Para Feliciano Bezerra
“Morrer deve ser tão frio quanto na hora do parto”. Como falou dia desses minha querida prima Simone Panisset, tenho andado com muito medo de ligar qualquer aparelho eletrônico, que me traga alguma notícia do chamado do dia da senhora “indesejada das gentes”. As águas de março vem se aproximando numa intensidade galopante e vertiginosa a transportar gentes da minha mais amada ampla orquestra de sons. Paulo Russo, Arthur Maia, Miúcha, Tavito. Daqui a pouco acontecerá a despedida à la Quincas Berro d’Água do anfitrião imenso de afeto Alfredinho do Bip Bip. Antes de anunciar a quarta feira de cinzas, Alfredinho voa como Vadinho, poupando-se da tarefa de amansar tanta ressaca no país do carnaval.
A indesejada das gentes nomeada sem medo, sem o Pedro e tantos: “Deus me livre de ter medo agora/ Depois que eu já me joguei no mundo/ Deus me livre de ter medo agora/ Depois que eu já pus os pés no fundo/ Se você cair, não tenha medo/ O mundo é fundo/ Quem pisar no fundo encontra a porta/ Do fim de tudo”. Gilberto Gil discorria tranquilo e sereno sobre a morte no programa de Pedro Bial “sereno quer dizer que você será/ será suave, ameno e tranquilo, será?”, enquanto o apresentador tentava equilibrar, com preceitos filosóficos sua mácula de serenidade plástica na Vênus Platinada.
O Gilberto Gil metafísico inspirou-me uma audição obsessiva de seu “Gil luminoso”, que culminou numa crônica que escrevi acalentada pela quentura do sol de Teresina. Passei meses e meses embotada, com medo do prenúncio sereno da viagem anunciada de Gil. Ok, ok, ok, o tempo transcorreu, até que numa manhã num passeio sonoro pelo Youtube me deparo com o clip tão lindo de “Uma coisa bonitinha”. “Uma coisa bonitinha/ que é mamãe/ Outra coisa ainda mais bonitinha/ Que é vovó/ Mamãe, um rostinho Michelangelo/ vovó, um corpinho estilo Caribé/ Mamãe, usuária assídua do metrô/ Vovó, bicicleta sempre que puder/ Mamãe, materialista de bom tom/ Vovó, idealista da cabeça ao pé”.
Céu azulzíssimo, ao longo o mar e as pedras do Arpoador. Um mediano quadrado confeccionado com pedaços de tecidos floridos ganha amplitude multicolorida a servir de pano de fundo para as diversas mulheres: mamães, vovós. Brancas, louras, negras, magras, gordas, enrugadas, altas, baixas. Um amplo tecido de singularidades femininas “é a sua vida que eu quero bordar na minha / como se eu fosse o pano e você fosse a linha”, no bordado – rebolado de cada anônima mulher que se expressa em seu livre movimento. A solaridade de Ipanema contrasta com o branco e preto do estúdio, aquecido pelo encontro dos magos do swing Gilberto Gil e João Donato. É tudo muito mais que bonitinho, é boniteza, bonitasso ver dois mestres irmanados a sorrir com uma leveza de meninos. Dou mais dois cliques no mouse “O pensamento é nuvem/ o movimento é drone/ o monge no convento/ Aguarda o advento de Deus pelo Iphone” e surge o hino de reverência as tartarugas, um animal adverso, na contramão em tempos tão velozes como os de agora. Gil saúda o planeta das tartarugas ninjas que preenche o imaginário de seu neto: “Anauê, tartaruguê/ Anauê, tartaruga/ Mera invenção/ Hora de me iludir/ Pura emoção/ Afoxé, axé, axé, axé, axé/ Sei que anauê/ É uma saudação”. O clip de uma beleza comovente coloca em cena crianças- tartaruguinhas, com seus cascos feitos apenas por pequenas cestinhas de formato oval fixadas nas carcundas. Segura Corisquinho, e vai compondo sua coreografia o menininho- tartaruga, com suas duas tiras entrecruzadas no peito, dando suporte ao frágil casco. O ir e vir das ondas do mar que arrebentam sob os pés dos pequenos. Gil luminoso, homem velho menino a se desprender no infinito da magia criativa das crianças. A mais poética biópsia musical dança um ballet de glóbulos brancos e vermelhos em “Quatro pedacinhos”. Ápice de inspiração transfigurada do pleno Gil Luminoso, que em catarse alquímica transforma em canção o processo tão doloroso de ser cortado em tantos pedacinhos. O compositor, alquimista de cada filigrana de sensações converte em sublime incisão lírica cada talho de dor: “Ela mandou arrancar quatro pedacinhos do meu coração/ Depois mandou examinar os quatro pedacinhos/ Um para saber se eu sinto medo/ Um para saber se eu sinto dor/ Um para saber os meus segredos/ Um para saber se eu sinto amor”.
