Texto publicado no perfil do facebook do jornalista Osvaldo Maneschy: “NÃO FOI BALA PERDIDA, FOI EXECUÇÃO” — Este texto – repassado por Ziléa Resnik e Umberto Trigueiros Lima – foi escrito por um dos professores (Alcidesio Júnior) da Escola Municipal Jornalista Daniel Piza, em Acari, onde nesta quinta-feira à tarde (30/3/2017) foi morta a tiros pela PM uma estudante em plena aula de educação física: Maria Eduarda Alves da Conceição, de 13 anos, destacada jogadora de basquete da equipe da escola.
Texto do professor Alcidesio Júnior da Escola Municipal Jornalista Daniel Piza em Acari:
“Seu dedo apertou o gatilho: o sonho acabou.
“Hoje foi executada com três tiros, pela Polícia Militar, um na cabeça, um na nuca e outro nas costas, a menina Maria Eduarda Alves da Conceição, de 13 anos de idade, dentro da escola durante as aulas. Não é a primeira e não será a última vez que isto acontece.
Morreu com black na cabeça, camisa e bermuda do uniforme da prefeitura do Rio de Janeiro e um tênis rosa. Sem mochila ou celular, pois estava indo beber água. Jogava vôlei, ganhou por isso uma bolsa para ir para um colégio particular como aluna atleta, como diversos outros alunos do colégio conseguiram. Fruto de um trabalho maravilhoso dos professores de Educação Física, a menina começou a ter sonhos.
O colégio foi o melhor da CRE, venceu jogos e campeonatos contra colégios particulares, trouxe nove medalhas das 10 modalidades que participou no ano passado. Foi o destaque. Ela era da equipe. Mas, morreu.
Com ela morreu seus sonhos e a esperança de diversas outras crianças, que experimentaram hoje o ódio e o desejo de vingança pela covardia sofrida. Todo trabalho de seis anos do colégio na comunidade, todo o trabalho de 3 anos da equipe de Educação Física e Direção, toda credibilidade que tinham, morreram ali.
Eu sairia as 16:20, estava com a turma de 6° Ano. Ouvi três tiros de pistola. Coloquei todos sentados e em silêncio em local seguro. Ouvi mais rajadas de fuzil. Gritos. Controlando a turma, boatos vinham, diziam: menina baleada. Disse a turma que iria averiguar e eles esperassem. Concordaram. Um funcionário, pai de aluna, que veio três vezes a turma pra ver a filha e pedir que não saísse dali, estava no corredor.
Perguntei a ele o que realmente havia acontecido, ele pegou no meu braço e disse: quer ver o que aconteceu? Olhe ali embaixo. Vi o corpo e a poça de sangue. Morta. Voltei a turma. Confirmei o boato. Vi ainda na quadra o professor de E.F. com os outros alunos abrigados e abaixados. Na primeira pausa do tiroteio, que não acabou durante toda a tarde e noite, os alunos foram liberados para casa. Mas a troca de tiros, não parou.
Alunos, pais, familiares, curiosos, vizinhos e bandidos queriam ver o corpo, entrar na escola. Uma multidão que nunca vi ali, e sempre se renovava. Uma multidão. Muita dor, revolta, desespero, ajuda… gás de pimenta, coquetel molotov, tiros, fogos, gritos…muitos gritos. Muita gente desesperada, muita gente desmaiando. O inferno. Fogo na rua, barricadas, ônibus e carros queimados. Tiros.
Execução sumária. Revolta. Justa revolta. E nós, professores e funcionários, ali. Muito ódio. Justo ódio. E ela, morta.
Esta política de “combate às drogas” mata. Morre policial, morre traficante, morre inocente. Lucrando com ela, uma minoria de Políticos e “Empresários” da “boa sociedade”, que fornecem armas e drogas para os dois lados. Vendem a ideia de que vivemos em uma “guerra”, para atuarem livremente. Encontram eco nos discursos conservadores que dizem que “bandido bom é bandido morto”, que “favelado é criminoso”, que “direitos humanos só servem pra proteger bandidos”, que a “polícia deve ser justiceira contra bandidos”…
Se você defende isso, parabéns! Seu desejo foi realizado. Seu dedo ajudou a puxar o gatilho do fuzil que matou Maria. Ela virará estatística: mais uma preta, pobre e favelada que morreu. Junto com ela o humano deste ser. Nesta lógica do olho por olho, ficamos todos cegos.
O ódio classista, o ódio contra a favela, o ódio contra o pobre, voltará. A favela dará o retorno. A indiferença, o descaso, o descompromisso com ela, terá volta. Não terá controle. Não há paz sem justiça social. Não há sossego possível, com esta omissão estrutural e esta política de extermínio.
Ou mudamos tudo, ou nada mudará.
A família gritava: “a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro matou minha irmã “; “a favelada que estuda, tá aqui morta, enquanto isso, aquela criminosa foi solta pra cuidar do filho dela”; “queria ver se fosse na Zona Sul, se isso aconteceria, se as pessoas seriam tratadas assim”. O que dizer? Justo. Muito justo e lúcido.
Muitas coisas me doeram hoje: a menina que morreu; a dor de cada membro da família que chegava – cada grito de desespero era uma nova morte; o desespero e perplexidade dos alunos vendo o corpo, deitados no chão, e não sabendo o que fazer; a insensibilidade dos policiais militares que, nem ao lado do corpo da criança, pararam de rir, zombar e atiçar a dor da população; o despreparo e, ao mesmo tempo, o amor e empatia dos professores e funcionários para lidar e ajudar na situação; a impotência diante desta estrutura asfixiante e imobilizante.
Mas nada se comparou a dor sentida ao ler a mensagem que recebi do professor que mudou o colégio com sua nova forma de organizar a Educação Física, dando esperança a dezenas de alunos-atletas, que até então eram apenas “péssimos alunos” ou “projeto de marginais”:
“Obrigado, Júnior. Mas a minha pergunta é: do que adiantou eu ajudar ela a sonhar?”
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