Na ribeira deste rio
Ou na ribeira daquele
Passam meus dias a fio.
Nada me impede, me impele,
Me dá calor ou dá frio.
Vou vendo o que o rio faz
Quando o rio não faz nada.
Vejo os rastros que ele traz,
Numa sequência arrastada,
Do que ficou para trás.
Vou vendo e vou meditando,
Não bem no rio que passa
Mas só no que estou pensando,
Porque o bem dele é que faça
Eu não ver que vai passando.
Vou na ribeira do rio
Que está aqui ou ali,
E do seu curso me fio,
Porque, se o vi ou não vi.
Ele passa e eu confio.
.
2-10-1933
Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995). – 184.
Leia outro poema de Pessoa antes de ouvir abaixo a interpretação de Dori Caymmi:
Ah, toca suavemente
Ah, toca suavemente
Como a quem vai chorar
Qualquer canção tecida
De artifício e de luar —
Nada que faça lembrar
A vida.
Prelúdio de cortesias,
Ou sorriso que passou…
Jardim longínquo e frio…
E na alma de quem o achou
Só o eco absurdo do voo
Vazio.
.
8-11-1922
Poesias Inéditas (1919-1930). Fernando Pessoa. (Nota prévia de Vitorino Nemésio e notas de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1956 (imp. 1990). – 46.
Fernando Pessoa – o poeta de múltiplos eus
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