COLUNISTAS

Lima Barreto no cinema e na teledramaturgia do Brasil – André de Paula Eduardo

Quando se aproximam as expressões “cinema brasileiro” e “Lima Barreto” o primeiro nome que surge à mente costuma ser o do cineasta Victor Lima Barreto, célebre pela realização do belíssimo “O cangaceiro” (1953), um dos primeiros sucessos de crítica e público nacionais no exterior. Mas o Lima aqui é outro, também Barreto: trata-se de Afonso Henriques, sim, o escritor carioca, dono de algumas dos mais belas páginas da literatura tupiniquim, de vida atormentada, fustigado pelo racismo e pelo álcool, falecido precoce e homenageado na Feira Literária de Paraty de 2017.

A presença de Lima Barreto no cinema pode ser considerada pequena, restrita a poucos filmes; menor que a de um Machado de Assis e sem uma grande adaptação – Graciliano teve “Vidas secas” dirigido por Nelson Pereira dos Santos, clássico do Cinema Novo, e uma excelente versão de “São Bernardo” rodada por Leon Hirszman. Outros, como Jorge Amado, tem boa parte da obra transposta para a telona. De Lima, há pouco, mas o que há merece atenção mais dedicada que a costumeira.

Já nos anos 50, época em que o nome do escritor, falecido em 1922, começava a ganhar o merecido reconhecimento, há um teledrama dirigido por Geraldo Vietri, adaptado do romance “Clara dos Anjos”. Mas entre telefilmes destaca-se “O homem que sabia javanês” (2003) sob a batuta de Xavier de Oliveira e com Carlos Alberto Ricelli, Sérgio Mamberti e Sérgio Viotti nos papéis principais. Com ótimo humor e assumida malandragem, explora bem a atmosfera do notável conto homônimo de Lima, além de possuir franco diálogo com o Brasil atual (ou o de sempre?): no conto e no filme, o microcosmos é coroado pela mediocridade, pela trapaça, pelo jogo de esconde por detrás de supostos títulos. Deveria ser obrigatório a todos os mestres e doutores que hoje temos – certamente 80% teriam identificação automática com o protagonista.

Cartaz de “Osso, amor e papagaios”. fonte: Cinemateca.

Em 1957 surge o hoje obscuro “Osso, amor e papagaios”. Dirigido por Carlos Alberto de Souza Barros e César Memolo, produção da lendária Vera Cruz, traz nomes notáveis como Ruth de Souza e Wilson Grey, além de Jaime Costa e Modesto de Souza como protagonistas. Adaptação do conto “A nova Califórnia”, acerta no tom de sátira às autoridades e colocar o humor negro do começo ao fim em primeiro plano. A história é conhecida: uma pequena cidade é “sacudida” com a chegada de um suposto químico, na verdade um alquimista, Raimundo Flamel, o homem que transforma ossos em ouro. Daí começa a caça aos cemitérios e a disputa pelos restos mortais de quem quer que seja. “Ossos, amor e papagaios”, com esse canhestro título, acentua a birra de Lima com positivismo e sua fé tola na ciência, e consegue, sem ser uma obra-prima, ressaltar a indignação quanto à ganância e pequenez do homem, tão típicos da obra do literato carioca.

Em 1973 aparece um curioso “Cassy Jones, o magnífico sedutor”, de Luís Sérgio Person, com Paulo José no papel principal. Aparentemente inspirado em personagens de “Clara dos Anjos” – aqui, e Clara é a musa de Cassy –, mas nada além de uma pequena influência. O longa de Person, travesso, amalucado, e brincalhão nada tem do romance de Lima.

Apenas em 1998 surgirá a adaptação da principal obra de Lima, um dos maiores romances brasileiros: Triste fim de Policarpo Quaresma. No cinema, virou “Policarpo Quaresma, herói do Brasil”, com direção de Paulo Thiago e excelente elenco. Para quem se familiarizou com o livro, notará alguns recursos usados na adaptação; por exemplo, de cara surge o escárnio a Policarpo (Paulo José, novamente) por propor o tupi-guarani como língua oficial do Brasil. Mas no todo, parece focado nos itens fundamentais da obra de Lima, publicada em 1915 pela primeira vez.

Giulia Gam e Paulo José em “Policarpo Quaresma”. fonte: Cinemateca.

Há, em livro e no filme, as menções ao violão e às modinhas, tidas como “coisa vulgar” no Brasil da República Velha. E alguns diálogos pontuais ressurgem literais, sempre ácidos: “Só deveria ter livros que tivesse títulos acadêmicos. Evitava-se desgraças”. A história de Policarpo, tido como quixotesco, ultrapatriota, amante de tudo que é brasileiro, a ponto de ir às armas contra a traição a Floriano Peixoto e ser depois ser ele próprio traído, mantém-se viva no filme, com os tradicionais ataques ao positivismo, ao provincianismo da Belle Époque carioca e uma compreensão extremamente atual do modus operandi político do país. Um mérito especial do filme deve ser ressaltado: as opções para a recriação do livro mais dizem respeito aos anos de 1990 do que à época dos acontecimentos da história; e boa parte dessa reprodução ainda se faz bastante presente.