Jessica Lange/ Angelique, a diáfana noiva vem se aproximando a cada instante numa contagem regressiva para a chegada da “indesejada das gentes”. Prossegue amedrontado e ébrio o coreógrafo bailarino Roy Scheider/ Joe Gideon, alter ego de Bob Fosse para sua derradeira dança em “All that Jazz”. A indesejada das gentes também veste branco em “Quatro pedacinhos”, flor fêmea que resiste com seu perfume orgânico de sangue rubro. Gil é frágil forte paciente do destino.
No álbum “Quanta” Gil compôs uma obra prima em homenagem ao saudoso ator Mario Lago, cuja sabedoria comungada é precoce observação especular: “Rugas no rosto moreno / Ondas no lago sereno/ Vento repentino/ Ares de menino// O velho Mário Lago/ O velho, o mar e o lago/ O mar e o lago/ A alma bem resolvida/A embarcação ancorada/ Mar incorporado/ Mares do passado/ Aqui agora”. Aqui e agora é o melhor lugar do mundo para o compositor revelar a constatação de seus “sinais de defeito”: “Jacintho/ Já sinto aqui no meu peito/ Alguns sinais de defeito/ Coração, pulmões e afins// Velhice/ Cálculos, calos, calvície/ Hora de chamar o vice/ Para assumir o poder”. Gil homenageia Jachinto, amigo quase centenário que traz a força da longevidade. – por Daniela Aragão**
#* Ouvir os álbuns de Gilberto Gil, clique sobre o nome do disco “Gil luminoso“ – “Quanta” – “Ok, ok, ok“.
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** Daniela Aragão (1975) é doutora em literatura brasileira pela Puc-Rio, cantora e pesquisadora musical. Há mais de duas décadas desenvolve trabalhos sobre a história do cancioneiro brasileiro, com trabalhos publicados no Brasil e no exterior. Gravou em 2005 o disco “Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso”. Há mais de uma década realiza entrevistas com músicos de Juiz de Fora e de estatura nacional. Entre os entrevistados estão: Sergio Ricardo, Roberto Menescal, Joyce Moreno, Delia Fischer, Márcio Hallack, Estevão Teixeira, Cristovão Bastos, Robertinho Silva, Alexandre Raine, Guinga, Angela Rô Rô, Lucina, Turíbio Santos… Seu livro recém lançado “De Conversa em Conversa” reúne uma série de crônicas publicadas em jornais e revistas (Cataguases, AcheiUSA, Suplemento Minas, O dia, Revista Revestrés, Cronópios…) ao longo de quinze anos . Os textos de Daniela Aragão são reconhecidos no meio musical devido a sua considerável marca autoral e singularidade, cuja autora analisa minuciosamente e com lirismo obras de compositores e cantores como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Rita lee. O livro possui a orelha escrita pelo poeta Geraldo Carneiro, prefácio do pesquisador musical e professor da Puc-Rio Júlio Diniz, contracapa da cantora e compositora Joyce Moreno e do pianista e arranjador Cristovão Bastos. Irá lançar em 2022 seu livro “São Mateus – num tempo de delicadezas”. Colunista da Revista Prosa, Verso e Arte. #* Biografia completa AQUI!
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*Imagem (capa): Gilberto Gil – foto: Marcelo Hallit