O Canal de Suez é famoso como uma das principais e mais movimentadas rotas navegáveis artificiais. Este canal foi inaugurado em 1869, após 10 anos de construção, ligando as cidades egípcias de Suez, Ismailia, Al Qantarah e Porto Said (do sul para o norte do país). Mas muito mais que ligar estas cidades, o Canal de Suez ligou o Mar Vermelho ao Mar mediterrâneo, o que foi um profundo valor político e econômico, isto porque, antes dele, qualquer comércio ou transporte daquela região do Egito precisava dar a volta em todo o continente africado para chegar à Europa, por exemplo. E o mesmo se dava no sentido inverso, para que os europeus e suas mercadorias e tropas pudessem acessar aquela região, a viagem era muito longa e custosa. A construção do canal, feita em conjunto por França e Egito, diminuiu as distâncias e despesas com essas viagens. Além disso, o Canal de Suez é uma das rotas principais dos peregrinos islâmicos indo em direção à Meca.
Agora que entendemos a importância estratégica desse canal, vamos nos concentrar em seu processo de construção. Como já dito, o processo de construção levou 10 ano e atraiu incontáveis trabalhadores não apenas de todas as regiões do Egito, como de vários outros países, principalmente britânicos e franceses. Todas as pessoas vieram com suas famílias e trouxeram para o canteiro de obras seus costumes, tradições, música, dança, enfim, suas raízes.
Por uma questão de afinidade, os estrangeiros se reuniam entre si para festas e jantares nos finais de semana, enquanto os egípcios se reuniam ao final do expediente em eventos chamados Dammas, onde se sentavam no chão em grandes círculos para cantar e dançar após a última refeição do dia. São justamente essas Dammas que originam a dança folclórica da região do Canal de Suez, o Mambouty.
O Mambouty, também chamado de Bambouty, Mambotiya, Sensemeya ou ainda Dança dos Pescadores, é caracterizada por ser uma dança masculina, alegre, vigorosa, com passos rápidos, saltos altos, sapateados, palmas (esse é mais um exemplo de dança kaff) e que inclui como passo muito básico o Charleston, dança britânica trazida pelos marinheiros e trabalhadores ingleses. Essa dança faz alusão muito claramente à lida cotidiana dos trabalhadores do canal, especialmente pescadores, portando movimentos como remar, lançar redes, puxá-las cheias de peixe, avistar terras ou embarcações, fazer nós ou lidar com cordas, além de tentam passar uma certa instabilidade característica de embarcações navegando, são muito presentes.
Não se sabe ao certo como começou a participação feminina nessa dança, se as mulheres já dançavam nas Dammas ou se isso foi resultado de uma adaptação para os palcos, mas é certo que as mulheres dançando Mambouty têm 2 interpretações possíveis: ou elas se vestem como homens e dançam exatamente como os homens, os mesmos movimentos, passos e intenções; ou elas fazem adaptações do figurino e dos passos colocando charme e feminilidade, inclusive incorporando passos clássicos das danças orientais, como ondulações, batidas de quadril, tremidas em geral.
A música para Mambouty, assim como a dança, recebeu diversas influencias de muitos locais, mas em geral são canções com ritmos simples, fáceis de reproduzir (como fallahi, masmoud, maksoum ou malfuf), muito kaff, acompanhados de instrumentos como a sensemeya (uma espécie de lira originalmente de 5 cordas), derbak, percussão corporal, panelas, colheres e qualquer outros objetos que estivessem por perto e pudessem ser usados para criar sons ritmados.
Normalmente as letras das músicas falam sobre o trabalho comum da região, sobre amor ou amizade, e, quando se referem a mulheres, normalmente as descrevem como “aquele peixe que o marinheiro quer pescar” numa analogia ao casamento. Entretanto, a partir da década de 1950, as músicas passaram a ter um cunho mais nacionalista e um papel bastante relevante nos movimentos de nacionalização do canal e libertação da ocupação britânica na região. Mesmo em movimentos sociais mais recentes e em outras regiões do Egito (como as manifestações na Praça Tahrir, no Cairo) a música de Mambouty continua mantendo um papel importante junto às mobilizações sociais através de grandes grupos que se apresentam para apoiar as reivindicações.
Ao contrário de outros folclores, não é difícil encontrar e identificar músicas adequadas para o Mambouty, uma vez que este folclore é comparativamente mais novo e essencialmente urbano, o que facilita em muito acesso a informação. Existem 2 grandes representantes deste gênero musical que merecem destaque. O primeiro deles é Mohamed Mahmoud Ghazali, conhecido como Capitão Ghazali, foi líder do movimento de resistência contra a ocupação britânica no Canal de Suez. O segundo é Zakaria Ibrahim, fundador da Banda El Tambura, que participou dos protestos da Praça Tahrir em 2011, durante da revolução egípcia.
Não existe muito segredo sobre os figurinos adequados para este folclore, para os homens roupas de marinheiro ou pescados, coletes, calças saruel e roupas mais esgarçadas são boas referências. Já para as mulheres, que não vão se vestir como homens, são comuns as adaptações de roupas de marinheiro para torna-las mais femininas, calças e blusas om mangas ao estilo boca de sino e até mesmo o burquine (aquela roupa de banho que cobre todo o corpo da mulher inclusive os cabelos) é encontrado como uma possibilidade. Também é possível para as mulheres usar o vestido no estilo Baharey, ou seja, o mesmo usado para a dança Meleah Laff, isto porque se trata de uma roupa inspirada nas vestimentas das mulheres de regiões litorâneas que estariam esperando seus maridos voltarem do trabalho no Canal.
O dançarino Mohamed El Hosseny é uma grande referêcia para este estilo de dança, e no vídeo abaixo é interessante notar como ele está com um bastão como acessório. O fato de ele estar com o bastão e fazer movimentos com ele não transforma a dança num saidi, de forma alguma, o humor e o repertório de passos é completamente diferente. Ele não tem uma postura de luta, mas sim de alguém que pegou algo que estava por perto para brincar e mostrar habilidade enquanto dança entre amigos e é justamente esse o espírito da dança mambouty. Além de exibir outras características como o kaff, a percussão corporal e o uso das colheres.
O segundo vídeo, abaixo, é um bom exemplo de como uma mulher incorpora seu charme e feminilidade à essa dança que, de origem, é masculina. Além de nos mostrar as paisagens encantadoras do Canal de Suez.
* Nati Alfaya, dançarina árabe com 10 anos de estudo e prática, parte do grupo Caravana Lua do Oriente – Companhia de Danças Árabes, sediado em Londrina, Paraná, escreve sobre as danças árabes em suas diversas formas tendo um amor especial pelos folclores.
Outros textos de Nati Alfaya:
Nati Alfaya (textos e ensaios)
Facebook: Caravana Lua do Oriente