quinta-feira, dezembro 19, 2024

Machado de Assis – por Harold Bloom

Os 100 autores mais criativos da história da literatura, por Harold Bloom

Houve um tempo em que a obra do mais original dos romancistas brasileiros estava disponível em língua inglesa em traduções inadequadas, situação felizmente agora remediada pelas eloquentes versões de Gregory Rabassa, The Posthumous Memoirs of Brás Cubas (1997) e Quincas Borba (1998), e pela igualmente meritória tradução de John Gledson, Don Casmurro (1997). Machado de Assis é um grande ironista, na vertente do seu romance predileto, A Vida e as Opiniões de Tristram Shandy (1759-1767),de Laurence Sterne. Tristram Shandy influenciou uma carrada de romancistas, de Goethe e Diderot, passando por Balzac e Dickens, até chegar a Thomas Mann, James Joyce e Samuel Beckett. No século XX, Sterne talvez tenha sido o maior precursor inglês dos romancistas hispano-americanos. Machado de Assis, cujos principais romances foram escritos nas décadas de 1880 e 1890, aproxima-se mais de Sterne do que qualquer outro escritor, inclusive do Dickens de As Aventuras o Sr. Pickwick. Sterne morreu em 1768; um século mais tarde, seu espectro, ou demónio, digamos, seu génio, atravessou os mares (à semelhança do Horla, de Maupassant) e possuiu Machado. Não quero negar originalidade e energia criativa ao mestre brasileiro, mas apenas registrar que o espírito de Sterne libertou Machado de quaisquer exigências meramente nacionalistas que o Brasil porventura pretendesse lhe impor.

Machado de Assis é uma espécie de milagre, mais uma demonstração da autonomia do génio literário, quanto a fatores como tempo e lugar, política e religião, e todo o tipo de contextualização que supostamente produz a determinação dos talentos humanos. Eu já havia lido e me apaixonado por sua obra, especialmente Memórias Póstumas de Brás Cubas, antes de saber que Machado era mulato e neto de escravos, em um Brasil onde a escravidão só foi abolida em 1888, quando o escritor estava com quase 50 anos. Ao ler Alejo Carpentier, inicialmente, cometi o equívoco de presumir que ele fosse o que chamamos “negro”. Ao ler Machado de Assis, presumi, erroneamente, que fosse o que chamamos “branco” (mas o que E. M. Foster, com muita graça, chamava “rosa-cinzento”). Carpentier, em O Reino deste Mundo, escreve a partir de uma perspectiva que hoje consideramos negra. Machado, em Memórias póstumas, ironicamente, adota uma perspectiva luso-brasileira branca, bastante decadente.

A modalidade de sátira praticada por Sterne muito deve a Jonathan Swift e Alexander Pope, mas com um atenuante que torna Sterne singular. O estilo da narrativa de Shandy é original: enlouquecidamente divagador (talvez em reverência à História de um Tonel, de Swift), mas também infinitamente criativo. Yorick, alter ego, de Sterne, morre mas retorna algumas vezes, depois de morto, ressurreições que inspiraram Machado de Assis a permitir a Brás Cubas a escritura de suas memórias póstumas. Sterne inicia com o momento da concepção de Tristram Shandy; Machado começa com uma verve matreira:

“Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adoptar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escripto ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também cantou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco.

Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta feira de mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia – peneirava – uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa ideia no discurso que proferiu à beira de minha cova: -“Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que tem honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado.”

Brás Cubas, observando que Moisés, suposto autor da Tora, descreve a própria morte ao final, inverte o procedimento bíblico. Toda a narrativa é escrita a partir da perspectiva da eternidade, sobre a qual Machado nada nos diz, sugerindo, por conseguinte, nada haver a relatar. Ironista cético que brinca com a viabilidade da loucura -assim como o fazem Cervantes, Swift e Sterne -, Machado permanece além das crenças, mas não além da crença na tradição literária europeia.

Dom Casmurro é obra tão bela e sutil quanto Brás Cubas, embora me cative menos, quiçá por não exibir a mesma alegria shandiana. Brás Cubas, ao contrário de Bento Santiago (apelidado “Dom Casmurro”, homem calado, aristocrático, reservado), não acredita que a vida seja uma ópera composta por Satanás. Contudo, escolher entre Brás Cubas e Dom Casmurro é escolher entre duas grandezas, enquanto o romance Quincas Borba, embora muito interessante, a meu ver, tem altos e baixos, em parte, devido ao fato de ser narrado na terceira pessoa, o que não é o forte de Machado. O autor precisa falar através do protagonista, a fim de manter o leitor sempre em suspenso, pois aí ficamos mais felizes.

