su fuego?
Quizá la luz de Dios lo dejó ciego
En mitad de la gloria interminable
Sé de otra conclusión. Dado a sus temas
Minúsculos, Grácian no vio la gloria
Y sigue resolviendo en la memória
Laberintos, retruécanos y emblemas.
– Jorge Luis Borges, em “Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista”. [traduções de Augusto de Campos]. São Paulo: Terracota, 2013.

§

O GÓLEM
Se (o Crátilo nos leva a inferi-lo)
O nome é o arquétipo da coisa,
Já nas letras de rosa está a rosa
E todo o Nilo na palavra Nilo.

Feito de consoantes e vogais,
Talvez exista um Nome, que a essência
De Deus encerre e que a Onipotência
Guarde em letras e sílabas cabais.

Adão e as estrelas souberam
No Jardim. Nas ferrugens do pecado
(Dizem os cabalistas) foi borrado
E as gerações já o perderam.

Os artifícios e o candor do homem
Não têm fim. Bem sabemos que houve um dia
Em que o povo de Deus buscava o Nome
Pelas vigílias dos Judeus sem guia.

Não à maneira de outras que uma vaga
Sombra insinuam numa vaga história,
Ainda está verde e vivo na memória
Judá Leão, que era rabino em Praga.

Sedento de saber o que Deus sabe,
Judá Leão tentou permutações
De letras e complexas variações
E pronunciou o Nome que é a Chave,

A Porta, o Eco, o Hóspede e o Paço,
Num boneco em que os seus dons inumanos
Lançou para ensinar a ele os arcanos
Das Palavras, do Tempo e do Espaço.

O simulacro alçou os sonolentos
Olhos e entreviu formas e cores
Sem entender, perdidos em rumores,
E ensaiou temerosos movimentos.

Gradualmente se viu (tal como nós)
Aprisionado na rede sonora
De Antes, Depois, Ontem, Enquanto, Agora,
Direita, Esquerda, Eu, Tu, Eles, Vós.

(O cabalista que oficiou o nume
À vasta criatura chamou Gólem;
Estas verdades as refere Scholem
En um douto lugar do seu volume.)

O rabi lhe explicava o universo
“Este é meu pé; o teu; esta é a soga”
E ao cabo de anos logrou que o perverso
Varresse bem ou mal a sinagoga.

Houve talvez um erro na grafia
Ou na articulação do Sacro Nome;
A despeito de tal feitiçaria,
Falar não soube o aprendiz de homem.

Seus olhos menos de homem que de cão,
E ainda menos de cão do que de coisa,
Seguiam o rabi na duvidosa
Penumbra dos pertences da prisão.

Algo anormal e tosco houve no Gólem,
Já que ao seu passo o gato do rabino
Se escondia. (Esse gato olvida Scholem
Mas, através do tempo, o descortino).

Elevando a seu Deus mãos filiais,
As devoções do seu Deus copiava,
Ou tolo e sorridente, se curvava
Em côncavos meneios orientais.

O rabi o mirava com ternura
E com algum horror. Como (dizia)
Pude engendrar esta penosa cria
E deixei a inação, que é a cordura?

Por que fui agregar à infinita
Série um símbolo a mais? Por que a vã
Trama eterna fui dar uma outra escrita,
Outra causa, outro efeito e outro afã?

Nos momentos de angústia e de luz vaga
A seu Gólem os olhos estendia.
Quem nos dirá as coisas que sentia
Deus, ao olhar o seu rabino em Praga?

.

EL GOLEM
Si (como afirma el griego en el cratilo)
El nombre es arquetipo de la cosa
En las letras de ‘rosa’ está la rosa
Y todo el nilo en la palabra ‘nilo’.

Y, hecho de consonantes y vocales,
Habrá un terrible nombre, que la esencia
Cifre de dios y que la omnipotencia
Guarde en letras y sílabas cabales.

Adán y las estrellas lo supieron
En el jardín. La herrumbre del pecado
(Dicen los cabalistas) lo ha borrado
Y las generaciones lo perdieron.

Los artificios y el candor del hombre
No tienen fin. Sabemos que hubo un día
En que el pueblo de dios buscaba el nombre
En las vigilias de la judería.

