quinta-feira, dezembro 19, 2024

Manual de sobrevivência para as reuniões familiares

Volta o desafio das festas de fim de ano: teremos paz ou o reencontro terminará em briga?

Em 24 de dezembro de 1914, perto da cidade belga de Ypres, aconteceu a quase milagrosa Trégua de Natal entre alemães e britânicos. Os dois lados foram invadidos por um espírito natalino e decidiram distribuir presentes, canções e uns momentos de paz e reflexão em meio à loucura devastadora da Primeira Guerra Mundial. Certamente que custou a todos eles uma boa dose de empatia, compreensão, generosidade, comunicação não violenta, pensamento positivo, mindfulness e todos esses conceitos que estão na moda hoje em dia, mas que em 1914 fluíam da intuição e da vontade férrea de que tudo terminasse bem. E terminou.

Alguém um pouco mal-intencionado pode falar que o sucesso daquela trégua aconteceu porque no bando rival não estava seu cunhado espertinho ou a tia antipática ou o primo que não cuida da avó doente ou a família do seu cônjuge. De qualquer forma, e deixando as pequenas piadas de lado, é uma realidade que o espírito de Natal muitas vezes se transforma em um pequeno demônio que provoca brigas, discussões e divergências. Podemos apenas desfrutar da família, da comida, das risadas e da troca de opiniões e visões de mundo? É um mistério, mas em qualquer caso podemos contribuir um pouquinho com o espírito natalino. Também podemos ter uma boa predisposição e expectativas mínimas de sobrevivência que resumimos abaixo. Às vezes podem parecer coisas óbvias, mas como já ouvi Álex Rovira falar muitas vezes, temos a tendência a ignorar o óbvio.

Prepare-se para o pior, faça uma lista de perigos. Mas não pare no que é ruim e mostre o que o faz se sentir bem em família.

DECISÃO CONSCIENTE. Não é obrigatório ir a uma reunião de família. Nem mesmo para a ceia de Natal ou para a tradição de comer uvas. Então, se depois de pensarmos concluímos que não vamos nos divertir e não seremos capazes de ter a atitude certa, decidimos não ir e mudamos de planos. Não é por acaso que os cinemas, nestas datas, estão cheios. Mas se, pelo contrário, decidimos ir, devemos ser conscientes de que vamos a uma festa. Vamos nos encontrar com pessoas com quem compartilhamos algo, seja o que for, mas algo que nos une. Se alguém vai a uma festa com a intenção de sofrer, que não sejamos nós. Este ponto é importante porque nos obriga a pensar. A avaliar a situação e a nós mesmos, estando predispostos, dessa forma, a nos divertir.

PREPARE-SE PARA O PIOR. Como se fôssemos filósofos estoicos, devemos esperar pelo melhor, mas nos prepararmos para o pior. Um bom exercício para isso é pegar papel e lápis para anotar os perigos e ameaças que se escondem nestas reuniões familiares. Há algum tema tabu que não possa ser discutido? É melhor não falar de política ou futebol? O que foi o pior que aconteceu no ano passado? Tivemos alguma responsabilidade nisso? O importante é escrevê-lo, posto que, neste processo, avaliaremos nossas respostas emocionais, colocaremos em perspectiva as situações vividas e, principalmente, liberaremos o estresse. Uma vez que tenhamos a lista escrita, não vamos parar nos pontos ruins. Anotemos também os positivos, busquemos aquelas coisas que nos encantam e que nos fazem sentir bem nas reuniões familiares e que, embora não reconheçamos, nos produzem encantamentos quase infantis.

ENTRE COM UM PRESENTE. No já clássico A psicologia da persuasão, Robert Cialdini nos revela os seis princípios que funcionam como influência nas pessoas. Um deles é a lei da reciprocidade, na qual podemos nos fixar em um exemplo básico: quando, em um restaurante, a conta chega acompanhada por doces ou chupitos, “por conta da casa”, as gorjetas crescem entre 10% e 20%. É que os seres humanos tendem a equilibrar. Se são bem tratados, tratam bem. Se nos dão, damos. Se nos retiram, bem, é isso aí. Por que não dar um doce para cada um dos convidados? Um, sim. Façamos o teste e descubramos o seu poder.

