SOCIEDADE

Nação ativa, nação passiva – Milton Santos

A globalização atual e as formas brutais que adotou para impor mudanças levam à urgente necessidade de rever o que fazer com as coisas, as idéias e também com as palavras. Qualquer que seja o debate, hoje, reclama a explicitação clara e coerente dos seus termos, sem o que se pode facilmente cair no vazio ou na ambiguidade.

É o caso do próprio debate nacional, exigente de novas definições e vocabulário renovado. Como sempre, o país deve ser visto como uma situação estrutural em movimento, na qual cada elemento está intimamente relacionado com os demais. Agora, porém, no mundo da globalização, o reconhecimento dessa estrutura é difícil, do mesmo modo que a visualização de um projeto nacional pode se tornar obscura. Talvez por isso, os projetos das grandes empresas, impostos pela tirania das finanças e trombeteados pela mídia, acabem, de um jeito ou de outro, guiando a evolução dos países, em acordo ou não com as instâncias públicas, frequentemente dóceis e subservientes, deixando de lado o desenho de uma geopolítica própria a cada nação, que leve em conta suas características e interesses.

Assim, as noções de destino nacional e de projeto nacional cedem frequentemente a frente da cena a preocupações menores, pragmáticas, imediatistas, inclusive porque, pelas razões já expostas, os partidos políticos nacionais raramente apresentam plataformas conduzidas por objetivos políticos e sociais claros e que exprimam visões de conjunto. A idéia de história, sentido, destino é amesquinhada em nome da obtenção de metas estatísticas, cuja única preocupação é o conformismo diante das determinações do processo atual de globalização. Daí a produção sem contrapartida de desequilíbrios e distorções estruturais, acarretando mais fragmentação e desigualdade, tanto mais graves quanto mais abertos e obedientes se mostrem os países.

Tomemos o caso do Brasil. É mais que uma simples metáfora pensar que uma das formas de abordagem da questão seria considerar, dentro da nação, a existência, na realidade, de duas nações. Uma nação passiva e uma nação ativa. A grande ironia vem do fato de que as contabilidades nacionais, sendo globalizadas -e globalizantes!-, o que se passa a considerar como nação ativa é aquela que obedece cegamente ao desígnio globalitário, enquanto o resto acaba por constituir, desse ponto de vista, a nação passiva. A fazer valer tais postulados, a nação ativa seria a daqueles que aceitam, pregam e conduzem uma modernização que dá preeminência aos ajustes que interessam ao dinheiro, enquanto a nação passiva seria formada por tudo o mais.

Serão mesmo adequadas essas expressões? Ou aquilo que, desse modo, se está chamando de nação ativa seria, na realidade, a nação passiva, enquanto a nação chamada passiva seria, de fato, a nação ativa?

A chamada nação ativa, isto é, aquela que comparece eficazmente na contabilidade nacional e na contabilidade internacional, tem o seu modelo conduzido pelas burguesias internacionais e pelas burguesias nacionais associadas. É verdade, também, que o seu discurso globalizado, para ter eficácia local, necessita de um sotaque doméstico e por isso estimula um pensamento nacional associado, produzido por mentes cativas, subvencionadas ou não.

A nação chamada ativa alimenta a sua ação com a prevalência de um sistema ideológico que define as idéias de prosperidade e de riqueza e, paralelamente, a produção da conformidade. A “nação ativa” aparece como fluida, veloz, externamente articulada, internamente desarticuladora, entrópica. Será ela dinâmica? Como essa idéia é muito difundida, cabe lembrar que velocidade não é dinamismo. Esse movimento não é próprio, mas atribuído, tomado emprestado a um motor externo; ele não é genuíno, não tem finalidade, é desprovido de teleologia. Trata-se de uma agitação cega, um projeto equivocado, um dinamismo do diabo.

A nação chamada passiva é constituída pela grossa maior parte da população e da economia, aqueles que apenas participam de modo residual do mercado global ou cujas atividades conseguem sobreviver à sua margem, sem participar cabalmente da contabilidade pública ou das estatísticas oficiais. O pensamento que define e compreende os seus atores é o do intelectual público engajado na defesa dos interesses da maioria.

As atividades dessa nação passiva são frequentemente marcadas pela contradição entre a exigência prática da conformidade, isto é, a necessidade de participar direta ou indiretamente da racionalidade dominante, e a insatisfação e o inconformismo dos atores diante de resultados sempre limitados. Daí o encontro cotidiano de uma situação de inferiorização, tornada permanente, o que reforça em seus participantes a noção de escassez e convoca a uma reinterpretação da própria situação individual diante do
lugar, do país e do mundo.