No a la manera de otras que una vaga
Sombra insinúan en la vaga historia,
Aún está verde y viva la memoria
De judá león, que era rabino en praga.

Sediento de saber lo que dios sabe,
Judá león se dio a permutaciones
De letras y a complejas variaciones
Y al fin pronunció el nombre que es la clave,

La puerta, el eco, el huésped y el palacio,
Sobre un muñeco que con torpes manos
Labró, para enseñarle los arcanos
De las letras, del tiempo y del espacio.

El simulacro alzó los soñolientos
Párpados y vio formas y colores
Que no entendió, perdidos en rumores
Y ensayó temerosos movimientos.

Gradualmente se vio (como nosotros)
Aprisionado en esta red sonora
De antes, después, ayer, mientras, ahora,
Derecha, izquierda, yo, tú, aquellos, otros.

(El cabalista que ofició de numen
A la vasta criatura apodó golem;
Estas verdades las refiere scholem
En un docto lugar de su volumen.)

El rabí le explicaba el universo
“Esto es mi pie; esto el tuyo, esto la soga.”
Y logró, al cabo de años, que el perverso
Barriera bien o mal la sinagoga.

Tal vez hubo un error en la grafía
O en la articulación del sacro nombre;
A pesar de tan alta hechicería,
No aprendió a hablar el aprendiz de hombre.

Sus ojos, menos de hombre que de perro
Y harto menos de perro que de cosa,
Seguían al rabí por la dudosa
Penumbra de las piezas del encierro.

Algo anormal y tosco hubo en el golem,
Ya que a su paso el gato del rabino
Se escondía. (ese gato no está en scholem
Pero, a través del tiempo, lo adivino.)

Elevando a su dios manos filiales,
Las devociones de su dios copiaba
O, estúpido y sonriente, se ahuecaba
En cóncavas zalemas orientales.

El rabí lo miraba con ternura
Y con algún horror. ‘¿Cómo’ (se dijo)
‘Pude engendrar este penoso hijo
Y la inacción dejé, que es la cordura?’

‘¿Por qué di en agregar a la infinita
Serie un símbolo más? ¿por qué a la vana
Madeja que en lo eterno se devana,
Di otra causa, otro efecto y otra cuita?’

En la hora de angustia y de luz vaga,
En su golem los ojos detenía.
¿Quién nos dirá las cosas que sentía
Dios, al mirar a su rabino en praga?
– Jorge Luis Borges, em “Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista”. [traduções de Augusto de Campos]. São Paulo: Terracota, 2013.

§

TEXAS
Aqui também. Aqui como no outro
Confim do continente, o infinito
Campo em que morre solitário o grito;
Aqui também o índio, o laço, o potro.

Aqui também o pássaro secreto
Que por sobre os estrépitos da história
Canta para uma tarde e sua memória;
Aqui também o místico alfabeto

Dos astros, que hoje ditam a meu cálamo
Nomes que o incessante labirinto
Dos dias não arrasta: São Jacinto

E essas outras Termópilas, o Álamo.
Aqui também essa desconhecida
E ansiosa e breve coisa que é a vida.

.

TEXAS
Aquí también. Aquí, como en el otro
Confín del continente, el infinito
Campo en que muere solitario el grito;
Aquí también el indio, el lazo, el potro.

Aquí también el pájaro secreto
Que sobre los fragores de la historia
Canta para una tarde y su memoria;
Aquí también el místico alfabeto

De los astros, que hoy dictan a mi cálamo
Nombres que el incesante laberinto
De los días no arrastra: San Jacinto

Y esas otras Termópilas, el Álamo.
Aquí también esa desconocida
Y ansiosa y breve cosa que es la vida.
– Jorge Luis Borges, em “Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista”. [traduções de Augusto de Campos]. São Paulo: Terracota, 2013.

§

COMPOSIÇÃO ESCRITA EM SEU EXEMPLAR DA GESTA DE BEOWULF
Às vezes me pergunto que razões
Me movem a estudar sem esperança
De precisão, enquanto a noite avança,
O idioma dos ásperos saxões.

