Raridades foram encontradas entre documentos da ditadura militar
– por Mariana Filgueiras | O Globo
‘A discussão sobre a censura na música popular brasileira existe há um tempo, mas não no samba’
– Stephen Bocskay (Pesquisador)
RIO – Era a noite de Sexta-Feira da Paixão de 1968. O jornalista e escritor carioca Arthur Poerner, que já havia sido preso pelo regime militar, hospedava em casa, no Jardim Botânico, o amigo uruguaio Eduardo Galeano, que colhia informações para o livro “As veias abertas da América Latina”, que se tornaria um clássico quando publicado, três anos depois. Galeano pediu para Poerner levá-lo a um terreiro de quimbanda que funcionava no Morro do Sossego, ali perto.
Voltaram de lá tão impressionados “com o que havia de protesto anárquico no ritual”, especialmente com a figura de um preto velho, o Vovô Catirino, lembra Poerner, que chegou em casa e escreveu um poema sobre o episódio, “Morro do Sossego” (Galeano também relataria o que viu em 1978, no livro “Dias e noites de amor e guerra”). O poema ficou na gaveta por dois anos, até o dia em que um novo amigo, Antonio Candeia Filho, o Candeia — sambista que surgia com força impressionante na Portela — convidou Poerner para uma parceria musical. O jornalista entregou o mote guardado ao sambista: “Ó Catirino menino, pombo que escapa ao morcego/ seu sangue quer preservar/ Ó, Catirino inquilino, sossega lá no Sossego…”
— Quando leu o poema, Candeia quis musicá-lo. Ele era, também, à sua maneira, um contestador do sistema e da opressão, profundamente engajado na luta pela pureza do samba e contra a discriminação racial e social, duas das muitas causas pelas quais se batia. No fim daquele ano, eu já estava exilado na Alemanha, e ele me escreveu, informando que o conjunto Nosso Samba gravaria a composição “em janeiro, o mais tardar”, e que a Clara Nunes “já a cantarolava”. Mandou até uma fita K7 com uma gravação caseira, que guardo até hoje. Eu nunca soube da censura. Nem os meus prontuários no Dops e no SNI se referiam ao fato — detalha o jornalista, aos 76 anos, autor de “O poder jovem”, de 1968, best-seller sobre a história do movimento estudantil brasileiro, dos primeiros livros a serem recolhidos pós-AI-5.
A confirmação só aconteceu agora: a letra fora de fato vetada, e de acordo com o parecer dos censores, dado no dia 26 de maio de 1971, “por incentivar a luta de classes”. O documento acaba de ser encontrado durante o processo de digitalização das letras musicais que eram submetidas à censura na ditadura militar (1964-1985), minucioso trabalho a que o Arquivo Nacional deu início em 2015 e que só deve se concluir em dezembro deste ano — e que já revelou outras canções inéditas da MPB, conforme publicado no GLOBO quando do início do trabalho.
No total, são 13.743 letras de músicas, e mais da metade já foi disponibilizada para o público no site da instituição. Entre elas, cerca de 1.500 eram sambas, de compositores como Paulinho da Viola, que teve apenas uma música censurada em sua carreira, “Meu sapato”, de 1971. A canção foi alterada por ele, ganhando novos versos, tendo sido gravada apenas cinco anos depois, no álbum “Memórias cantando”, de 1976. Ou como Martinho da Vila, Leci Brandão, Nei Lopes, Zé Kéti, Elton Medeiros e tantos outros. É neste montante que se concentrará esta série de reportagens que tem início hoje e vai até quarta-feira.
O samba “Morro do Sossego” só foi gravado em 1988, por Cristina Buarque, num disco que homenageava Candeia dez anos depois de sua morte, em 1978. A intérprete o escolheu para o repertório por ser um samba “que ele gostava de cantar nas rodas de samba, apesar de nunca ter gravado”.
— Ele nunca comentou a censura desse samba — observou Cristina, ao ver o documento pela primeira vez, na última segunda-feira, onde percebeu também os erros de datilografia da própria gravadora que enviou a letra (em vez de “Sinhá, pra melhorá”, é “E sonhar pra melhorar”). — Procurei no livro “Candeia, luz da inspiração”, escrito por um grande amigo dele, João Baptista Vargens, mas não se fala nesse assunto. O samba só é citado na discografia.
Quem está farejando os documentos raros deste período específico da história do gênero é o pesquisador musical americano e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Stephen Bocskay, que está finalizando o livro “Samba e afropolítica durante a ditadura militar brasileira”, ainda sem editora. É à distância que ele vem conseguindo esmiuçar o acervo recém-escaneado pelo Arquivo Nacional.
— Como Candeia foi um homem tão dedicado ao combate da opressão da cultura negra brasileira, me custava aceitar a ideia de que nenhum samba dele tivesse sido vetado. Para mim, era só questão de tempo até alguma prova aparecer. Nem historiadores ou familiares sabiam dizer — comenta Bocskay, que é músico e pesquisador da cultura da diáspora africana há cerca de oito anos e professor visitante de pós-graduação em Comunicação na UFPE. — A discussão sobre a censura na música popular brasileira existe há um tempo, mas não no samba. O silenciamento do negro é uma ferida aberta na sociedade brasileira. Eu me interessei pelo assunto porque muitas pessoas, e livros, ou escamoteiam as relações raciais entre brancos e negros ou as idealizam em nome de uma identidade nacional unificada da mestiçagem cordial, o que é uma farsa.