PRATIQUE SLALOM. Sem dúvida, é necessário saber se esquivar dos temas delicados, aqueles que já sabemos que começam mal e acabam pior. Mas como fazer isso? Por exemplo, mudando de assunto. Imaginemos que a conversa fique quente ao chegar às eleições dos Estados Unidos, a Trump e ao muro na fronteira com o sul. Bom, podemos começar a falar do quanto gostaríamos de visitar Michigan, por exemplo. Às vezes, simplesmente precisamos recorrer a Shakespeare: “Empreste o ouvido a todos e a voz a poucos. Ouça as censuras dos demais, mas reserve suas próprias opiniões”.

FELICITE. Felicitar é reconhecer, dar valor a algo que alguém fez com o seu tempo, seu esforço e sua dedicação. É melhor buscar o lado positivo do que acontece ao nosso redor, felicitar pela comida que estamos comendo em lugar de reclamar porque há comida demais. Valorizar o vinho que acaba de ser servido contribui mais para o bom ambiente do que lembrar que há melhores e mais baratos em uma loja do nosso bairro.

ESCUTA ATIVA. Epicteto afirmava que “a natureza nos deu dois olhos, duas orelhas e uma boca, para que pudéssemos observar e escutar o dobro do que falamos”. Milênios depois, graças aos trabalhos do psicólogo Carl Rogers, foram definidas técnica e estratégia específicas de comunicação humana e que hoje em dia conhecemos como escuta ativa. O nome, neste caso, não apresenta nenhum segredo. Trata-se de escutar com tudo. De atender a quem nos está explicando isto ou aquilo e tentar entendê-lo, o que parece simples, se as duas partes falam o mesmo idioma. Mas isso não é tão fácil. Vai além das palavras. Trata-se de entender a outra pessoa de maneira consciente e profunda. De onde está falando conosco. De que medo ou esperança. De que sonho, anseio ou preocupação. Para isso, segundo os mestres da escuta ativa, há várias coisas que podemos fazer, como não interromper, não ficar atento ao celular, não julgar, não dar conselhos que não foram pedidos… Enfim, prestar toda nossa atenção à outra pessoa que está nos dedicando suas palavras. Abrir os ouvidos às vezes é o primeiro passo para abrir o coração.

VIVER O AGORA. Existe um provérbio zen, que as artes da publicidade converteram em anúncio de carros, que afirma: “Quando estiver caminhando, caminhe. Quando estiver comendo, coma”. A frase esconde uma grande verdade, tão grande quanto difícil de realizar: concentrar-se no momento. Por quê? Imaginemos que, depois de tudo, estejamos perdendo a paciência, que o diabinho das reuniões familiares esteja nos derrotando. Pois bem: façamos um exercício de atenção plena. De mindfulness. Vamos nos concentrar na comida. Totalmente. Na garfada que levamos à boca. Deixemos que o sabor nos invada, as texturas, a sua delicada elaboração. Deixemos que nos relaxe, que nos abstraía durante um infinito segundo daquelas coisas que nos chateiam. Desta maneira, podemos ter perspectiva e recuperar o foco e o equilíbrio.

CUIDADO: ‘IN VINO VERITAS’. Na antiga Roma, o vinho tinha implicações religiosas, medicinais e sociais, que davam um significado especial para esta bebida que, com certeza, não faltará em qualquer comemoração de Natal. Mas, cuidado, porque, como o próprio Plínio, o Velho, nos alerta, no vinho está a verdade. E não porque a bebida nos deixe mais sábios e comecemos a entender os segredos dos cosmos, mas porque solta nossa língua. Por isso, não beba demais se não quiser falar demais.

DECIDA SER FELIZ. Devemos ser mais humildes e controlar nossa linguagem, que de alguma maneira pode acabar determinando nossa própria realidade. Talvez, em vez de definir a próxima reunião familiar como uma punição insuportável, podemos começar falando dela como um lugar para se divertir e desejar a todo mundo um Feliz Natal.

Originalmente publicado em El País Brasil.


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