“Às vezes me sinto esmagado pelo amor à vida. Que beleza, que harmonia, que unidade profunda, que complementariedade e solidariedade entre os seres vivos! Que força criadora para inventar miríades de espécies animais e vegetais singulares! Às vezes me sinto esmagado pela crueldade da vida, pela necessidade de matar para viver, por sua energia destruidora, seus conflitos, sempre com o triunfo da morte. Depois consigo reunir, manter, ligar indissoluvelmente as duas verdades contrárias. A vida é dádiva e fardo, a vida é maravilhosa e terrível.”
– Edgar Morin, no livro “Lições de um século de vida”. tradução de Ivone Benedetti. Bertrand Brasil, 2021.
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‘Humanista regenerado’, Edgar Morin apresenta lições de um século de vida
Em volume de memórias, filósofo francês defende a vida não apenas como sobrevivência, mas como ‘existência poética’
– por Bertha Maakaroun / Estado de Minas.
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Resistir à dominação, à crueldade e à barbárie; tomar consciência da complexidade humana; levar uma vida poética, com fé no amor. Essas são lições partilhadas pelo sociólogo e filósofo francês Edgar Morin ao narrar as suas memórias no livro “Leçons d’un siècle de vie” (Ed. Denoël, 2021), que marcou o seu centenário, em 8 de julho de 2021. Traduzido para o português por Ivone Benedetti, “Lições de um século de vida” publicado no Brasil pela Editora Bertrand Brasil.
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Formado em direito, história e geografia, autor de inúmeras obras de filosofia e sociologia, como “A cabeça bem-feita”, “Ciência como consciência”, “Conhecimento, ignorância, mistério”, “Introdução ao pensamento complexo”, entre várias outras publicadas pela Bertrand Brasil, Morin é um dos grandes pensadores franceses do século 20. Com a mesma modéstia intelectual que caracteriza a sua trajetória, já no preâmbulo de “Lições de um século de vida” procura desfazer equívocos que possam suscitar o título.
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“Que fique bem claro: não dou lições a ninguém. Tento extrair lições de uma experiência centenária e secular de vida, e desejo que elas sejam úteis a cada um, não só a quem queria refletir sobre sua própria vida, mas também a quem queira encontrar sua própria via.”
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Nascido em Paris, em 1921, filho de judeus espanhóis, Edgar Morin narra uma rica e aventureira existência, de amores e solidão, atravessada por crises econômicas, como a de 1929, a ascensão do nazismo, a Segunda Grande Guerra (1939-1945) e a ocupação da França pela Alemanha nazista (1940-1944), período em que aderiu à Resistência Francesa sob o pseudônimo “Morin”, filiando-se ao Partido Comunista francês, do qual foi expulso em 1951 por suas posições antistalinistas.
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Em 1965, após uma temporada em Israel antes da Guerra dos Seis Dias, indignado com a dominação de Israel sobre o povo árabe da Palestina, Morin tornou pública a sua crítica contundente e hostilidade à colonização da Palestina árabe, em coerência às suas convicções universalistas e anticolonialistas.
Após a Segunda Guerra Mundial, Morin ingressou no Centre national de la recherche scientifique (CNRS), uma das instituições de pesquisa científica mais importantes do mundo. É sob esse olhar que anota em suas memórias os avanços científicos do século 20 que considera marcos do conhecimento: no campo da física nuclear, a descoberta das características do átomo (1932), e, duas décadas depois, a descoberta da estrutura helicoidal do DNA (1953).
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Morin testemunhou o maio de 1968 em Paris, assistiu à emergência da cultura de massa e, mais recentemente, a primeira pandemia do milênio, que arremessou ao confinamento um mundo perplexo pela escalada das mortes.
Ele se define como “humanista regenerado” – “filho” de Montaigne (Michel de Montaigne, 1533-1592), aquele que formulou tal princípio em duas frases: “Reconheço em todo homem meu compatriota” e “Cada um chama de barbárie aquilo que não é de seu uso”. Para Morin, ser humanista está muito além de pensar que as incertezas e perigos das crises da democracia, do pensamento político, da concentração de renda, do neoliberalismo exacerbado, da biosfera e a crise multidimensional carreada pela pandemia une os seres humanos numa comunhão de destinos.
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“Ser humanista doravante não é apenas saber que somos todos humanos semelhantes e diferentes, não é apenas querer escapar das catástrofes e aspirar a um mundo melhor. Ser humanista é também sentir intimamente que cada um de nós é um momento efêmero de uma aventura extraordinária, a aventura da vida que deu origem à aventura humana, que, ao longo de criações, tormentos e desastres chegou a uma crise gigantesca, na qual está em jogo o destino da espécie”, afirma o autor.
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Assim, o humanismo regenerado é, para Morin, não apenas o sentimento da comunidade e da solidariedade humana, mas, igualmente, o sentimento de integrar a desconhecida aventura da vida, desejando que esta siga em direção a uma metamorfose, a um novo devir.
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As convicções humanistas de Morin se consolidam com o passar do tempo, quando, paradoxalmente, o autor abandona a noção de “perenidade do presente e de previsibilidade do futuro”. Reconhece que a incerteza é a tônica da vida individual, da trajetória humana e da vida das nações.
