quinta-feira, dezembro 19, 2024

Leia mulheres – Mariana Imbelloni Braga

Ei, homem, quando a gente fala sobre ler mulheres, (também) é com você.

Grupo de WhatsApp do ano novo: quanta cerveja se compra, precisa ou não levar lençol, não esquece os travesseiros e por aí vai. Também aproveitamos para combinar trocas de livros, uma amiga ia emprestar para outra, a outra para uma terceira, tanto que uma sugere: vamos então fazer uma troca de livros escritos por mulheres, pessoal? Oba, vamos, várias pessoas se manifestam com os títulos que têm para emprestar e está armado o coreto. Dia 30, então, nos sentamos em torno da mesa com os livros levados, prontas para dar e receber indicações para as leituras de 2017, e aí reparo que ali só estão as mulheres do grupo. Um dos homens repara o mesmo e dispara:
– Vocês nem chamaram para o clube de leitura…
– Como não? Foi combinado no grupo onde todo mundo estava.
– Mas vocês só chamaram as mulheres.
Aquilo me encucou. Mais tarde voltei ao histórico de mensagens. Não tinha nenhuma referência direta ao lado feminino da nossa força. Mas, ao ser dito, “pessoas, vamos trocar livros de mulheres”, parece que o subtexto necessário era esse.
E tem sido. Se, via de regra, os homens que conheço se sentem bem representados em qualquer termo geral como “pessoas”, “gente”, “humanidade” e por aí vai, basta o complemento ser “vamos valorizar a escrita de mulheres” que eles me passam o telefone com cara de distraídos dizendo “ops, esse era para você”. Volta e meia ouço frases de encorajamento, que legal isso que vocês têm feito de procurar valorizar a autoria feminina, tão invisibilizada. Mas o que o interlocutor tem lido? Ah, bem, sabe como é, não tive tempo ainda. Não coube na minha bibliografia.
Um conceito que muito me marcou quando comecei a estudar história das mulheres, anos atrás, foi o de “suplemento”, da Joan Scott. Para a historiografia a história das mulheres não era parte integrante, menos ainda essencial. Tampouco completava, pois a História, com seu H maiúsculo ostentado, já era completa. Era um adendo, um algo a mais que, estando ali, era interessante, mas, não estando, não era indispensável. Todos avanços sopesados, sinto, hoje ainda, essa incômoda noção de suplemento em todas as áreas que transito. Bonitinho isso aí que vocês fazem de ler e estudar obras de mulheres. Mas não me diz respeito. Já tenho meus autores. Ponto.

Então, se está sendo por falta de vocativo, dessa vez faço questão: “Homens, vamos ler mulheres?”. Ler romances de mulheres. Séries de mulheres. Teoria de mulheres. Poesia de mulheres. Não porque vocês são legais e vão fazer esse favor para a gente. Mas porque, numa boa, quem está perdendo a beça são vocês. Sua maravilhosa tese que não te dá tempo de ler nenhuma autora provavelmente seria mais rica com um conceito da Hannah Arendt, da Judith Butler, da Lélia Gonzalez, da bell hooks. Você não sabe o que poderia viver se ainda não se deliciou com um romance da Chimamanda Ngozi Adichie, não se perdeu em Nápoles com a Elena Ferrante, não viajou em gerações chilenas com a Isabel Allende ou dançou nas cirandas da Lygia Fagundes Telles. A poesia, aliás, preciso te contar, também vai além de Vinícius, Drummond e Pessoa. Já experimentou os êxtases de Adélia Prado? A tristeza de Florbela Espanca? As vivências de Conceição Evaristo? As imagens de Gabriela Mistral? A vida das páginas da Elisa Lucinda?
A lista de autoras é infinda e maravilhosa e só mesmo essa estrutura tão excludente de produção e difusão de conhecimento faz com que precisemos nos conclamar a lê-las e citá-las. E não adianta nada você reconhecer isso e continuar com sua bibliografia e estante de sempre, com sua visão de mundo absolutamente recortada, mas com ares de universal.
Então, amigos homens, façam um favor a vocês mesmos. Leiam mulheres. Discutam a teoria de mulheres em suas aulas e mesas de bar. Declamem mulheres. Somos autoras. Não suplementos perdidos da sua Literatura com L maiúsculo.

Mariana Imbelloni Braga, colunista da Revista Prosa Verso e Arte. Formada em História pela UFF, em Direito pela PUC-Rio e mestranda em Direito pela PUC-Rio, dedica-se desde 2009 aos estudos de gênero nas duas áreas.


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