Mestres de amanhã* (**)
{mantida a ortografia original}
Creio, no exame do tema que nos ocupa, que não me cumpre exprimir apenas ansiedades e esperanças a respeito dos mestres de amanhã, mas procurar antecipar, em face das condições e da situação de hoje, o que poderá ser o mestre dos dias vindouros. E entre os mestres buscarei, sobretudo, caracterizar os mestres do ensino comum, do ensino destinado a todos, ou seja, na fase contemporânea, os mestres da escola primária e da escola secundária.
Deixarei de considerar o mestre de nível universitário, pois êste não está a passar pelas mesmas mudanças, que começam a atingir o mestre da escola comum e, de certo modo, se está também a mudar, é muito mais dentro de linha que não apresenta ruptura com a situação anterior, mas a desenvolve e aperfeiçoa.
É o mestre da escola elementar e da escola secundária que está em crise e se vê mais profundamente atingido e compelido a mudar pelas condições dos tempos presentes. E por quê?
Porque estamos entrando em uma fase nova da civilização chamada industrial, com a explosão contemporânea dos conhecimentos, com o desenvolvimento da tecnologia e com a extrema complexidade conseqüente da sociedade moderna.
Na realidade, o nosso esfôrço pela educação do homem, até muito recentemente, não chegou a ultrapassar os objetivos de prepará-lo para uma sociedade muito mais singela do que a sociedade moderna. Tomando o exemplo das sociedades desenvolvidas, que chegaram, como no caso da América do Norte, a oferecer educação a todos até os dezoito anos, a escola elementar e a secundária constituíram-se em escolas intelectualmente desambiciosas, destinadas a oferecer uma educação capaz de formar os jovens para o convívio político, social e econômico de uma sociedade de trabalho competitivo mas ao que se acreditava relativamente singela e homogênea. A criação mais original da sociedade americana nesse campo foi a da comprehensive school de nível secundário, com a flexibilidade dos seus currículos e a concentração na mesma escola de alunos os mais diversos nas aptidões, nas opções de estudo, na inteligência e nos objetivos escolares.
Esta escola, que resistiu ao severo estudo e análise de Conant, representa, na realidade, uma inovação em seus aspectos fundamentais. Constitui uma antecipação, se considerarmos que sua filosofia importa reconhecer certa unidade da cultura contemporânea, a despeito de sua aparente diversidade, e a equivalência das diferentes carreiras a que se iriam devotar os seus alunos.
Correta, assim, na sua estrutura, não creio, entretanto, que tenha conseguido realmente oferecer uma educação à altura do desafio dos nossos tempos. O que os nossos tempos pediam era, uma forte educação intelectual para o jovem moderno, a despeito das diferentes aptidões que possuísse, dos diferentes interêsses que revelasse e das diferentes carreiras a que se destinasse. A escola compreensiva reuniu todos os jovens na mesma escola e, para lhes dar a impressão de uma educação comum, diluiu o conteúdo dos diferentes programas, a fim de lhes emprestar uma equivalência, que só por essa diluição se fazia verdadeira.
Entrementes, que se passava com a civilização contemporânea? Entrava ela em fase de desenvolvimento científico até certo ponto inesperado, levando-a na indústria à automação, na vida econômica a um grau espantoso de opulência e na vida política e social a desenvolvimento de meios de comunicação de tal extensão e vigor que os órgãos de informação e de recreação se viram sùbitamente com o poder de condicionar mentalmente o indivíduo, transformando-o em joguête das fôrças de propaganda e algo de passivo no campo da recreação e do prazer.
O desenvolvimento contemporâneo no campo dos processos de comunicação já foi comparado com o correspondente ao da descoberta da imprensa, que gerou também, conforme sabemos, um período de certa degradação na difusão do conhecimento semelhante ao que se observa hoje com a utilização dos meios de comunicação em massa.
A verdade é que cada meio nôvo de comunicação, ao surgir, não produz imediatamente os resultados esperados mas, muitas vêzes, a difusão do que há de menos interessante, embora mais aparentemente popular, na cultura comum.
Não é apenas isto. Cada meio nôvo de comunicação alarga o espaço dentro do qual vive o homem e torna mais impessoal a comunicação, exigindo, em rigor, do cérebro humano compreensão mais delicada do valor, do significado e das circunstâncias em que a nova comunicação lhe é feita.
