terça-feira, dezembro 17, 2024

A menina de lá – João Guimarães Rosa

Sua casa ficava para trás da serra do Mim, quase no meio de um brejo de água limpa, lugar chamado o Temor-de-Deus. O pai, pequeno sitiante, lidava com vacas e arroz; a mãe, urucuiana, nunca tirava o terço da mão, mesmo quando matando galinhas ou passando descompostura em alguém. E ela, menininha, por nome Maria, Nhinhinha dita, nascera já muito para miúda, cabeçudota e com olhos enormes.

Não que parecesse olhar ou enxergar de propósito. Parava quieta, não queria bruxas de pano, brinquedo nenhum, sempre sentadinha onde se achasse, pouco se mexia.

— “Ninguém entende muita coisa que ela fala…” dizia o pai, com certo espanto. Menos pela estranhez das palairas, pois só em raro ela perguntava, por exemplo: — “Ele xurugou?” — e, vai ver, quem e o quê, jamais se saberia.

Mas, pelo esquisito do juízo ou enfeitado do sentido. Com riso imprevisto: — “Tatu não vê a lua…” — ela falasse. Ou referia estórias, absurdas, vagas, tudo muito curto: da abelha que se voou para uma nuvem; de uma porção de meninas e meninos sentados a uma mesa de doces, comprida, comprida, por tempo que nem se acabava; ou da precisão de se fazer lista das coisas todas que no dia por dia a gente vem perdendo. Só a pura vida.

Em geral, porém Nhinhinha, com seus nem quatro anos, não incomodava ninguém, e não se fazia notada, a não ser pela perfeita calma, imobilidade e silêncios.

Nem parecia gostar ou desgostar especialmente de coisa ou pessoa nenhuma. Botavam para ela a comida, ela continuava sentada, o prato de folha no colo, comia logo a carne ou o ovo, os torresmos, o do que fosse mais gostoso e atraente, e ia consumindo depois o resto, feijão, angu, o arroz, abóbora, com artística lentidão.

De vê-la tão perpétua e imperturbada, a gente se assustava de repente. — “Nhinhinha, que é que você está fazendo?” — perguntava-se. E ela respondia, alongada, sorrida, moduladamente: — “Eu… tu… fa-azendo”. Fazia vácuos. Seria mesmo seu tanto tolinha?

Nada a intimidava. Ouvia o pai querendo que a mãe coasse um café forte, e comentava, se sorrindo: — “Menino pidão… Menino pidão…” CostumaVa também dirigir-se à mãe desse jeito: — “Menina grande… Menina grande…” Com isso pai e mãe davam de zangar-se. Em vão. Nhinhinha murmurava só: — “Deixa… Deixa…” — sua sibilissínia, inábil como uma flor. O mesmo dizia quando vinham chamá-la para qualquer novidade, dessas de entusiasmar adultos e crianças. Não se importava com os acontecimentos. Tranquila, mas viçosa em saúde. Ninguém tinha real poder sobre ela, não se sabiam suas preferências. Como puni-la? E, bater-lhe, não ousassem; nem havia motivo.

Mas, o respeito que tinha por mãe e pai parecia mais uma engraçada espécie de tolerância.

E Nhinhinha gostava de mim.

Conversávamos, agora. Ela apreciava o casacão da noite — “Cheiinhas!” — olhava as estrelas, deléveis, sobre-humanas.

Chamava-as de “estrelinhas pia-pia”. Repetia: — “Tudo nascendo!” — essa sua exclamação dileta, em muitas ocasiões, com o deferir de um sorriso. E o ar. Dizia que o ar estava com cheiro de lembrança — “A gente não vê quando o vento se acaba…” Estava no quintal, vestidinha de amarelo. O que falava, às vezes era comum, a gente é que ouvia exagerado: — “Alturas de urubuir..

Não, dissera só: — ….. altura de urubu não ir”. O dedinho chegava quase no céu. Lembrou-se de:— “Jabuticaba de vem-me-ver…”

Suspirava depois: — “Eu quero ir para lá”. Aonde? — “Não sei.” Ai observou — “O passarinho desapareceu de cantar… De fato, o passarinho tinha estado cantando, e, no escorregar do tempo, eu pensava que não estivesse ouvindo; agora, ele se interrompera. Eu disse: — “A avezinha”. De por diante, Nhinhinha passou a chamar o sabiá de “Senhora Vizinha…”

E tinha respostas mais longas: — “Eeu? Tou fazendo saudade”.

Outra hora, falava-se de parentes já mortos, ela riu: — “Vou visitar eles…” Ralhei, dei conselhos, disse que ela estava com a lua.

Olhou-me, zombas, seus olhos muito perspectivos: — “Ele te xurugou?”
Nunca mais vi Nhinhinha.

Sei, porém, que foi por aí que ela começou a fazer milagres. Nem mãe nem pai acharam logo a maravilha, repentina. Mas Tiantônia. Parece que foi de manhã. Nhinhinha, só, sentada olhando o nada diante das pessoas: — “Eu queria o sapo vir aqui”. Se bem a ouviram, pensaram fosse um patranhar, o de seus disparates, de sempre. Tiantônia, por vezo, acenou-lhe com o dedo.