No início dos anos 1970, havia um percussionista, o Chaplin, que encantou o jovem Paulinho da Viola não só pelo exímio talento com pandeiro e surdo, mas também pelo visual, que destoava do dos sambistas da época. De terno justo, cordões de ouro, camisas coloridas, bota cavalo-de-aço, chamava a atenção. Inspirado na sua indumentária, Paulinho compôs o samba de breque “Meu sapato”, que acabou sendo a única música vetada da sua carreira.
Os censores implicaram com tudo, mas principalmente com os trechos: “Um barato/ meu sapato/ bico chato/ de puro aço/ inoxidável (…) Que espanta os ratos, desperta os rotos/ Desgosta os retos/ De bico estreito com suas meias/ Botões de ouro, com suas siglas/ de orgulho e amargura/ Sempre voltados para o passado”. De acordo com a avaliação, a letra “dá margem a interpretações dúbias, podendo ser uma alusão ao militarismo”. A música acabou tendo o título alterado para “Meu novo sapato” e foi gravada por Paulinho no álbum “Memórias cantando” de 1976, com mais de dez versos alterados ou novos.
— Eu nunca guardei a letra original, é a primeira vez que a revejo como compus — comentou Paulinho da Viola, em casa, diante do documento. — Implicaram com umas bobagens na letra, mas claro que era uma metáfora para aquela situação. Eu lembrava de ter mexido em um ou outro verso, não em tantos. Depois de mudar para “Meu novo sapato”, lembro que gravei com o som de duas chapinhas, com o próprio Chaplin, para fazer o barulho do sapato. Para você ver como a memória trai a gente: na minha cabeça, eu tinha composto essa música em 76, quando a gravei, não lembrava mais que era de 1971. Puxa… Só revi o Chaplin anos depois, numa plateia de um show, gostaria de reencontrá-lo.
A outra vez que Paulinho passou de raspão pela censura foi com a versão de “Chico Brito”, letra de Wilson Baptista de 1949. Quando ele quis gravá-la para o disco que faria em 1971, a versão recebeu um veto, mas em seguida foi liberada pelos mesmos censores. A letra fora sublinhada nos seguintes versos: “Lá vem o Chico Brito/ descendo o morro nas mãos do Pessanha/ É mais um processo/ É mais uma façanha/ Chico Brito fez do baralho/ seu melhor esporte/ É valente no morro/ Dizem que fuma uma erva do norte”. A justificativa: “Vetada pois contém ilusão a entorpecentes”.
— Naquela época muitas vezes a gravadora intercedia e conseguia liberar. Neste caso, não foi preciso alterar nenhum verso, mesmo com essa alusão à tal “erva do norte”, ou seja, não fazia o menor sentido a censura — conta Paulinho.
Na pesquisa, Bocskay encontrou os documentos que provam as investidas do regime militar também contra a produção de Martinho da Vila, Nei Lopes, Elton Medeiros, Leci Brandão (que serão contadas nos próximos capítulo da série). Mas as centenas de documentos têm ainda os sambas vetados e pareceres dos censores de sambistas como Bezerra da Silva, Wilson Moreira, Aluisio Machado, Zé Kéti, entre muitos outros.
— Já se sabia, há um tempo, que um sambista como Wilson Batista foi censurado graças aos estudos críticos levantados sobre sua vida e obra. Mas samba e censura durante a ditadura militar brasileira é outra conversa: os sambas vetados da maioria dos sambistas não estavam disponíveis ao público até há pouquíssimo tempo — comenta Bocskay. — A escassez de pesquisa sobre o tema durante essa época nos legou questões fundamentais sobre o gênero nesse período.
Para ele, o samba entrou em “crise existencial” com o advento de novos gêneros musicais.
— Com a chegada da bossa nova, do iê, iê, iê, da Tropicália, do chamado “brega”, da música sertaneja e de outros fenômenos como a música soul, o samba se depara com novas crises existenciais, tendo que dividir, querendo ou não, sua hegemonia com essas novas estéticas e culturas sônicas e performáticas — analisa ele. — A intensificação da militância do negro brasileiro na época, sem dúvida, desestimulou a aproximação de pesquisadores ao gênero até a atualidade, que historicamente têm sido homens brancos, com uma perspectiva sociológica tão conservadora quanto a realidade de suas redes sociais na casa e na rua.
Para Bocskay, boa parte desses pesquisadores se sentiu mais confortável em examinar os fenômenos culturais e musicais mais próximos aos seus círculos de sociabilidade, como a bossa nova ou a Tropicália.
— Graças aos novos documentos inéditos do Arquivo Nacional, temos diante de nós uma chave de ouro para repensar quem foi censurado durante a ditadura, o porquê da censura, e até quanto tempo ela durou, entre tantas outras questões.
Fonte: O Globo