No desgaste dos anos a memória
Deixa cair em vão a repetida
Palavra e é assim que a minha vida
Tece e destece a sua exausta história.

Porventura de algum modo, contudo,
Secreto e suficiente a alma sabe
Que é imortal e que seu vasto e grave

Círculo abarca tudo e pode tudo.
Mas além deste afã e deste verso
Me aguarda inesgotável o universo.

.

COMPOSICIÓN ESCRITA EN UN EJEMPLAR DE LA GESTA DE BEOWULF
A veces me pregunto qué razones
Me mueven a estudiar sin esperanza
De precisión, mientras mi noche avanza
La lengua de los ásperos sajones.

Gastada por los años la memoria
Deja caer la en vano repetida
Palabra y es así como mi vida
Teje y desteje su cansada historia.

Será (me digo entonces) que de un modo
Secreto y suficiente el alma sabe
Que es inmortal y que su vasto y grave

Círculo abarca todo y puede todo.
Más allá de este afán y de este verso
Me aguarda inagotable el universo.
– Jorge Luis Borges, em “Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista”. [traduções de Augusto de Campos]. São Paulo: Terracota, 2013.

§

CAMDEN, 1982
O cheiro do jornal e dos periódicos.
O domingo e seus tédios. A manhã
E na entrevista página essa vã
Publicação de versos alegóricos

De um colega feliz. O homem velho
Está prostrado e branco na decente
Habitação de pobre. Ociosamente
Olha seu rosto no cansado espelho.

Pensa, já sem assombro, que esse cara
É ele. Incerta, a mão acaso toca
A barba turva e a saqueada boca.

Não está longe o fim. Sua voz declara:
Quase não sou, mas os meus versos ritmam
A vida e sua glória. Sou Walt Whitman.

.

CAMDEN, 1982
El olor del café y de los periódicos.
El domingo y su tedio. La mañana
Y en la entrevista página esa vana
Publicación de versos alegóricos

De un colega feliz. El hombre viejo
Está postrado y blanco en su decente
Habitación de pobre. Ociosamente
Mira su cara en el cansado espejo.

Piensa, ya sin asombro, que esa cara
Es él. La distraída mano toca
La turbia barba y saqueada boca.

No está lejos el fin. Su voz declara:
Casi no soy, pero mis versos ritman
La vida y su esplendor. Yo fui Walt Whitman.
– Jorge Luis Borges, em “Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista”. [traduções de Augusto de Campos]. São Paulo: Terracota, 2013.

§

EVERNESS
Só uma coisa não há. Esta é o olvido.
Deus, que salva o metal e salva a escória,
Numera na profética memória
As luas que serão e que hajam sido.

Tudo já está. Os mil reflexos velhos
Que por entre os crepúsculos do dia
Teu rosto foi deixando nos espelhos
E os que ainda irá deixando todavia.

E tudo é uma parte do diverso
Cristal dessa memória, o universo;
Não têm fim os seus árduos corredores

E as portas que se fecham ao teu passo:
Do outro lado do ocaso se abre o espaço
Para os Arquétipos e Resplendores.

.

EVERNESS
Sólo una cosa hay. Es el olvido.
Dios, que salva el metal, salva la escoria
Y cifra en su profética memoria
Las lunas que serán y que han sido.

Ya todo está. Los miles de reflejos,
Que entre los dos crepúsculos del día
Tu rostro fue dejando en los espejos
Y los que irá dejando todavía.

Y todo es una parte del diverso
Cristal de esa memoria, el universo;
No tienen fin sus arduos corredores

Y las puertas se cierran a tu paso,
Sólo del otro lado del ocaso
Verás los Arquetipos y Esplendores.
– Jorge Luis Borges, em “Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista”. [traduções de Augusto de Campos]. São Paulo: Terracota, 2013.

§

EWIGKEIT
Torne-me à boca o verso castelhano,
A dizer o que sempre está dizendo
Desde o latim de Sêneca: o horrendo
Ditame de que o verme é soberano.

Torne a cantar a palidez da cinza,
Os fastígios da morte e a vitória
Da rainha retórica que pisa
Os estandartes ocos da vanglória.