A “nação passiva” é estatisticamente lenta, colada às rugosidades do seu entorno, localmente enraizada e orgânica. É também a nação que mantém relações de simbiose com o entorno imediato, relações cotidianas que criam, espontaneamente e na contracorrente, uma cultura própria, endógena, resistente, que também constitui um alicerce, uma base sólida para a produção de uma política. Essa nação passiva mora ali onde vive e evolui, enquanto a outra apenas circula, utilizando os lugares como mais um recurso a seu serviço, mas sem outro compromisso.

Num primeiro momento, desarticulada pela “nação ativa”, a “nação passiva” não pode alcançar um projeto conjunto. Aliás, o império dos interesses imediatos que se manifestam no exercício pragmático da vida contribui, sem dúvida, para tal desarticulação.

Mas, num segundo momento, a tomada de consciência trazida pelo seu enraizamento no meio e, sobretudo, pela sua experiência da escassez, torna possível a produção de um projeto, cuja viabilidade provém do fato de que a nação chamada passiva é formada pela maior parte da população, além de ser dotada de um dinamismo próprio, autêntico, fundado em sua própria existência -daí sua veracidade e riqueza.

Podemos desse modo admitir que aquilo que, mediante o jogo de espelhos da globalização, ainda se chama de nação ativa é, na verdade, a nação passiva, enquanto o que, pelos mesmos parâmetros, é considerado como a nação passiva constitui, já no presente, mas sobretudo na ótica do futuro, a verdadeira nação ativa. Sua emergência será tanto mais viável, rápida e eficaz se se reconhecerem e revelarem a confluência dos modos de existência e de trabalho dos respectivos atores e a profunda unidade do seu destino.

Aqui, o papel dos intelectuais será, talvez, muito mais do que promover um simples combate às formas de ser da “nação ativa” -tarefa importante, mas insuficiente, nas atuais circunstâncias-, devendo empenhar-se por mostrar, analiticamente, dentro do todo nacional, a vida sistêmica da nação passiva e suas manifestações de resistência a uma conquista indiscriminada e totalitária do espaço social pela chamada nação ativa.

Tal visão renovada da realidade contraditória de cada fração do território deve ser oferecida à reflexão da sociedade em geral, tanto à sociedade organizada nas associações, sindicatos, igrejas, partidos etc., como também à sociedade desorganizada, que encontrará nessa nova interpretação os elementos necessários para a postulação e o exercício de uma outra política, mais condizente com a busca do interesse social.

Fonte: texto originalmente publicado na Folha de São Paulo, em 21.11.1999.

Saiba mais sobre Milton Santos:
Milton Santos – território e sociedade
Milton Santos (entrevista e textos)

Revista Prosa Verso e Arte

Música - Literatura - Artes - Agenda cultural - Livros - Colunistas - Sociedade - Educação - Entrevistas

Recent Posts

Camilo Solano lança álbum ‘Quase Tudo Mundo’

Quadrinista e músico, Camilo Solano busca o que nos aproxima como pessoas no álbum "Quase…

1 hora ago

O duo S.N.A.K lança single ‘Toxic’

Duo S.N.A.K formado em Nova York por baixista brasileiro Marcelo Maccagnan e baterista francês Maxime…

2 horas ago

Banda Boogarins lança single ‘Corpo Asa’

A banda goiana Boogarins lança “Corpo Asa”, single de seu novo álbum “Bacuri” (Urban Jungle/ONErpm),…

3 horas ago

Espetáculo solo ‘Caio em Revista’, com ator Roberto Camargo estreia temporada no MI Teatro

Espetáculo solo do ator Roberto Camargo, dirigido por Luís Artur Nunes, põe em cena textos…

6 horas ago

Leo Russo lança ‘Isabella’, parceria com Moacyr Luz

O single “Isabella”, canção de Leo Russo e Moacyr Luz chegou nas plataformas digitais. A…

3 dias ago

Espetáculo ‘Eu conto essa história’ tem apresentação gratuita no Salão Assyrio, do Theatro Municipal do Rio de Janeiro

O espetáculo “Eu conto essa história" apresenta três narrativas de famílias que cruzaram continentes e oceanos em…

3 dias ago