Um dos últimos livros escritos por Manoel de Barros, Menino do mato sintetiza com perfeição suas aspirações e seu estilo. Esse menino, que é a consciência do poeta, deseja apreender o mundo sem explicações ou propósitos. Na primeira das duas partes que compõem esta obra, Manoel reforça sua instintiva ligação com a natureza e a infância. Em sua procura por “palavras abençoadas pela inocência”, o poeta busca o universo em seu estado primordial. A segunda parte, “Caderno de aprendiz“, evidencia a absoluta liberdade de sua linguagem. Aqui, as palavras deixam de nomear para nos fazer simplesmente sentir a pureza dos primeiros tempos de nossas vidas.
“Tenho o privilégio de não saber quase tudo.
E isso explica
o resto.”
– Manoel de Barros, no livro “Menino do mato”. Alfaguara, 2015.
Eis aqui alguns poeminhas da segunda parte “Caderno aprendiz”:
– 1 –
Eu queria ser banhado por um rio como
um sítio é.
Como as árvores são.
Como as pedras são.
Eu fosse inventado de ter uma garça e outros
pássaros em minhas árvores.
Eu fosse inventado como as pedrinhas e as rãs
em minhas areias.
Eu escorresse desembestado sobre as grotas
e pelos cerrados como os rios.
Sem conhecer nem os rumos como os
andarilhos.
Livre, livre é quem não tem rumo.
– Manoel de Barros, no livro “Menino do mato”. Alfaguara, 2015.
§
– 21 –
Eu bem sabia que a nossa visão é um ato
poético do olhar.
Assim aquele dia eu vi a tarde desaberta
nas margens do rio.
Como um pássaro desaberto em cima de uma pedra
na beira do rio.
Depois eu quisera também que a minha palavra
fosse desaberta na margem do rio.
Eu queria mesmo que as minhas palavras
fizesse parte do chão como os lagartos
fazem.
Eu queria que minhas palavras de joelhos
no chão pudessem ouvir as origens da terra.
– Manoel de Barros, no livro “Menino do mato”. Alfaguara, 2015.
§
– 22 –
Eu estava parado no meio de uma oração
como se eu estivesse desenvolvido a vermes.
Veio a minha professora e me ensinou:
Tudo o que você tem de fazer é tirar do
seu texto as palavras bichadas de seus
próprios costumes – falou!
Poesia é um desenho verbal de inocência!
– Manoel de Barros, no livro “Menino do mato”. Alfaguara, 2015.
§
– 25 –
Ponho por caso um tonto.
Um que a natureza progredisse
para árvore.
Um que vadiasse de ave como
as pedras vadiam de orvalho.
Um que soubesse de flor
como as abelhas sabem.
Isso isso!
Ele era um tonto que quisesse
adquirir uma linguagem de rã.
Para se escrever em rã.
– Manoel de Barros, no livro “Menino do mato”. Alfaguara, 2015.
§
– 26 –
Quisera o canto jubiloso
que corresse por dentro de minhas palavras.
Como um rio destampado corresse para os
campos.
– Manoel de Barros, no livro “Menino do mato”. Alfaguara, 2015.
§
– 28 –
O abandono do lugar me abraçou de com força.
E atingiu meu olhar para toda a vida.
Tudo que conheci depois veio carregado de abandono.
Não havia no lugar nenhum caminho de fugir.
A gente se inventava de caminhos com as novas palavras.
A gente era como um pedaço de formiga no chão.
Por isso o nosso gosto era só de desver o mundo.
– Manoel de Barros, no livro “Menino do mato”. Alfaguara, 2015.
§
– 31 –
Os sonhos não têm comportamento.
Sempre havia de existir nos sonhos daquele
menino o primitivismo do seu existir.
E as imagens que ele organizava com o
auxílio das suas palavras eram concretas.
Ele até chegou um dia a pegar na crina do vento.
Era sonho?
– Manoel de Barros, no livro “Menino do mato”. Alfaguara, 2015.
§
– 32 –
Vinham de longe para mim os silêncios
desprezados.
Até mesmo eu achei o silêncio das pedras menos
do que desprezados.
Mais tarde eu li em Herbert Read que as
metáforas fazem o caminho das origens.
Pois que as minhas visões tinham tudo a ver
com o caminho das origens.
Hoje eu vi um passarinho comendo
formigas de pedra!
Eu quase duvidei se existem formigas de pedra!
– Manoel de Barros, no livro “Menino do mato”. Alfaguara, 2015.
§
– 33 –
Naquele dia eu estava um rio.
O próprio.
Achei em minhas areias uma concha.
A concha trazia clamores do rio.
Mas o que eu queria mesmo era de me
aperfeiçoar quanto um rio.
Queria que os passarinhos do lugar
escolhessem minhas margens para pousar.
E escolhessem minhas árvores para
cantar.
Eu queria aprender a harmonia dos gorjeios.
– Manoel de Barros, no livro “Menino do mato”. Alfaguara, 2015.
§
– 34 –
Ele sabia que as coisas inúteis e os
homens inúteis
se guardam no abandono.
Os homens no seu próprio abandono.
E as coisas inúteis ficam para a poesia.
– Manoel de Barros, no livro “Menino do mato”. Alfaguara, 2015.
§
– 35 –
Eu queria fazer parte das árvores como os
pássaros fazem.
Eu queria fazer parte do orvalho como as
pedras fazem.
Eu só não queria significar.
Porque significar limita a imaginação.
E com pouca imaginação eu não poderia
fazer parte de uma árvore.
Como os pássaros fazem.
Então a razão me falou: o homem não
pode fazer parte do orvalho como as pedras
fazem.
Porque o homem não se transfigura senão
pelas palavras.
E isso era mesmo.
– Manoel de Barros, no livro “Menino do mato”. Alfaguara, 2015.
§
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Imagem (capa): Manoel de Barros – foto: Marlene Bergamo.
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“Eu vivo no meu relento.”
– Manoel de Barros, no livro “Menino do mato”. Alfaguara, 2015.