LITERATURA

“A manhã começa a bater no meu poema” – Herberto Helder

O poema
VII

A manhã começa a bater no meu poema.
As manhãs, os martelos velozes, as grandes flores
líricas.
Muita coisa começa a bater contra os muros do meu poema.
Escuto um pouco a medo o ruído das gárgulas,
o rodopio das rosáceas do meu
poema batido pela revelação das coisas.
Os finos ramos da cabeça cantam mexidos
pelo sangue.
Talvez eu enlouqueça à beira desta treva
rapidamente transfigurada.
Batem nas portas palavras,
sobem as escadas desta intimidade.
É como uma casa, é como os pés e as mãos
das pessoas invasoras e quentes.

Estou deitado no meu poema. Estou universalmente só,
deitado de costas, com o nariz que aspira,
a boca que emudece,
o sexo negro no seu quieto pensamento.
Batem, sobem, abrem, fecham,
gritam à volta da minha carne que é a complicada carne
do poema.

Uma inspiração fende lírios na minha testa,
fende-os ao meio
como os raios fendem as direitas taças de pedra.
Eu sorrio e levo pela mão essa criança poderosa,
uma visita do sangue cheio de luzes interiores.
Acompanho, como tocando uma espécie de paisagem
levitante,
as palavras pessoas caudas luminosas ascéticas aldeias.

É a madrugada e a noite que rolam sobre os telhados
do poema. É Deus que rola e a morte
e a vida violenta. E o meu coração é um castiçal
à beira
do povo que até mim separa os espinhos das formas
e traz sua pureza aguda e legítima.
– Trazem liras nas mãos, trazem nas mãos brutais
pequenos cravos de ouro ou peixes delicados
de música fria.

– Eu enlouqueço com a doçura dos meses vagarosos.

O poema dói-me, faz-me.
O povo traz coisas para sua casa
do meu poema.
Eu acordo e grito, bato com os martelos
dos dias da minha morte
a matéria secreta de que é feito o poema.

– A manhã começa a colocar o poema na parte
mais límpida da vida. E o povo canta-o
enquanto crescem os campos levantados
ao cume das seivas.
A manhã começa a dispersar o poema na luz incontida
do mundo.

– Herberto Helder, no livro “Poemas completos”. Série Grandes Escritores, Rio de Janeiro: Editora Tinta-da-China, 2016 – p. 39.

Ouça Herberto Helder 
recitando o “O poema, VII” do livro «A Colher na Boca» (1961). Registrado em disco Vinyl, editado pela Philips, para a série Poesia Portuguesa (1968). 

Outros poemas do poeta português Herberto Helder:
Herberto Helder (poemas e textos)

Revista Prosa Verso e Arte

Música - Literatura - Artes - Agenda cultural - Livros - Colunistas - Sociedade - Educação - Entrevistas

Recent Posts

Espetáculo “Aquele Momento Em Que…” em curta temporada no Sesc Santo Amaro

O espetáculo “Aquele Momento Em Que…”, com artistas do elenco da Associação Doutores da Alegria…

19 horas ago

Espetáculo ‘Cavalos Pretos São Imensos’ realiza apresentações ‘Galpão do Folias’

Com metáforas de resistência e realidade, espetáculo teatral 'Cavalos Pretos São Imensos' é o retrato…

21 horas ago

Barão Vermelho | Turnê ‘Do Tamanho da Vida’

O Barão Vermelho apresenta seu novo show “Do Tamanho da Vida”, título da música inédita…

1 dia ago

Espetáculo ‘Mamma Mia!’ estreia temporada no Teatro Riachuelo

Após enorme sucesso e mais de 80 mil espectadores Mamma Mia! chega ao Teatro Riachuelo…

1 dia ago

Espetáculo ‘Geografias’ faz nova temporada na Vila Mariana

O Centro de Pesquisa em Artes faz nova temporada do espetáculo Geografia, estrelada por Elina…

1 dia ago

Marisa Orth e Miguel Falabella juntos na comédia romântica ‘Fica Comigo Esta Noite’

Parceiros em cena e na memória do público, Marisa Orth e Miguel Falabella voltam a contracenar…

1 dia ago