Por exemplo, a caracterização da justiça, seletiva, feita para os poderosos. Ou ainda, e de forma ousada, a inserção de uma procissão de miseráveis, “sem-terra” – coisa do filme e não do romance – que no longa de Paulo Thiago será adotada por Quaresma, que fala abertamente em reforma agrária e crítica o latifúndio, com frases que no livro saem da boca da afilhada Olga (Giulia Gam). Policarpo e Olga conversam sobre feminismo, direito ao divórcio e ao voto das mulheres (estamos em 1893). E quando um picareta tenta aliciar Quaresma para a conspiração contra Floriano, um golpe, diz nosso herói: “Ele está no governo, não se pode derrubá-lo assim. Isso aqui é um país, não uma quitanda”.

Os sem-terra inseridos no longa são atacados; a imagem do Brasil, rural e urbano, que o filme pinta, é essencialmente violenta, brutal, vingativa, nada cordial. Policarpo, ao tentar evitar arbitrariedades aos presos políticos, será condenado à morte. “Policarpo Quaresma, herói do Brasil”, é mais lembrado por estudantes de vestibular, por condensar algumas situações fundamentais – embora seja quase completamente inútil tentar penetrar na escrita de Lima sem perpassar suas páginas. Se é um filme tido como “enfadonho”, ao menos foi corajoso em suas opções narrativas: poucas coisas tão difíceis no cinema quanto a originalidade na adaptação de uma grande obra literária.

Fera Ferida teve Giulia Gam e Edson Celulari nos papéis principais. fonte: Memória Globo.

Novela das oito

No entanto, o maior sucesso envolvendo o nome de Lima Barreto certamente foi na televisão, numa novela global de alta audiência. “Fera Ferida”, exibida em horário nobre e escrita por Aguinaldo Silva, Ana Maria Moretzsohn e Ricardo Linhares, compila diferentes obras do escritor e inúmeros personagens, tendo como protagonista o mesmo Flamel de “A nova Califórnia”, vivido por Edson Celulari. Mas também surgem a Clara dos Anjos, o carteiro Joaquim, Cassy Jones, Salustiana e Margarida Weber, de “Clara dos Anjos”; o Numa Pompílio do conto “Numa e a ninfa”; e até mesmo um alter ego do próprio Lima, Afonso Henriques, vivido por Otávio Augusto, poeta alcoólatra, deprimido e desprezado (há em “Clara dos Anjos” um personagem semelhante). E outros mais, inspirados em “Recordações do Escrivão Isaías Caminha” e em noutros contos e crônicas do autor. Difícil será afirmar que trata-se de uma novela “barreteana”; porém, foi provavelmente o produto mais contribuiu para popularizar os personagens criados pelo literato.

Lima Barreto, morto em 1922, acompanhou todas as modas e novidades da Capital Federal no começo do século – por exemplo, em diversos momentos amaldiçoa o futebol. E cita o cinematógrafo nesta ou naquela ocasião, ao que parece, sem se aprofundar muito na matéria. O que terá Lima Barreto pensado sobre o cinema? Ou ainda, como veria sua própria obra transposta para a telona ou numa novela das oito?

André de Paula Eduardo é jornalista, formado na Unesp, onde fez mestrado em Comunicação. Pesquisa cinema brasileiro, torce pro Santos e é apaixonado por Brahms e Pink Floyd. Colunista e colaborador da Revista Prosa Verso e Arte.

Leia aqui outras Colunas de André de Paula Eduardo:
:: Andre de Paula Eduardo – colunista

Revista Prosa Verso e Arte

Música - Literatura - Artes - Agenda cultural - Livros - Colunistas - Sociedade - Educação - Entrevistas

Recent Posts

Espetáculo ‘Dias Felizes’, de Samuel Beckett, ganha nova montagem pela Armazém Companhia de Teatro

“Dias Felizes”, de Samuel Beckett, retorna aos palcos em uma nova montagem da Armazém Companhia…

3 horas ago

“Ritmar, Musicar… Vamos Brincar?”: performance teatral literária de contação de histórias, tem apresentações no Teatro Angel Vianna

"Brasileirinho: um carioca da gema do ovo” da performance teatral literária de contação de histórias…

4 horas ago

Projeto “Som na Lagoa” recebe shows de Rodrigo de Jesus, Elisa Queirós, Daniel Sant’Anna e Aleska Chediak

Com programação semanal, o projeto “Som na Lagoa”, tem curadoria de Thaís Fraga e produção…

5 horas ago

Casa Museu Ema Klabin | Programação de abril

Yentl, a menina que queria estudar: espetáculo literomusical abre a programação de abril na Casa…

6 horas ago

Rafael Ruiz apresenta o recital ‘Piano em Perspectiva’ na série Concertos de Eva

Jovem pianista mineiro com trajetória premiada no Brasil e na Europa, Rafael Ruiz é o convidado da…

6 horas ago

Mostra Bonecos Sem Fronteiras com a cia Caravan Maschera Teatro celebra 15 anos com espetáculos no Espaço Sobrevento

Cia Caravan Maschera celebra 15 anos com mostra Bonecos sem Fronteiras, no Espaço Sobrevento. Espetáculos…

7 horas ago