Não assim. O meu barro agradecido
Eu não o vou negar como um covarde.
Sei que não há uma coisa: é o olvido.

Sei que na eternidade dura e arde
O muito e o melhor por mim perdido:
Esta frágua, esta lua e esta tarde.

.

EWIGKEIT
Torne en mi boca el verso castellano
A decir lo que siempre está diciendo
Desde el latín de Séneca: el horrendo
Dictamen de que todo es del gusano.

Torne a cantar la pálida ceniza,
Los fastos de la muerte y la victoria
De esa reina retórica que pisa
Los estandartes de la vanagloria.

No así. Lo que mi barro ha bendecido
No lo voy a negar como un cobarde.
Sé que una cosa no hay. Es el olvido;

Sé que en la eternidad perdura y arde
Lo mucho y lo precioso que he perdido:
Esa fragua, esa luna y esa tarde.
– Jorge Luis Borges, em “Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista”. [traduções de Augusto de Campos]. São Paulo: Terracota, 2013.

§

JAMES JOYCE
Em apenas um dia estão os dias
Do tempo, desde aquele inconcebível
Dia inicial do tempo, em que o terrível
Deus prefixou os dias e agonias

Até aquele em que o ubíquo rio
Do tempo terrenal torne à nascente,
Que é o Eterno, e se apague no presente,
O futuro, o que foi e o que ora expio.

Entre a aurora e a noite está a história
Universal. Vejo, do fundo breu
A meus pés o caminho do hebreu,

Cartago aniquilada, Inferno e Glória
Dá-me, Senhor, coragem e alegria
Para escalar a escarpa deste dia.

Cambridge, 1968

.

JAMES JOYCE
En un día del hombre están los días
Del tiempo, desde aquel inconcebible
Día inicial del tiempo, en que un terrible
Dios prefijó los días y agonías

Hasta aquel otro en que el ubicuo río
Del tiempo terrenal torne a su fuente,
Que es lo Eterno, y se apague en el presente,
El futuro, el ayer, lo que ahora es mío.

Entre el alba y la noche está la historia
Universal. Desde la noche veo
A mis pies los caminos del hebreo,

Cartago aniquilada, Infierno y Gloria.
Dame, Señor, coraje y alegría
Para escalar la cumbre de este día.

Cambridge, 1968
– Jorge Luis Borges, em “Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista”. [traduções de Augusto de Campos]. São Paulo: Terracota, 2013.

LABIRINTO
Não haverá uma porta. Já estás dentro,
Mas o alcácer abarca o universo
E não tem nem anverso nem reverso
Nem muro externo nem secreto centro.

Não penses que o rigor do teu caminho
Que fatalmente se bifurca em outro,
Que fatalmente se bifurca em outro,
Terá fim. É de ferro o teu destino

Como o juiz. Não creias na investida
Do touro que é um homem cuja estranha
Forma plural dá horror a essa maranha

De interminável pedra entretecida.
Não virá. Nada esperes. Nem te espera
No escuro do crepúsculo uma fera.

.

LABERINTO
No habrá nunca una puerta. Estás adentro
Y el alcázar abarca el universo
Y no tiene ni anverso ni reverso
Ni externo muro ni secreto centro.

No esperes que el rigor de tu camino
Que tercamente se bifurca en otro,
Que tercamente se bifurca en otro,
Tendrá fin. Es de hierro tu destino

Como tu juez. No aguardes la embestida
Del toro que es un hombre y cuya extraña
Forma plural da horror a la maraña

De interminable piedra entretejida.
No existe. Nada esperes. Ni siquiera
En el negro crepúsculo la fiera.
– Jorge Luis Borges, em “Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista”. [traduções de Augusto de Campos]. São Paulo: Terracota, 2013.

§

RUBAIYAT
Em minha voz a métrica do persa
Torne a lembrar que o tempo é a diversa
Trama de sonhos ávidos que somos
E que o secreto Sonhador dispersa.

Torne a afirmar que o fogo é cinza e nada,
A carne é pó, o rio a extraviada
Imagem de tua vida e minha vida
Que lentamente nos é arrebatada.