Considero a dedicatória de Memórias Póstumas de Brás Cubas terrível demais para ser citada, constituindo inadequada indicação do tom do livro. Embora Machado diga que Brás Cubas deu alguns negativos toques de pessimismo às suas Memórias, a ironia do livro é bastante leve, à moda de Sterne, e não de Swift, a não ser pelo fato de Machado não apresentar qualquer resíduo de fé cristã. O ceticismo de Brás Cubas, na prática, configura um niilismo em que toda a realidade, inclusive eros, resulta em nada. Eis Brás Cubas, tentando se agarrar ao amor de sua vida, Virgília, com quem ele tem uma relação adúltera:

“(…) Fosse como fosse, tudo estava sendo explicado, mas não perdoado, e menos ainda esquecido. Virgília dizia-me uma porção de cousas duras, ameaçava-me com a separação,enfim louvava o marido. Esse sim, era um homem digno, muito superior a mim, delicado, um primor de cortesia e afeição; é o que ela dizia, enquanto eu, sentado, com os braços fincados nos joelhos, olhava para o chão, onde uma mosca arrastava uma formiga que lhe mordia o pé. Pobre mosca! pobre formiga!

– Mas você não diz nada, nada? – perguntou Virgília, parando deante de mim.

– Que hei-de dizer? Já expliquei tudo; você teima em zangar-se; que hei-de fazer? Sabe o que me parece? Parece-me que você está enfastiada, que se aborrece, que quer acabar…

– Justamente! Foi dali pôr o chapéu, com a mão trémula, raivosa… – Adeus, Dona Plácida -bradou ela para dentro. Depois foi até à porta, correu o fecho, ia sair; agarrei-a pela cintura. – Está bom, está bom – disse-lhe. Virgília ainda forcejou sair. Eu retive-a, pedi-lhe que ficasse, que esquecesse; ela afastou-se da porta e foi cair no canapé. Sentei-me ao pé dela, disse-lhe muitas cousas meigas, outras humildes, outras graciosas. Não afirmo se os nossos lábios chegaram à distância de um fio de cambraia ou ainda menos; é matéria controversa. Lembra-me, sim, que na agitação caiu um brinco de Virgília, que eu inclinei-me a apanhá-lo, e que a mosca de há pouco trepou ao brinco, levando sempre a formiga no pé. Então eu, com a delicadeza nativa de um homem do nosso século, pus na palma da mão aquele casal de mortificados; calculei toda a distância que ia da minha mão ao planeta Saturno, e perguntei a mim mesmo que interesse podia haver num episódio tão mofino. Se concluis daí que eu era um bárbaro, enganas-te, porque eu pedi um grampo a Virgília, afim de separar os dous insectos; mas a mosca farejou a minha intenção, abriu as asas e foi-se embora. Pobre mosca! pobre formiga! E Deus viu que isto era bom, como se diz na Escriptura.”

O trecho anterior pertence ao Capítulo 103, devidamente intitulado “Distracção” (embora o livro tenha apenas 200 páginas, apresenta 160 capítulos). Refletindo uma grande crise de eros ilícito, a questão se resolve através da fascinante (e ensandecida) preocupação de Brás Cubas com a mosca e a formiga. A arte de Machado triunfa na justaposição das palavras “com a delicadeza nativa de um homem do nosso século” e “Deus viu que isto era bom”. O leitor não tem tempo para se deleitar com tudo isso, pois, no capítulo seguinte, ocorre a visita inesperada do marido de Virgília, obrigando Brás Cubas a se esconder no quarto. Conseguindo escapar desse momento difícil, Brás Cubas recebe um bilhete de Virgília, informando-o das suspeitas do marido, e reage com uma observação extraordinária: “Eis aí o drama, eis aí a ponta da orelha trágica de Shakespeare.” Jamais chegamos a ver toda a orelha, pois Machado não é autor de tragédias. O que nos é reservado, no restante do romance,é a filosofia de Quincas Borba, amigo de Brás Cubas. Trata-se do Humanitismo, “o sistema de filosofia destinado a arruinar todos os demais sistemas”.

