EDUCAÇÃO

Nietzche – como tornar-se um destino

  – por Rafael Trindade – Razão Inadequada*

“Os figos caem das árvores, são bons e doces; ao caírem rasga-se a sua pele rubra. Um vento do norte sou eu para os figos maduros.
Assim, como figos maduros vos caem estes ensinamentos, meu amigos: bebei do seu sumo e da sua doce polpa! É outono ao redor, e puro céu e tarde”
– Nietzsche, Assim Falou Zaratustra – das ilhas bem aventuradas.

Nietzsche diz: “torna-te quem tu és“, ele mesmo segue a fórmula em seu livro Ecce Homo. Mas o que busca aquele que quer “tornar-se aquilo que é”? Será que queremos então chegar em algum lugar? Já vimos que tal tarefa está para além do bem e do mal, mas qual seria seu percurso (in)adequado? Temos a resposta: ela é, antes de mais nada, uma vivência e, em segundo lugar, um cultivo. Certo, mas aonde queremos chegar? E como sabemos que finalmente nos “tornamos aquilo que somos”?

“Ah, mar e destino! Rumo a vós devo agora descer!
Acho-me diante de minha mais alta montanha e de minha mais longa caminhada: por isso devo antes descer mais profundamente do que jamais desci: – descer mais profundamente na dor do que jamais desci, até sua mais negra maré! Assim quer meu destino: pois bem, estou pronto.
De onde vêm as mais altas montanhas?, perguntei certa vez. Então aprendi que vêm do mar.
Esse testemunho está inscrito em suas rochas e nas paredes de seus cumes. É a partir do mais profundo que o mais elevado deve chegar à sua altura”
– Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, O Andarilho.

Nietzsche mergulhou fundo na cultura europeia para fazer o diagnóstico de seu tempo: o homem está cansado, esgotado. Nós lhe demos uma finalidade e antecipamos tudo que poderia/deveria fazer! O homem tornou-se um universal! Um Deus! Um caminho! Quando Nietzsche diz “Torna-te quem tu és”, nem por um segundo quer encaixar o ser humano neste modelo de homem, universalmente reconhecido e validade pelo senso comum. Muito pelo contrário, o grande perigo, para o filósofo alemão, sempre foi o nojo do homem, do homem comum, o homem europeu, o homem médio. Por isso queremos superar o homem! A ele foi dado um objetivo fora dele, como se ele fosse imperfeito e precisasse buscá-lo em outro mundo.

Podemos ver então que a tarefa “torna-te quem tu és” é incomensurável, está para além do que podemos compreender ainda dentro da moral! Não podemos dizer o que o homem é nem o que deve experimentar, muito menos cultivar, para tornar-se aquilo que ele é. Mas sabemos que ele deve abandonar este último ídolo: a humanidade, o bem e o mal. Aquilo que se “é” só pode ser entendido no sentido de um destino, uma necessidade, não uma possibilidade ou um dever.

“No reencontro – A: Eu ainda o compreendo bem? Você está buscando? Onde se acham, no meio do mundo real de agora, seu canto e sua estrela? Onde pode você deitar-se ao sol, de forma que também lhe chegue um excedente de bem-estar e sua existência se justifique? […] B: Eu quero mais, não sou um buscador. Quero criar para mim meu próprio sol”
– Nietzsche, Gaia Ciência, §320

Alexandra Levasseur

A experiência do niilismo dá conta de mostrar que os valores que aí estão suprem apenas nossa necessidade de sobrevivência (às vezes nem isso). Desta maneira, estamos sempre buscando algo fora de nós, como se um dia tudo fosse se unificar, se completar, uma reedição do julgamento final cristão. Por isso a experiência do Eterno Retorno é vivido com tanto horror pelo homem religioso, medíocre, comum, neurótico: “Esta vida, de novo e de novo? Não, por favor, não… é muito sofrimento, me deem um céu, um lugar para descansar“. Apenas a transvaloração de todos os valores torna possível uma nova experiência com o real, com a vida, com aquilo que somos, apenas ela pode superar o homem cansado de si mesmo. Sim, porque apenas nela está contida a fórmula “torna-te quem tu és”: depois do Camelo e do Leão está a Criança, aquela que aprendeu a dizer Sim, aquela que, mesmo que em seu processo contínuo, simplesmente é (Três Metamorfoses do Espírito).