Se partirmos do período da simples comunicação oral de pessoa a pessoa que se conheçam mùtuamente no pequeno meio local, para a comunicação com o estranho e depois para a comunicação escrita ainda entre pessoas que se conheçam (correspondência) e, a seguir para a comunicação escrita pelo texto e livro e pelo jornal, ainda locais, e, afinal, pelo telégrafo, pelo telefone, pelo cinema, pelo rádio, pela televisão, pela comunicação estendida a todo o planêta que faz sùbitamente o homem comum não apenas o habitante de sua rua, sua cidade, seu Estado, sua nação, mas literalmente de todo o planêta e participante de uma cultura não apenas local e nacional mas mundial, podemos ver e sentir o grau de cultivo mental necessário para lhe ser possível submeter a informação, que lhe é assim trazida de todo o mundo, ao crivo de sua própria mente, a fim de compreendê-la e absorvê-la com o mesmo sentido de integração com que recebia a comunicação local e pessoal do seu período paroquial de vida.
Não sòmente, a comunicação se fêz assim universal no espaço, como também, com os novos recursos técnicos, se estendeu através do tempo, podendo o homem em uma simples sessão de cinema visualizar as civilizações ao longo da história, como sucede nos grandes espetáculos modernos em que a cultura antiga é apresentada de forma nem sequer sonhada pelos mais ambiciosos historiadores do passado.
Tôda essa imensa revolução dos meios de comunicação não poderia deixar de criar, em sua fase inicial, antes a confusão do que o esclarecimento, sobretudo porque êsses meios não foram sequer conservados na posse dos grupos responsáveis pela educação do homem, como a escrita e a imprensa, por exemplo, de certo modo se mantiveram, mas se fizeram recursos para a propaganda e a diversão comercializada, quando não para o condicionamento político e ideológico do homem.
A educação para êste período de nossa civilização ainda está para ser concebida e planejada e, depois disto, para executá-la, será preciso verdadeiramente um nôvo mestre, dotado de grau de cultura e de treino que apenas começamos a imaginar.
Desde que surgiu a cultura escrita na história humana jamais faltaram guardiães, tanto quanto possível competentes, para conservá-la e defender-lhe, por vêzes excessivamente, a sua pureza. Quando afinal surgiram as universidades, o engenho humano tudo fêz para resguardar-lhes a liberdade e a independência, a fim de que o saber humano pelos que soubessem fôsse conservado e cultivado.
Ao ampliar-se a universidade pelas escolas de cultura comum para todos, o preparo do mestre – ou seja, o guardião e transmissor da cultura – se fêz até o comêço do nosso século com razoável proficiência. Tanto quanto possível era êle o transmissor de uma cultura cuja significação e limites conhecia e, sobretudo, era o mais importante transmissor dessa cultura, estando em seu poder comandar até certo ponto a formação do educando.
Com a expansão dos meios de comunicação, o mestre perdeu êsse antigo poder, passando a ser apenas um contribuinte para a formação do aluno, que recebe, em relativa desordem, por êsses novos meios de comunicação, imprensa, rádio e televisão, massa incrível de informações e sugestões provenientes de uma civilização agitada por extrema difusão cultural e em acelerado estado de mudança.
A Universidade conservou, a despeito de tudo, um certo contrôle dessa cultura extremamente difusa e em explosiva mudança, graças à alta qualidade dos seus professôres e à vigorosa institucionalização de sua independência e sua liberdade, mas as escolas de cultura geral do homem comum ficaram com os mestres preparados para ministrar a cultura muito mais simples e paroquial do século passado. Bem sei que o preparo dêstes mestres se faz cada vez mais longo e nos países mais desenvolvidos já está francamente exigindo graus universitários. A tarefa, entretanto, é bem mais difícil e complexa.