Torne a afirmar que o árduo monumento
Que a arrogância constrói é como o vento
Que passou, e que à luz inconcebível
De Quem perdura, um século é um momento.

Torne a advertir que o rouxinol de ouro
Canto só uma vez no imorredouro
Céu sonoro da noite e que as estrelas
Avaras não esbanjam seu tesouro.

Torne a lua ao poema que tua mão
Escreve como torna ao temporão
Azul do teu jardim. A mesma lua
Desse jardim te há de buscar em vão.

Que sejam sob a luz de tuas ternas
Tardes humilde exemplo essas cisternas
Em cujo espelho de água se repetem
Umas poucas imagens sempiternas.

E que a lua do persa nos aporte os
Ouros dos seus crepúsculos sem portos
Novamente. Hoje é ontem. És os outros
Cujo rosto é só pó. Tu és os mortos.

.

RUBAIYAT
Torne en mi voz la métrica del persa
A recordar que el tiempo es la diversa
Trama de sueños ávidos que somos
Y que el secreto Soñador dispersa.

Torne a afirmar que el fuego es la ceniza,
La carne el polvo, el río la huidiza
Imagen de tu vida y de mi vida
Que lentamente se nos va de prisa.

Torne a afirmar que el arduo monumento
Que erige la soberbia es como el viento
Que pasa, y que a la luz inconcebible
De Quien perdura, un siglo es un momento.

Torne a advertir que el ruiseñor de oro
Canta una sola vez en el sonoro
Ápice de la noche y que los astros
Avaros no prodigan su tesoro.

Torne la luna al verso que tu mano
Escribe como torna en el temprano
Azul a tu jardín. La misma luna
De ese jardín te ha de buscar en vano.

Sean bajo la luna de las tiernas
Tardes tu humilde ejemplo las cisternas,
En cuyo espejo de agua se repiten
Unas pocas imágenes eternas.

Que la luna del persa y los inciertos
Oros de los crepúsculos desiertos
Vuelvan. Hoy es ayer. Eres los otros
Cuyo rostro es el polvo. Eres los muertos.
– Jorge Luis Borges, em “Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista”. [traduções de Augusto de Campos]. São Paulo: Terracota, 2013.

§

A JOHN KEATS (1795-1821)
Desde o princípio até a jovem morte
A terrível beleza te espreitava
Como a outros tantos a propícia sorte
Ou a má. Nas auroras te esperava

De Londres, entre as páginas casuais
De um dicionário de mitologia,
Nas mais humildes dádivas do dia,
Em um rosto, uma voz, ou nos mortais

Lábios de Fanny Brawne. Ó sucessivo
E arrebatado Keats, que o tempo cega,
Esse alto rouxinol, essa urna grega

São tua eternidade, ó fugitivo.
Foste o fogo. Na pânica memória
Já não és mais a cinza. És a glória.

.

A JOHN KEATS (1795-1821)
Desde el principio hasta la joven muerte
La terrible belleza te acechaba
Como a los otros la propicia suerte
O la adversa. En las albas te esperaba

De Londres, en las páginas casuales
De un diccionario de mitología,
En las comunes dádivas del día,
En un rostro, una voz, y en los mortales

Labios de Fanny Brawne. Oh sucesivo
Y arrebatado Keats, que el tiempo ciega,
El alto ruiseñor y la urna griega

Serán tu eternidad, oh fugitivo.
Fuiste el fuego. En la pánica memoria
No eres hoy la ceniza. Eres la gloria.
– Jorge Luis Borges, em “Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista”. [traduções de Augusto de Campos]. São Paulo: Terracota, 2013.

§

RELIGIO MEDICI, 1643
Defende-me, Senhor. (O vocativo
Não implica Ninguém. É uma palavra
Do exercício que o desengano lavra
E escreve a tarde de temor que vivo.)

Defende-me de mim. Já o disseram
Montaigne e Browne e um espanhol que ignoro;
Algo me resta de todo esse ouro
Que meus olhos de sombra recolheram.

Defende-me, Senhor, do impaciente
Apetite de ser mármore e olvido;
Defende-me de ser o já vivido,

O que já fui irreparavelmente.
Não da espada cruel, da rubra lança,
Defende-me, somente da esperança.

