SOCIEDADE

Livro mostra a resistência de ex-escravos no Rio de Janeiro

Lançada pela Editora Humanitas, obra reconstitui a trajetória de negros na então capital federal no início do século 20
– por Roberto C. G. Castro/ Jornal USP – Cultura

Após a abolição da escravatura no Brasil, em 1888, houve um intenso processo migratório de negros e afrodescendentes no País. Em São Paulo, eles praticamente desapareceram, como afirmou o jornal A Redempção, nove anos depois da assinatura da Lei Áurea: “Tem-se notado que a raça preta vai desaparecendo aos poucos deste Estado”. Contra a opinião dos “pessimistas” – que diziam que isso se devia ao fato de os negros morrerem por abusarem da liberdade e se entregarem ao vício da embriaguez –, o jornal citava as condições de vida miseráveis, a prepotência da Polícia e os abusos dos magistrados como razões para que os ex-escravos deixassem o Estado e fossem buscar melhores perspectivas de existência em outras regiões do Brasil.

A historiadora Lúcia Helena Oliveira Silva se dedicou a traçar a trajetória de uma parte desses escravos libertos. No livro Paulistas Afrodescendentes no Rio de Janeiro Pós-Abolição (1888-1926), da Editora Humanitas, ela reconstitui a vida, os valores e as dificuldades de negros que, sem perspectivas em São Paulo, migraram para a então capital federal. “Se era certo o horror que os negros sentiam em relação à lavoura do café, devido aos maus tratos sofridos e às longas horas de trabalho no campo, possivelmente iriam querer ficar longe das fazendas e optar por viver em um grande centro urbano”, escreve Lúcia, confirmando a versão de A Redempção.

Negros no Rio de Janeiro no início do século 20. história de resistência – foto: Instituto Moreira Salles

Para explicar por que o Rio de Janeiro foi a cidade escolhida por boa parte dos negros saídos de São Paulo, a autora lembra que, antes mesmo das ondas migratórias pós-abolição, a cidade já era vista como ponto de convergência da população negra. “Essa presença de escravos, livres e libertos, criou uma pequena cidade dentro da cidade, um espaço criado pelos negros de todas as condições, onde podiam manifestar seus credos e costumes”, escreve Lúcia. “Assim, a cidade do Rio de Janeiro era um espaço atraente que poderia motivar libertos e afrodescendentes a tentarem criar uma vida com condições melhores do que tinham no Estado de São Paulo.”

Com base em processos criminais e em jornais da época, Lúcia consegue reconstituir, no primeiro capítulo do livro, os preconceitos e as adversidades que os negros libertos enfrentavam em São Paulo – e que, segundo a autora, foram as causas por que a população negra paulista optou por deixar para trás o Estado mais promissor do País.

Lúcia toma como exemplo o município de Campinas, no interior paulista. Ela cita anúncios de emprego discriminatórios nos jornais locais, pedindo pessoas brancas, “o que nos dá indícios do grau de tensão entre brancos e negros na cidade”. A violência contra as pessoas negras que ficavam nas ruas em horários de lazer e descanso – acrescenta a autora – era constante. As ações discriminatórias aconteciam habitualmente, como indica um texto do jornal Gazeta de Campinas, de 3 de março de 1900, reproduzido no livro: “Não se pode mais sair com a família sem que hordas de negros invadam as ruas, especialmente a rua Barão de Jaguara. É preciso coibir as cáfilas antes que o mal cresça”.

No texto, o jornal recriminava o direito de cidadãos negros de percorrer as ruas ao lado dos brancos. Para o jornal, o lugar deles não era junto a famílias brancas. “Coibia-se o direito de ir e vir dos afrodescendentes e manifestava-se a não possibilidade de convívio no mesmo espaço com os brancos. A repreensão se fazia inclusive pelo uso de adjetivos ofensivos comparáveis aos utilizados para animais e criminosos.”

Na então capital federal, os negros estudados por Lúcia não tiveram uma vida diferente da que experimentavam em São Paulo – tema do capítulo 2 do livro. Também a discriminação e o abuso de autoridades policiais pesavam sobre a comunidade de ex-escravos vindos das terras paulitas. Como afirma a autora, com base nos processos criminais a que teve acesso, a intolerância e a indiscriminada repressão policial atingiam os segmentos populares que transitavam pelas vias públicas, mesmo nas imediações de suas casas, o que trazia aos migrantes paulistas, assim como aos demais grupos da população pobre, dificuldades adicionais para a sua sobrevivência. “Contudo, essa mesma violência não impedia que esses recém-chegados continuassem a viver nesses mesmos espaços. Apoiados por redes de solidariedade de familiares, amigos e conterrâneos, eles ocupavam a cidade que haviam escolhido para viver.”

Capa do livro de Lúcia Helena – foto: Reprodução

No terceiro e último capítulo do livro, Lúcia se põe a descrever o cotidiano dos migrantes negros paulistas no Rio de Janeiro – suas relações com os demais habitantes da cidade, seu trabalho, amizades, uniões conjugais e a vida nos cortiços e morros. “A maior parte desses imigrantes era de jovens, solteiros e, possivelmente, sozinhos. Muitos foram surpreendidos pelas dificuldades e acabaram muitas vezes por se decepcionar com as hostilidades da sobrevivência. Não raro, eles eram presos por estarem nas ruas, mas, à medida que se familiarizavam, revertiam as adversidades em aprendizado e desenvolviam novas estratégias de sobrevivência”, escreve Lúcia. “Assim, podemos entender que se, por um lado, eram constantes as prisões de libertos e afrodescendentes, por outro, a contínua presença destes nas ruas da cidade indicava que o cerceamento das elites não os inibiu. Mais do que isso, eles conseguiram reverter as ações repressivas e significações racistas. Dessa maneira, se no início do século 20 o Rio de Janeiro era a cidade que se tornou a ‘maravilhosa’ pelos seus feitos arquitetônicos de inspiração francesa, ao longo do tempo incorporou as experiências, sonhos e esperanças dos migrantes afrodescendentes, entre eles os migrantes paulistas.”

Paulistas Afrodescendentes no Rio de Janeiro Pós-Abolição (1888-1926), de Lúcia Helena Oliveira Silva, Editora Humanitas, 224 páginas, R$ 30,00.

Fonte: Jornal da USP

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