Quincas Borba fica louco, ou quase, e eu jamais obtive uma explicação lúcida dos ensinamentos do Humanitismo. Nesse ínterim, o caso de amor com Virgília chega ao fim, Brás Cubas completa 50 anos e profere um grande discurso ao Parlamento brasileiro, defendendo a redução do tamanho das barretinas da Guarda Nacional. Aproximamo-nos do vazio: Quincas Borba enlouquece de vez, várias jovens com quem Brás Cubas flertava nos tempos de juventude sofrem reveses na vida e, subitamente, o protagonista se vê no leito de morte, recebendo Virgília, para uma visita de despedida. Ele morre sem queixa ou remorso, expressando uma sensação de vitória, conforme se verifica nas palavras finais do romance:

“(…) porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: – Não tive filhos, não transmiti a nenhuma creatura o legado da nossa miséria.”

Não há miséria em Memórias Póstumas, e o leitor, mais uma vez, fica um tanto surpreso. O livro é cómico, inteligente, evasivo, uma leitura prazerosa, oração após oração. O génio de Machado nega qualquer páthos, ao mesmo tempo em que subverte todos os supostos valores e princípios, bem como a suposta moral. É como se Laurence Sterne houvesse escapado à cristandade, trocado os absurdos da monarquia britânica do século XVIII pelas sandices da ópera bufa do Império Brasileiro do século XDC (inclusive com elementos da escravidão negra, para dar mais sabor à irrealidade).

E notável que, do princípio ao fim do romance, Machado module o tom extraordinariamente lúcido e plácido da narrativa, sem jamais violar-lhe a consistência. O niilismo singular do livro não é shandiano, e demonstra postura e perspectiva absolutamente originais. Quando leio o romance, sinto-me, ao mesmo tempo, profundamente entretido e, de certo modo, perturbado. Eis Brás Cubas, aos 50 anos, despedindo-se de Eros, no Capítulo 135, devidamente intitulado “Oblivion”:

“E agora sinto que, se alguma dama tem seguido estas páginas, fecha o livro e não lê as restantes. Para ela extinguiu-se o que interessa da minha vida, que era o amor. Cincoenta anos! Não é ainda a invalidez, mas já não é a frescura. Venham mais dez, e eu entenderei o que um inglês dizia, entenderei que “cousa é não achar já quem se lembre de meus pais, e de que modo me há de encarar o próprio ESQUECIMENTO.”

Vai em versaletes esse nome. OBLIVION! Justo é que se dêm todas as honras a um personagem tão desprezado e tão digno, conviva da última hora, mas certo. Sabe-o a dama que luziu na aurora do actual reinado, e mais dolorosamente a que ostentou suas graças em flor sob o ministério Paraná, porque esta acha-se mais perto do triunfo, e sente já que outras lhe tomaram o carro. Então, se é digna de si mesma, não teima em espertar a lembrança morta ou expirante; não busca no olhar de hoje a mesma saudação do olhar de ontem, quando eram outros os que encetavam a marcha da vida, de alma alegre e pé veloz. Têmpora mutantur. Compreende que este turbilhão é assim mesmo, leva as folhas do mato e os farrapos do caminho, sem excepção nem piedade; e se tiver um pouco de filosofia, não inveja, mas lastima as que lhe tomaram o carro, porque também elas hão de ser apeadas pelo estribeiro OBLIVION. Espetáculo cujo fim é divertir o planeta Saturno, que anda muito aborrecido.”

Ao contrário de Saturno, divirto-me, e não me entedio, diante da constatação de que, muito em breve, hei de vivenciar o meu próprio ESQUECIMENTO. A genialidade de Machado de Assis é manter o leitor preso à narrativa, dirigir-se a ele frequente e diretamente, ao mesmo tempo em que evita o mero “realismo” (que jamais é realista). Memórias Póstumas de Brás Cubas, escritas do túmulo, tornam o esquecimento singularmente divertido.

– Harold Bloom, do livro “Génio: Os 100 autores mais criativos da história da literatura”. [tradução de José Roberto O’Shea; revisão de Marta M. O’Shea]. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.

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Harold Bloom

* Harold Bloom é professor titular de Ciências Humanas, na Universidade de Yale, e já ocupou cátedra na Universidade de Harvard. Escreveu mais de 25 livros, entre os quais Hamlet: Poema Ilimitado, Gênio, Como e Por Que Ler, Shakespeare: A Invenção do Humano, O Cânone Ocidental, além de A Anatomia da Influência. Ganhou o prêmio McArthur, da Academia Norte-Americana de Letras e Artes, e recebeu inúmeras distinções e diplomas honorários, inclusive a Medalha de Ouro de Crítica e Belles Lettres, conferida pela mesma academia, o Prêmio Internacional da Catalunha e o Prêmio Alfonso Reyes, do México. Bloom nasceu em Nova York, em 11 de julho de 1930.

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