.

RELIGIO MEDICI, 1643
Defiéndeme, Señor. (El vocativo
No implica a Nadie. Es sólo una palabra
De este ejercicio que el desgano labra
Y que en la tarde del temor escribo).

Defiéndeme de mí. Ya lo dijeron
Montaigne y Browne y un español que ignoro;
Algo me queda aún de todo ese oro
Que mis ojos de sombra recogieron.

Defiéndeme, Señor, del impaciente
Apetito de ser mármol y olvido;
Defiéndeme de ser el que ya he sido,

El que ya he sido irreparablemente.
No de la espada o de la roja lanza
Defiéndeme, sino de la esperanza.
– Jorge Luis Borges, em “Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista”. [traduções de Augusto de Campos]. São Paulo: Terracota, 2013.

§

O CEGO
I

Foi despojado do diverso mundo,
Dos rostos, que ainda são o que eram antes,
Das ruas próximas, hoje distantes,
E do côncavo azul, ontem profundo.

Dos livros lhe restou só o que deixa
A memória, essa fórmula do olvido
Que o formato retém, não o sentido,
E que apenas os títulos enfeixa.

O desnível espreita. Cada passo
Pode levar à queda. Sou o lento
Prisioneiro de um tempo sonolento

Que não registra aurora nem ocaso.
É noite. Não há outros. Com o verso
Lavro este meu insípido universo.

II

Desde meu nascimento, lá em noventa e nove,
Da côncava parreira ao poço mais profundo,
O tempo minucioso, que na memória é breve,
Foi me furtando as formas visíveis deste mundo.

Os dias e as noites limaram os semblantes
Das palavras humanas e dos rostos amados;
Em vão interrogaram meus olhos esgotados
As vãs bibliotecas e suas vãs estantes.

O azul e o vermelho são agora uma névoa
E duas vozes inúteis. O espelho que miro
É só uma coisa cinza. No jardim aspiro,

Amigos, uma lúgubre rosa em meio à treva.
Agora só perduram as formas amarelas.
E os pesadelos são minhas únicas telas.

.

EL CIEGO
I

Lo han despojado del diverso mundo,
De los rostros, que son lo que eran antes.
De las cercanas calles, hoy distantes,
Y del cóncavo azul, ayer profundo.

De los libros le queda lo que deja
La memoria, esa forma del olvido
Que retiene el formato, el sentido,
Y que los meros títulos refleja.

El desnivel acecha. Cada paso
Puede ser la caída. Soy el lento
Prisionero de un tiempo soñoliento

Que no marca su aurora ni su ocaso.
Es de noche. No hay otros. Con el verso
Debo labrar mi insípido universo.

II

Desde mi nacimiento, que fue el noventa y nueve
De la cóncava parra y el aljibe profundo,
El tiempo minucioso, que en la memoria es breve,
Me fue hurtando las formas visibles de este mundo.

Los días y las noches limaron los perfiles
De las letras humanas y los rostros amados;
En vano interrogaron mis ojos agotados
Las vanas bibliotecas y los vanos atriles.

El azul y el bermejo son ahora una niebla
Y dos voces inútiles. El espejo que miro
Es una cosa gris. En el jardín aspiro,

Amigos, una lóbrega rosa de la tiniebla.
Ahora sólo perduran las formas amarillas
Y sólo puedo ver para ver pesadillas.
– Jorge Luis Borges, em “Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista”. [traduções de Augusto de Campos]. São Paulo: Terracota, 2013.

§

UM CEGO
Não sei qual é a cara que me mira
Quando olho minha cara em um espelho;
Em seu reflexo não sei quem é o velho
Que me olha com cansada e muda ira.

Lento na sombra, com a mão exploro
As invisíveis rugas. Eis que assoma
Um lampejo. Vislumbro a tua coma
Que hoje é cinza ou ainda é de ouro.

Repito que perdi unicamente
A aparência superficial das cousas.
O consolo é de Milton e é potente,

Mas penso nas palavras e nas rosas.
Penso que se pudesse ver-me a cara
Saberia quem sou na tarde rara.

.

