A aparição dos médicos em obras de arte é um fenômeno relativamente tardio. Certo, há alguns bustos e retratos de Hipócrates, o pai da medicina, mas durante toda a Idade Média os artistas preferiram retratar santos a doutores. No que provavelmente estavam certos. Em caso de doença era mais seguro apelar para as forças celestiais do que para os duvidosos conhecimentos das poucas pessoas (em sua maioria frades) que ousavam enfrentar pestes e enfermidades.
Com a modernidade, esse panorama muda quase que subitamente. A medicina é agora uma profissão reconhecida, ensinada em universidades, surgidas ao fim do medievo. Os doutores ousam mais. Querem, por exemplo, saber como é o corpo humano por dentro, e recorrem para isso à dissecção de cadáveres, coisa que era proibida pela religião. Aliás, nesse estudo os médicos foram precedidos pelos artistas, como Leonardo da Vinci, que deixou maravilhosos estudos de peças anatômicas. Um pouco mais tarde, Rembrandt pinta a famosa Lição de anatomia do dr. Tulp, em que um anatomista mostra a cirurgiões a estrutura da mão.
Os médicos eram agora retratados porque tinham se tornado importantes. Para muitos deles, essa importância traduziu-se em arrogância. Apesar dos conhecimentos anatômicos, ainda era bem pouco o que podiam fazer por seus doentes. Continuavam recorrendo a purgativos e sangrias, que só faziam debilitar mais os enfermos. Essa contradição não escapou ao olhar arguto de escritores e artistas. Em peças teatrais como O doente imaginário, Molière satirizou a onipotência dos doutores. Numa mistura de francês e latim, ele traduz a clássica receita de então: “Clysterium donare/ Postea seignare/ Ensuita purgare” (Dar um clister/ depois sangrar/ depois purgar). Ao que o coro responde: “Possa ele sangrar e matar por mil anos”.
Esse tipo de sátira teve correspondência na obra de pintores e desenhistas como William Hogarth (1697-764). A caricatura estava então fazendo sua entrada na arte e na imprensa, e os médicos tornaram-se um tema predileto (o que, no Brasil, aconteceu com Oswaldo Cruz). É preciso dizer, contudo, que o pincel satírico não retratava somente os médicos, mas também a sociedade em que eles estavam inseridos — gente que comia demais, que bebia demais, que fazia sexo demais e que, portanto, adoecia como resultado dos próprios excessos e extravagâncias.
A partir do final do século XIX a situação mudou de novo. A medicina tornava-se agora definitivamente científica. A revolução pasteuriana foi um marco neste sentido. Mais do que isso, êxitos impressionantes foram conseguidos no diagnóstico e tratamento de doenças. Claro, os doutores continuaram objeto da veia satírica de muitos autores (Bernard Shaw é um exemplo), mas, paralelamente, a medicina foi idealizada até as raias da veneração. Tudo isto, ao fim e ao cabo, deveria resultar numa lição de humildade. Não se trata de concluir coisas do tipo “quem hoje está por baixo amanhã estará por cima”. Não, é preciso admitir que toda atividade humana tem suas limitações e que nossa grandeza consiste em enfrentar tais limitações com confiança e não com arrogância.
30/10/1999
— Moacyr Scliar, no livro “Território da emoção: crônicas de medicina e saúde”. [organização e prefácio de Regina Zilberman]. São Paulo: Companhia das Letras, 2013
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Moacyr Scliar – uma vida entre a medicina e a literatura
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