Recentemente, na Inglaterra, fêz-se uma experiência de ensino universitário – o colégio universitário de Keele, que me parece merecer aqui uma referência. Como sabemos, o University College of North Staffordshire surgiu em 1950, com a intenção de criar um tipo nôvo de ensino universitário. Não irei descrever em detalhe a experiência de Keele, mas apenas comentar o primeiro ano de estudos desse nôvo colégio universitário, que constitui um exemplo do tipo global de cultura que seria necessário ao homem moderno. O propósito dêsse ano inicial, chamado de fundamentos, é o de rever, discutir e ilustrar os fundamentos, a herança, as conquistas e os problemas da civilização ocidental. Tomo do relatório sôbre o progresso dessa experiência, no Educational Year – book de 1959, a seguinte formulação dos objetivos dêsse primeiro ano de estudos: O curso começa “levando os estudantes, pela contemplação dos céus, à luz da astronomia e da física moderna, a um sentimento de espanto, maravilha e beleza. Não sòmente o estudante de arte mas também o cientista vê sob essa nova luz a fé e os métodos do físico, numa súmula do progresso científico a partir de Kepler, Galileu e Newton até as excitantes especulações da moderna cosmologia. Acompanhando os passos da inquirição humana desde a indagação de Olbert “Por que é a noite escura?” até a teoria da criação contínua, sentir-se-á o estudante a reproduzir essa extraordinária aventura da mente humana no seu esfôrço de imaginar e descobrir a natureza do universo. Segue-se o geólogo com a descrição da história da terra durante os 3.000.000.000 de anos ou mais que antecederam o aparecimento do homem. O geógrafo, depois, estuda o clima e os fatôres do meio ambiente. O biólogo introduz os sêres vivos e analisa as teorias da origem e a evolução do homem. Já aí os estudantes terão atingido a dose de humildade suficiente para apreciar as conquistas das primeiras civilizações, que lhe serão apresentadas pelos professôres de saber clássico, pelo filósofo, pelo teólogo e pelo historiador. Daí prossegue o curso introduzindo o estudante na consideração dos característicos e dos problemas da civilização ocidental numa era industrial, conforme os vêem os historiadores, os geógrafos, os cientistas políticos, os educadores e os economistas. A perspectiva já então é a dos dias de hoje, projetada dêsse fundo histórico, a fim de levar o estudante a sentir e apreciar os muitos e sérios problemas que hoje nos defrontam. A terceira parte do curso se detém nas realizações criadoras do homem – a língua, a literatura, as artes, a música, a arquitetura, as matemáticas, as ciências e a tecnologia e, por fim, o próprio homem e sua crença serão estudados por filósofos, psicólogos, sociólogos, teólogos e biólogos.”
Atrevo-me a considerar que êste deverá ser amanhã o programa de educação comum do homem moderno e não apenas, como em Keele, a introdução aos estudos de nível superior. Com os recursos técnicos modernos, estamos em condições de oferecer a cada jovem, antes de terminar o nível secundário de estudos um quadro da cultura contemporânea, desde os seus primórdios até os problemas e complexidades dos dias presentes. Não teremos todos os professôres especializados com que conta Keele para a sua experiência, mas, com os recursos da televisão, do cinema e do disco podemos levar todos os jovens a ver e ouvir, ou, pelo menos, a ouvir, êsses especialistas e, a seguir, com o professor da Classe, desdobrar, discutir e completar as lições que grandes mestres dêsse modo lhe tenham oferecido.
Mesmo assim, entretanto, será imensa a tarefa do professor secundário e grande deve ser o preparo, para que possa conduzir o jovem nessa tentativa de dar à sua cultura básica a largueza, a segurança e a perspectiva de uma visão global do esfôrço do homem sôbre a terra.
Os meios modernos de comunicação fizeram do nosso pIanêta um pequenino planêta e dos seus habitantes vizinhos uns dos outros. Por outro lado, as fôrças do desenvolvimento também nos aproximaram e criaram problemas comuns para o homem contemporâneo. Tudo está a indicar que não estamos longe de formas internacionais de governo. Se a isto juntarmos a explosão de conhecimentos e as mudanças que os novos conhecimentos, com as suas consequências tecnológicas, estão a trazer, podemos imaginar até que ponto as fôrças do costume, dos hábitos e das velhas crenças e preconceitos vão ser destruídas e quanto vai o homem depender de sua cultura formal e consciente, de seu conhecimento intelectual, simbólico e indireto, para se conduzir dentro da nova e desmesurada amplitude de sua vida pessoal. São portanto de assustar as responsabilidades que aguardam o mestre de amanhã. Sabemos o que se conseguiu, no passado, com a educação de grupos seletos de estudantes. Alguns estabelecimentos de educação secundária na Europa – refiro-me sobretudo ao esfôrço de educação seletiva acadêmica da França e da Alemanha e à educação intelectual e de caráter das english public schools – conseguiram dar, em nível secundário, formação humana significativa para a compreensão das civilizações clássicas e do seu ideal de homem culto. A nossa tarefa é hoje muito mais difícil. Primeiro, porque precisamos fazer algo de semelhante para todos e não apenas para alguns e segundo porque já não estaremos ministrando a cultura clássica mas a complexa, variada e, sob muitos aspectos, abstrusa cultura científica moderna.