UN CIEGO
No sé cuál es la cara que me mira
Cuando miro la cara del espejo;
No sé qué anciano acecha en su reflejo
Con silenciosa y ya cansada ira.

Lento en mi sombra, con la mano exploro
Mis invisibles rasgos. Un destello
Me alcanza. He vislumbrado tu cabello
Que es de ceniza o es aún de oro.

Repito que he perdido solamente
La vana superficie de las cosas.
El consuelo es de Milton y es valiente,

Pero pienso en las letras y en las rosas.
Pienso que si pudiera ver mi cara
Sabría quién soy en esta tarde rara.
– Jorge Luis Borges, em “Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista”. [traduções de Augusto de Campos]. São Paulo: Terracota, 2013.

§

SPINOZA
As translúcidas mãos desse judeu
Em meio à sombra lavram os cristais.
É medo e frio a tarde que morreu
(E às tardes as tardes são iguais.)

Tanto as mãos como o espaço de jacinto
Que empalidece no confim do Gueto
Quase inexistem para o homem quieto
Que está sonhando um claro labirinto.

Nem o perturba a gloria, esse reflexo
Dos reflexos do sonho de outro espelho,
Nem o amor temeroso das donzelas.

Liberto da metáfora e do mito
Lavra um árduo cristal: o infinito
Mapa do Ser que é todas as estrelas.

.

SPINOZA
Las traslúcidas manos del judío
Labran en la penumbra los cristales
Y la tarde que muere es miedo y frío.
(Las tardes a las tardes son iguales.)

Las manos y el espacio de jacinto
Que palidece en el confín del Ghetto
Casi no existen para el hombre quieto
Que está soñando un claro laberinto.

No lo turba la fama, ese reflejo
De sueños en el sueño de otro espejo,
Ni el temeroso amor de las doncellas.

Libre de la metáfora y del mito
Labra un arduo cristal: el infinito
Mapa de Aquel que es todas Sus estrellas.
– Jorge Luis Borges, em “Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista”. [traduções de Augusto de Campos]. São Paulo: Terracota, 2013.

§

GÔNGORA
Marte, por guerra. Febo, o sol. Netuno,
O mar que já não podem ver meus olhos
Porque o apaga o deus. Esses escolhos
Desterram a Deus, que é Três e é Uno,
Do meu desperto coração. Meu fado
Impõe-me esta curiosa idolatria.
Cercado estou pela mitologia.
Nada posso. A Virgílio devotado.
Virgílio e o latim. Fiz com que cada
Estrofe fosse um árduo labirinto
De entretecidas vozes, um recinto
Vedado ao vulgo que é somente nada.
No tempo, que se vai, vejo uma seta
Rígida, um cristal numa corrente
E pérolas na lagrima dolente.
Tal é o estranho ofício do poeta.
Que me importam a mofa ou o renome?
Chamei de ouro o cabelo, que está vivo.
Quem me dirá se no secreto arquivo
De Deus estão as letras do meu nome?

Quero volver às coisas como são:
Um cântaro, umas rosas, a água, o pão…

.

GÓNGORA
Marte, la guerra. Febo, el sol. Neptuno,
El mar que ya no pueden ver mis ojos
Porque lo borra el dios. Tales despojos
Han desterrado a Dios, que es Tres y es Uno,
De mi despierto corazón. El hado
Me impone esta curiosa idolatría.
Cercado estoy por la mitología.
Nada puedo. Virgilio me ha hechizado.
Virgilio y el latín. Hice que cada
Estrofa fuera un arduo laberinto
De entretejidas voces, un recinto
Vedado al vulgo, que es apenas, nada.
Veo en el tiempo que huye una saeta
Rígida y un cristal en la corriente
Y perlas en la lágrima doliente.
Tal es mi extraño oficio de poeta.
¿Qué me importan las befas o el renombre?
Troqué en oro el cabello, que está vivo.
¿Quién me dirá si en el secreto archivo
De Dios están las letras de mi nombre?

Quiero volver a las comunes cosas:
El agua, el pan, un cántaro, unas rosas…
– Jorge Luis Borges, em “Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista”. [traduções de Augusto de Campos]. São Paulo: Terracota, 2013.

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