Mas, aí, reto, aos pulinhos, o ser entrava na sala, para aos pés de Nhínhinha — e não o sapo de papo, mas bela rã brejeira, vinda do verduroso, a rã verdíssima.

Visita dessas jamais acontecera. E ela riu: — “Está trabalhando um feitiço…” Os outros se pasmaram; silenciaram demais.

Dias depois, com o mesmo sossego: — “Eu queria uma pamonhinha de goíabada…” —sussurrou; e, nem bem meia hora, chegou uma dona, de longe, que trazia os pãezinhos da goiabada enrolada na palha.

Aquilo, quem entendia? Nem os outros prodígios, que vieram se seguindo. O que ela queria, que falava, súbito acontecia. Só que queria muito pouco, e sempre as coisas levianas e descuidosas, o que não põe nem quita. Assim, quando a mãe adoeceu de dores, que eram de nenhum remédio, não houve fazer com que Nhinhinha lhe falasse a cura. Sorria apenas, segredando seu — “Deixa… Deixa.. — não a podiam despersuadir. Mas veio, vagarosa, abraçou a mãe e a beijou, quentinha. A mãe, que a olhava com estarrecida fé, sarou-se então, num minuto. Souberam que ela tinha também outros modos.

Decidiram de guardar segredo.

Não viessem ali os curiosos, gente maldosa e interesseira, com escândalos. Ou os padres, o bispo, quisessem tomar conta da menina, levá-la para sério convento.

Ninguém, nem os parentes de mais perto, devia saber. Também, o pai, Tiantônia e a mãe, nem queriam versar conversas, sentiam um medo extraordinário da coisa.

Achavam ilusão.

O que ao pai, aos poucos, pegava a aborrecer, era que de tudo não se tirasse o sensato proveito. Veio a seca, maior, até o brejo ameaçava de se estorricar.

Experimentaram pedir a Nhinhinha: que quisesse a chuva.

— “Mas, não pode, ué…” — ela sacudiu a cabecinha. Instaram-se: que, senão, se acabava tudo, o leite, o arroz, a carne, os doces, frutas, o melado. — “Deixa… Deixa…” — se sorria, repousada, chegou a fechar os olhos, ao insistirem, no súbito adormecer das andorinhas.

Daí a duas manhãs, quis: queria o arco-íris. Choveu. E logo aparecia o arco-da-velha, sobressaído em verde e o vermelho — que era mais um vivo cor-de-rosa. Nhinhinha se alegrou, fora do sério, à tarde do dia, com a refrescação. Fez o que nunca se lhe vira, pular e correr por casa e quintal. — “Adivinhou passarinho verde?” — pai e mãe se perguntavam. Esses, os passarínhos, cantavam, deputados de um reino. Mas houve que, a certo momento, Tiantônia repreendesse a menina, muito brava, muito forte, sem usos, até a mãe e o pai não entenderam aquilo, não gostaram. E Nhinhinha, branda, tornou a ficar sentadinha, inalterada que nem se sonhasse, ainda mais imóvel, com seu passarinho-verde pensamento. Pai e mãe cochichavam, contentes: que, quando ela crescesse e tomasse juízo, ia poder ajudar muito a eles, conforme à Providência decerto prazia que fosse.

E, vai, Nhinhinha adoeceu e morreu. Diz-se que da má água desses ares. Todos os vivos atos se passam longe demais. Desabado aquele feito, houve muitas diversas dores, de todos, dos de casa: um de-repente enorme. A mãe, o pai, e Tiantônia davam conta de que era a mesma coisa que se cada um deles tivesse morrido por metade. E mais para repassar o coração de se ver quando a mãe desfiava o terço, mas em vez das ave-marias podendo só gemer aquilo de — “Menina grande… Menina grande…” — com toda ferocidade.

E o pai alisava com as mãos o tamboretinho em que Nhinhínha se sentava tanto, e em que ele mesmo se sentar não podia, que com o peso de seu corpo de homem o tamboretinho se quebrava.

Agora, precisavam de mandar recado, ao arraial, para fazerem o caixão e aprontarem o enterro, com acompanhamento de virgens e anjos. Aí, Tiantônia tomou coragem, carecia de contar: que, naquele dia, do arco-íris da chuva, do passarinho, Nhinhinha tinha falado despropositado desatino, por isso com ela ralhara. O que fora: que queria um caixãozinho corde-rosa, com enfeites verdes brilhantes… A agouraria! Agora, era para se encomendar o caixãozinho assim, sua vontade?

O pai, em bruscas lágrimas, esbravejou: que não! Ah, que, se consentisse nisso, era como tomar culpa, estar ajudando ainda a Nhinhinha a morrer…

A mãe queria, ela começou a discutir com o pai. Mas, no mais choro, se serenou — o sorriso tão bom, tão grande — suspensão num pensamento: que não era preciso encomendar, nem explicar, pois havia de sair bem assim, do jeito, cor-de-rosa com verdes funebrilhos, porque era, tinha de ser! — pelo milagre, o de sua filhinha em glória, Santa Nhinhinha.

– João Guimarães Rosa, no livro “Primeiras estórias”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008; 16ª ed., Global Editora, 2019. 

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