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“Agora, quero ressaltar que uma das grandes lições de minha vida foi a de parar de acreditar na perenidade do presente, na continuidade do devir, na previsibilidade do futuro. São incessantes, apesar de descontínuas, as irrupções súbitas do imprevisto que vêm sacudir ou transformar, às vezes de maneira afortunada, às vezes desafortunada, nossa vida individual, nova vida de cidadão, a vida de nossa nação, a vida da humanidade.”
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Ao mesmo tempo, Morin menciona Karl Marx (1818-1883) para lembrar que a incerteza e o inesperado que constituem a história humana não são acasos: “É a velha toupeira que sabe muito bem trabalhar embaixo da terra para aparecer bruscamente”.
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Autor do “pensamento complexo”, Morin inicia a obra a partir da reflexão sobre a própria identidade. Indaga: “Quem sou eu?”. Apresenta o substantivo: “Sou um ser humano”. A partir deste, introduz vários adjetivos que conformam uma identidade complexa, una e plural: francês, de origem judaica sefardita, parcialmente italiano e espanhol, amplamente mediterrâneo, europeu cultural, cidadão do mundo, filho da Terra-Pátria.
Para além de “uma parte minúscula de uma sociedade e um momento efêmero do tempo que passa”, Morin converge o olhar para a confluência entre tempo e história, narrando a sua própria vida, nas palavras de Marcia Tiburi (que assina a orelha do livro), “a memória do passado, submetido à fugacidade do presente, que resgatamos do naufrágio do esquesimento através de nossas atitudes narrativas”.
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É assim que Morin se volta para o passado para falar sobre o presente e sobre o futuro, evocando desafios, os riscos de totalitarismos e que tipo de proveito podemos extrair de nossa formação para abraçar o que está por vir.
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Morin reitera a recusa de uma identidade monolítica ou redutora. Para ele, a consciência da unidade/multiplicidade (unitas multiplex) da identidade é necessidade “de higiene mental para melhorar as relações humanas”.
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A complexidade humana é expressa pelo autor numa série de bipolaridades assim anotadas: o ser humano racional e sábio (Homo sapiens) é também louco e delirante (Homo demens); ao mesmo tempo em que cria ferramentas, técnicas e constrói (Homo faber), é também crente, religioso, mitológico (Homo fidelis ou H. religionis, H. mythologicus); e, por fim, ao mesmo tempo em que se dedica ao lucro pessoal (Homo aeconomicus), também é insuficiente e precisa dar lugar para o lúdico (Homo ludens) e a generosidade, praticando atividades desinteressadamente (Homo liber).
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“Em suma, o substrato de racionalidade que se encontra em sapiens, faber e aeconomicus constitui apenas um polo do que é humano (indivíduo, sociedade, história), enquanto se mostram com importância no mínimo igual a paixão, a fé, o mito, a ilusão, o delírio, o lúdico”, considera Morin. “A grande lição que extraí disso é que toda paixão precisa comportar a vigilância da razão, e toda razão precisa comportar o combustível da paixão”, sustenta.
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Enquanto as lutas de identidade se desenrolam, Morin firma a necessidade de conscientização da complexidade humana: ou seja, trata-se de ver em si e no outro os termos da trindade indivíduo/sociedade/espécie, que define o humano. Permitir que todos se realizem no âmbito dessa trindade constitui um dos propósitos éticos do “pensamento complexo” que caminha ao lado da resistência à barbárie, afirma Morin.
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“Cada um traz em si o imperativo complementar do Eu e do Nós, do individualismo e do comunitarismo, do egoísmo e do altruísmo. A consciência desse duplo imperativo enraizou-se profundamente em meu espírito ao longo dos anos. Ela sempre me impeliu a alimentar e fortalecer a capacidade de amor, maravilhamento e, ao mesmo tempo, resistência obstinada à crueldade do mundo”, afirma, acrescentando que a consciência da complexidade humana conduz à benevolência. “A benevolência possibilita considerar o outro não só em seus defeitos e carências, mas também em suas qualidades, tanto em suas intenções quanto em suas ações”, sublinha.
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Saber viver, é portanto, mais uma lição compartilhada por Morin. E há um duplo sentido na palavra vida: por um lado, trata-se de existir, respirar, alimentar-se, proteger-se; por outro, trata-se de conduzir a vida com suas oportunidades e seus riscos, possibilidades de prazer e sofrimento. “A sobrevivência é necessária à vida, mas uma vida reduzida à sobrevivência já não é vida”, considera Morin.
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O autor anota que as inúmeras mazelas humanas, sob miséria e humilhação, são estado de subviver, pior ainda que sobreviver. “Uma das tarefas essenciais de uma política humanista é criar condições que deem não só a possibilidade de sobreviver, mas também de viver”, assinala. Lembrando que todos os períodos de felicidade comportam uma dimensão poética, Morin declara: “Se a primeira grande aspiração humana é realizar-se individualmente inserido numa comunidade, a segunda é levar vida poética”. A urgência é, então, para esse sábio centenário, encontrar o caminho da poesia, do êxtase, do convívio, do calor humano e da benevolência amorosa.
>> Leia outras entrevistas e ensaios de Edgar Morin neste site.
(Via Estado de Minas).
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