Literatura serve para muitas coisas. Serve para informar, serve para divertir — e serve também para curar ou, ao menos, para minorar o sofrimento das pessoas. Duvidam? Pois então fiquem sabendo que desde 1981 existe nos Estados Unidos uma Associação Nacional para a Terapia pela Poesia, cuja finalidade é o uso da literatura para o desenvolvimento pessoal e o tratamento de situações patológicas. A associação edita o Journal for Poetry Therapy, realiza cursos e confere o título de especialista em biblioterapia. O biblioterapeuta trabalha em hospitais, instituições psiquiátricas e geriátricas, prisões. O método é relativamente simples: ele seleciona um poema, um conto, um trecho de romance que é lido para a pessoa. A resposta emocional desta é então discutida.
E respostas emocionais a textos podem ser muito intensas. Exemplo eloquente é Werther, de Goethe, cujo jovem personagem se suicida. A publicação da obra suscitou uma onda de suicídios por toda a Europa, coisa que até hoje é evocada quando se discute a veiculação de notícias similares pela mídia. O mecanismo básico que aí funciona é o da identificação, algo que começa muito cedo. Bruno Bettelheim mostrou que os contos de fadas exercem um papel importante na formação do psiquismo infantil, não apenas fornecendo modelos com os quais a criança pode se identificar, como também provendo uma válvula de escape para as tensões emocionais. Na adolescência, os modelos passam a ser outros. E houve época em que os jovens aprendiam a fazer sexo com a literatura conhecida como pornográfica (lembrança pessoal: jovens do Colégio Júlio de Castilhos devorando as páginas suspeitosamente amareladas de um velho livro cujo título não recordo, mas que falava na “grutinha do prazer”). E, no século xix, eram os grandes romances — aqueles de Balzac, por exemplo — que ensinavam as pessoas a viver. Esse papel foi assumido pelo cinema e pela tv, mas a proliferação das obras de autoajuda mostra que as pessoas continuam acreditando em livros como guias para a saúde e para a cura.
Por último, mas não menos interessante, a literatura é importante como fator de estabilidade emocional para os próprios escritores. A associação entre talento e distúrbio psíquico é antiga. Aristóteles já observava que o gênio com frequência é melancólico. Shakespeare dizia que se associam na imaginação o lunático, o poeta e o amante, o que tem contrapartida no dito popular: “De poeta e de louco todos nós temos um pouco”. Kay Redfield Jamison, professora de psiquiatria na Universidade Johns Hopkins, estudou a vida de numerosos poetas e escritores, concluindo que há “uma convincente associação, para não dizer real superposição”, entre temperamento artístico e distúrbio emocional ou mental (doença bipolar, no caso). Nessas condições, escrever pode ser uma forma de descarregar a angústia e de colocar (ao menos no papel) ordem no caos do mundo interno. Porque a palavra é um instrumento terapêutico, é o grande instrumento da psicanálise. E a palavra escrita tem a respeitabilidade, a aura mística que cerca textos fundadores de nossa cultura, como é o caso da Bíblia. Kafka dizia que era um absurdo trocar a vida pela escrita. Mas ele também reconhecia que sua própria vida era absurda e, nesse sentido, estava optando por uma alternativa com potencial para redimi-lo.
Não precisamos chegar ao extremo de um Kafka. Toda pessoa se beneficiará do ato de ler e de escrever. É terapia, sim, e é terapia prazerosa, acessível a todos. O que, em nosso tempo, não é pouca coisa.
[31/5/2003]
— Moacyr Scliar, no livro “Território da emoção: crônicas de medicina e saúde”. [organização e prefácio de Regina Zilberman]. São Paulo: Companhia das Letras, 2013
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