Diante dos novos recursos tecnológicos, ouso crer ser possível a completa reformulação dos objetivos da cultura elementar e secundária do homem de hoje e, em consequência, de alterar a formação do mestre para essa sua nova tarefa.
Que haverá já hoje que nos possa sugerir o que poderá vir a ser a escola de amanhã? Perdoem-me que lhes lembre as transformações operadas nos grandes empreendimentos que dirigem a informação e as diversões modernas: a imprensa, o cinema, o rádio e a televisão. Entregues à iniciativa privada e dominados pelo espírito de competição, o jornal, a revista, a produção de filmes e as estações de rádio e de televisão tornaram-se grandes serviços técnicos e desenvolveram tipos de profissionais especializados, dotados de extrema virtuosidade, que se empenharam em se pôr à altura dos recursos tecnológicos e do grau de expansão da cultura moderna. Algo de semelhante será o que irá suceder com a escola, com a classe e com o professor. Se a biblioteca, de certo modo, já fizera do mestre um condutor dos estudos do aluno e não pròpriamente o transmissor da cultura, os novos recursos tecnológicos e os meios audiovisuais irão transformar o mestre no estimulador e assessor do estudante, cuja atividade de aprendizagem deve guiar, orientando-o em meio às dificuldades da aquisição das estruturas e modos de pensar fundamentais da cultura contemporânea de base científica em seus aspectos físicos e humanos. Mais do que o conteúdo do conhecimento em permanente expansão, cabe-lhe, com efeito, ensinar ao jovem aprendiz a aprender os métodos de pensar das ciências físico-matemáticas, biológicas e sociais, a fim de habilitá-lo a fazer de tôda a sua vida uma vida de instrução e estudos.
Talvez se possa dizer, embora represente uma grande simplificação, que a educação até há pouco tempo oferecida pela escola não passou, no nível elementar, da aprendizagem das artes de ler e escrever, como instrumento de comunicação e de trabalho, seguida de uma iniciação medíocre à vida cívica e política de sua nação; no nível secundário, do preparo do adolescente para as ocupações que requerem certo nível técnico e para a continuação dos seus estudos em nível superior; e, no nível superior, do preparo do profissional de nível superior e o do scholar ou pesquisador. Fora disto, há que notar que as universidades se constituíram elas próprias centros de pesquisa, de descoberta do conhecimento e de sua expansão.
Ora, sòmente êste grupo último de pesquisadores está efetivamente de posse dos instrumentos e dos objetivos da cultura científica em que estamos imersos e que nos conduz, sem dela têrmos real e efetiva consciência. O próprio scholar e pesquisador, embora seja o maior contribuinte dessa cultura moderna, só raramente tem dela consciência adequada, pois o grau de especialização do seu trabalho o obriga a tal concentração de esfôrço e de interêsse, que lhe dificulta se não impede a visão global dessa cultura.
O fato contudo de estar mais empenhado em descobrir, em aumentar o saber do que no saber existente pròpriamente dito, fá-lo o que há de mais próximo em nossa sociedade do que deveria ser cada um dos membros dessa sociedade. Longe de mim julgar possível que cada um de nós venha a ser um pesquisador no sentido acadêmico. Nem seria possível, nem resolveria a dificuldade da sociedade contemporânea.
De certo modo, o que estou a insinuar é talvez até mais amplo, embora não me pareça tão difícil. Se a experiência de Keele pode constituir um exemplo do que se deveria fazer para dar ao cidadão do nosso tempo a weltanschauung da cultura contemporânea, convém recordar que isto representaria sòmente a aquisição de uma visão adequada ao nosso tempo. Embora extremamente importante, esta visão não lhe bastará, se dela não emergir a atitude e o propósito profundos de se fazer um eterno estudante, cujo interêsse permanente e vivo seja o de aprender sempre e mais. E nisto lembrará êle o pesquisador. Mas, enquanto êste é um profissional empenhado em um pequeno campo de conhecimento e devotado a ampliá-lo, o cidadão comum é um homem comum empenhado em compreender e em agir cada vez mais lùcidamente e mais eficientemente em sua ocupação e em sua vida global, pois lhe cumpre sentir-se responsável pela sua sociedade.
