I – VIA DOLOROSA
Abro este poema com cuidado.
É delicado e afiado como a própria vida.
Nossa Bandeira sangra.
Inchada pálida febril
nossa democracia
na UTI dos insensatos.
Que ferramentas desumanas
danificaram a Carta Magna?
A tirania dos cifrões?
A insolência das proles de luxo
– ignorâncias incuráveis criadoras de sultões?
Ai Brasil, que vergonha!
Triste horizonte, este!
A solidão tornou-se constitucional
os ossos dos punhos mais livres
que os sonhos.
Provincianos, ressentidos
somos bem os donos das cenas
mais patéticas de uma sociedade
de equívocos.
Insones, criamos forças utópicas
esquecendo a semiótica do drama.
Nem Marx resistiria.
Nietzsche, definitivamente
não reencarnou por aqui.
II- VIA DOLOROSA
Ando com ares de rainha exilada.
Tenho rodopiado nas persianas
da janela .
Observo aranhas marrons no vaso
sobre a mesa da Terra.
Lembrei das imagens recentes
em todas as capitais.
Me dirigi à janela, separei
as persianas e não vi outros
motivos
senão o desespero diante
das resoluções soturnas do Parlamento
e a dignidade humana sofrendo
sérios riscos.
Cantilenas noticiosas
incitam a ler História Moderna
e Contemporânea das Américas.
Do prefácio ao epílogo reencontro
a repetição da História.
Em vão tento fazer brotar
do corpo estéril do livro
algum fio condutor de esperança
que nos leve além da corrupção
injustiça ignorância miséria
e solidão.
Um vento sem norte
sacode as persianas.
O tabuleiro permanece soberano
enquanto os bispos se digladiam.
Penso seriamente no “ovo de Colombo”
na elite vestida de amarelo cintilante,
paro por instantes diante dos estandartes
das supremas leviandades,
volto a pensar, agora com certa fúria
sobre o que havia dentro do ovo.
As incertezas se alastram
como um deserto agreste.
É preciso inaugurar o monumento
das magníficas e vergonhosas
mentiras.
Pensando assim
um silvo áspero retumba
à minha janela, parte a vidraça
e meus fantasmas incompreensíveis
dizem palavras: talvez exista alguma
matemática do espírito
cujas terríveis leis não sejam
tão violáveis como as que regem
a mentira governamental.
Diante dos estilhaços
guardarei o monumento do engôdo
no templo das sete vergonhas do mundo.
De certo que guardarei
antes que cesse o coração.
III- VIA DOLOROSA
Hoje, com displicência
visitei o jornaleiro.
Comprei todas as notícias
juntei os estilhaços da vidraça
e fechei a porta.
Pelas paredes caiadas da nação
descubro o mau cheiro
entranhado em bolor.
Nunca gostei das fadas e varinhas mágicas.
Escolhi a poesia dura
e renunciei aos encantamentos.
Se heróis e metáforas administrativas
resolvessem crises econômicas e sociais
a Declaração Universal do Direitos Humanos
teria sentido.
Ai, Brasil, como não entristecer?
O tabuleiro continua a irritar-me
exigindo afinidades.
Na diagonal, quanto em linha reta
o sangue é vermelho.
Dorme, povo.
Dorme no silêncio ilusório da
canção partida
porque o coro está desafinado!
Dorme o sono distraído
enquanto rumores difusos se amealham,
se tornam tão altos,
que de tão altos tornaram-se surdos!
Enterrados sob os equívocos
da História,
os desígnios das “dívidas” os ilustres
já comeram o pai
a mãe e os filhos.
No tabuleiro
os peões já começam
a avançar e ameaçar
xeque-mate aos reis de
toda verve
30.12.2016
Eulália M. Radtke*
* Eulália Maria Radtke (escritora e jornalista) nasceu em Gaspar – SC, em 6 de maio de 1949 e mudou-se para Blumenau – SC ainda pequena, onde cursou até o ginásio; trabalhava na lavoura e depois como fiandeira na indústria TEKA. Estudou, fez cursos profissionalizantes, foi para São Paulo, onde atuou como um dos líderes do movimento da Catequese Poética Paulista, na década de 1960 e, atualmente, mora em Navegantes SC. É membro da Associação Profissional de Escritores de Santa Catarina. Poeta, teatróloga, jornalista, compositora e cenógrafa, escreve música e produziu catálogos de exposições de artes plásticas nas décadas de 1970 e 1980, em Blumenau. Saiba mais sobre a autora (biografia completa, obras e outros poemas). AQUI!
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