Acaso já refletimos que, se considerarmos utópica essa aspiração, teremos lavrado a nossa condenação à civilização científica que o homem está criando, mas será incapaz de dirigir e comandar. O que nos leva a considerar utópica esta imaginada integração do homem com a sua criação científica é a situação ainda dominante na educação oferecida pela escola.
H. G. Wells, um dos reconhecidos profetas dos primeiros tempos de nosso século, proclamou, na década dos vinte, que nos achávamos então em um páreo entre educação e catástrofe. Já na outra década venceu a catástrofe, de que sòmente agora parece vamos emergindo. Nosso otimismo, entretanto, não pode ser grande, pois, se sentimos nos entendimentos recentes um alvorecer de sabedoria política, o que por certo nos conforta, por outro lado, no campo da educação, cumpre-nos registrar apenas alguns significativos progressos no preparo de novos cientistas. Na educação comum do homem comum os progressos são os mais modestos. O homem comum está caminhando para ser o escravo como o entendia Aristóteles, ou seja, o homem que está na sociedade mas não é da sociedade. O progresso científico está na tela e conduz o homem nenhum de nós sabe para onde.
Ou melhor, todos sabemos, pois ninguém desconhece que, se a educação é cada vez mais fraca, o anúncio e a propaganda são cada vez mais fortes e nossa sociedade – sobretudo nos países em que já se fêz afluente – é uma sociedade cujo objetivo se reduz ao de consumir cada vez maiores quantidades de bens materiais. Conseguimos condicionar o homem para essa carreira de consumo, inventando necessidades e lançando-o num delírio de busca ilimitada de excitação e falsos bens materiais.
Ora, se o anúncio logrou obter isto, foi porque os meios de influir e condicionar o homem se fizeram extremamente eficazes. Não será isto uma razão para não considerar utópico o nosso desejo de formar um homem capaz de ser responsável pela sua sociedade e não o seu joguête, ou o seu escravo no sentido aristotélico?
Para isto, ouso pensar, o problema consistiria em formar um mestre, êsse mestre de amanhã, que fôsse um pouco do que já são hoje certos jornalistas de revistas e páginas científicas, um pouco dos chamados por vêzes injustamente popularizadores da ciência, um pouco dos cientistas que chegaram a escrever de modo geral e humano sôbre a ciência, um pouco dos autores de enciclopédias e livros de referência e, ao mesmo tempo, mais do que tudo isto. O mestre de amanhã teria, com efeito, de ser treinado para ensinar bàsicamente as disciplinas do pensamento científico, ou seja, a disciplina do pensamento matemático, a do pensamento experimental, a do pensamento biológico e a do pensamento das ciências sociais, e com fundamento nessa instrumentação da inteligência contribuir para que o homem ordinário se faça um aprendiz com o desejo de continuar sempre aprendendo, pois sua cultura não só é intrìnsecamente dinâmica mas está constantemente a mudar-lhe a vida e a obrigá-lo a novos e delicados ajustamentos. Por que não será impossível êste mestre? Porque são extraordinários os recursos tecnológicos que terá para se fazer um mestre da civilização científica, podendo para isto utilizar o cinema como forma descritiva e narrativa e a televisão como forma de acesso a mestres maiores que êle. O mestre seria algo como um operador dos recursos tecnológicos modernos para a apresentação e o estudo da cultura moderna, e como estaria, assim, rodeado e envolvido pelo equipamento e pela tecnologia produzida pela ciência, não lhe seria difícil ensinar o método e a disciplina intelectual do saber que tudo isso produziu e continua a produzir. A sua escola de amanhã lembrará muito mais um laboratório, uma oficina, uma estação de televisão do que a escola de ontem e ainda de hoje. Entre as coisas mais antigas, lembrará muito mais uma biblioteca e um museu do que o tradicional edifício de salas de aulas. E, como intelectual, o mestre de amanhã, nesse aspecto, lembrará muito mais o bibliotecário apaixonado pela sua biblioteca, o conservador de museu apaixonado pelo seu museu e, no sentido mais moderno, o escritor de rádio, de cinema ou de televisão apaixonado pelos seus assuntos, o pIanejador de exposições científicas, do que o antigo mestre-escola a repetir nas cIasses um saber já superado.
Não se diga que estou a apresentar observações que sòmente se aplicam às sociedades afluentes. O caso dos países subdesenvolvidos não é diverso, porque os recursos tecnológicos da propaganda e do anúncio também já lhe chegaram e não lhe será possível repetir a história dos sistemas escolares mas adaptar-se às formas mais recentes da escola de hoje. Está claro que concretamente seu problema é diverso. A sua luta não é ainda para comandar a produtividade mas para chegar à produtividade. A sua busca pelos bens materiais é muito mais imediata e dispensa os esforços da Madison Avenue. Paradoxalmente, entretanto, o espírito do anúncio e da propaganda lhe chegam antes de haver podido mudar sua estrutura social para se fazer uma sociedade científica de alta produtividade. E, por isto mesmo, o anúncio ainda é mais tràgicamente irônico. Somos pela propaganda condicionados para desejar o supérfluo, para atender a necessidades inventadas, antes de haver atendido nossas reais necessidades.
Também, portanto, haveremos de ter novas escolas e novos mestres, embora venham ser êles aqui mais os iniciadores do método científico nas escolas do que os simples adaptadores das escolas das sociedades afluentes já em pleno domínio da produção e do progresso científico.
Como marchamos, entretanto, para uma situação idêntica, cumpre-nos esforçar-nos para queimar as etapas e construir a sociedade moderna com uma escola ajustada ao tipo de cultura que ela representa.
Tôdas essas considerações nascem de uma atitude de aceitação do progresso científico moderno, de aceitação das terríveis mudanças que êste progresso está impondo à vida humana e da crença de que ainda não fizemos em educação o que deveria ser feito para preparar o homem para a época a que foi arrastado pelo seu próprio poder criador. Todo o nosso passado, nossos mais caros preconceitos, nossos hábitos mais queridos, nossa agradável vida paroquial, tudo isto se levanta contra o tumulto e a confusão de uma mudança profunda de cultura, como a que estamos sofrendo. A mocidade contudo está a aceitar esta mudança, é verdade que um tanto passivamente, mas sem nada que lembre a nossa inconformidade. A mudança, todos sabemos, é irreversível. Só conseguiremos restaurar-lhe a harmonia, se conseguirmos construir uma educação que a aceite, a ilumine e a conduza num sentido humano.
O desafio moderno é sobretudo êste: conseguir que todos os homens adquiram a disciplina intelectual de pensamento e estudo que, no passado, conseguimos dar aos poucos especialistas dotados para essa vida intelectual. O conhecimento e a vida adquiriram complexidade tamanha que só uma autêntica disciplina mental poderá ajudá-lo a se servir da ciência, a compreender a vida em sua moderna complexidade e amplitude e a dominá-la e submetê-la a uma ordem humana.
Ao alvorecer da vida de pensamento racional que deu origem a nossa civilização ocidental, os primeiros professores tiveram em Sócrates o seu mais significativo modelo. Nada menos podemos pedir hoje ao professor de amanhã. Os mestres do futuro terão de ser familiares dos métodos e conquistas da ciência e desde a escola primária iniciar a criança e depois o adolescente na arte sempre difícil e hoje extremamente complexa de pensar objetiva e cientificamente, de utilizar os conhecimentos que a pesquisa lhe está a trazer constantemente e de escolher e julgar os valores, com que há de enriquecer a sua vida neste planeta e no espaço que está em vésperas de conquistar. Reunindo, assim, funções de preceptor e de sacerdote e profundamente integrado na cultura científica, o mestre do futuro será o sal da terra, capaz de ensinar-nos, a despeito da complexidade e confusão modernas, a arte da vida pessoal em uma sociedade extremamente impessoal.
– Anísio Teixeira. “Mestres de amanhã”. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v.40, n.92, out./dez. 1963. p.10-19.
* Conferência proferida em sessão do Conselho Internacional de Educação para o Ensino, reunido no Hotel Glória, no Rio de Janeiro, em agosto de 1963.
** Grafia original (ortografia da época)
Fonte: BVAnísioTeixeira/UFBA
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