Surpreendente? Não… apenas a suspensão da intencionalidade e desta razão pequena que quer dar deveres a nós. O que o “ser” quer aqui é sua própria afirmação! Existe uma confiança renovada no mundo ao seguir este caminho. Não há opção! Até aquilo que não queríamos é necessário querer. Como mar de forças que se afirma. Desejar a afirmação pura! Seja o que for, seja ela qual for, em nós, nos outros, no universo. Apenas assim nos tornamos um pedaço de fatalidade.

Não somos covardes, não precisamos instrumentalizar a vida por medo ou por incapacidade. Suspendemos todas as mediações para enfrentar o mundo em sua máxima possibilidade, num mergulho vertical. E se todas as instituições até agora não estivessem mais do que nos enganando? E se todos os ídolos que nos fizeram ajoelhar tivessem pés de barro? Estamos cansados deste mundo caduco! A vida em nós, o sentimento de potência em nós, luta contra tudo isso.

“Nós, porém, queremos nos tornar aqueles que somos – os novos, únicos, incomparáveis, que dão leis a si mesmos, que criam a si mesmos!” 
– Nietzsche Gaia Ciência, §335.

A paixão pelo conhecimento se torna aqui muito maior que a ânsia por julgar a vida. Afinal, a vida não pode mais receber uma nota de zero à dez, como se pudesse ser reprovada ou não em uma avaliação. Toda vida, independe de qual seja, se afirma sempre o máximo que pode. É para isso que Nietzsche diz Sim! Mas é neste mesmo mar de forças que alguém torna-se quem é! Mergulhando de cabeça e apropriando-se delas, afirmando a afirmação, que cria, que é dadivosa, que é mutante! É este sim que abre o homem para o desconhecido, para a transmutação! Não é possível especificar o que é preciso atravessar para nos tornarmos o que somos, a tarefa de “tornar-se o que se é” é inteiramente aberta e fluída! Ele deixa de ser uma linha reta e encontra as linhas de fuga que antes sequer imaginava existir.

“Neste ponto já não há como eludir a resposta à questão de como alguém se torna o que é. E com isso toco na obra máxima da arte da preservação de si mesmo – do amor de si… Pois admitido que a tarefa, a destinação, o destino da tarefa ultrapasse em muito a medida ordinária, nenhum perigo haveria maior do que perceber-se com essa tarefa. Que alguém se torna o que é pressupõe que não suspeite sequer remotamente o que é”
– Nietzsche, Ecce Homo, Por que sou tão inteligente, §9.

É preciso tornar-se aquilo que se é, precisamente aquilo que se é! Este é o destino inevitável! Não há outra possibilidades porque assim será queiramos ou não! E o que somos? Já sabemos: Vontade de Potência e nada além disso! Toda a questão está aí, estas forças que se afirmam em nós, terão vazão? Para onde? Escavarão um buraco infinito em nosso interior e nos corroerão por dentro? Ou serão forças de criação de algo novo, inédito, expansivo?

O destino está em que estas forças são afirmação pura, seja para onde elas desaguarem. Nietzsche joga o homem de volta ao mundo, a este mundo, nu e cru, e diz: “agora é necessário que tu o afirmes, com todas as suas forças! Apenas assim tu poderás tornar-te aquilo que tu és!“. Em troca ele nos dá seus escritos, que não são um manual de como devemos ser e nos comportar, mas alarga o horizonte de possibilidades. “Retribui-se mal um mestre quando se permanece sempre e somente discípulo” (Zaratustra, Da Virtude Dadivosa)

Já sabemos, não há prescrição! Talvez apenas uma: viver! Mas viver levando em conta que a vida procura afirmar-se. É no fluxo da vida que se dá o cultivo das vivências, é no cultivo dos devires que o homem torna-se um destino. O paradoxo é o mesmo do nômade, que leva a casa nas costas. “Torna-te quem tu és“: ou seja, aproprie-se das forças que o constituem, fique atento para aquilo que entra e sai, repare na superfície da pele, nos poros, carregue a diferença consigo. Quem disse que os conceitos filosóficos são abstratos e inúteis? Com certeza foi alguém que não leu Nietzsche e muito menos teve a chance de “tornar-se aquele que é”. Um conceito é uma máquina à qual nos acoplamos, é uma ferramenta, é um martelo, é um pincel, é um cinzel. E o pensamento é prática de si! Por isso, não podemos e nem devemos saber de antemão no que iremos nos tornar.

Alexandra Levasseur

E quando sabemos que chegamos? A resposta pode ser esboçada no amor-fati. Somente quando a mais pesada das tarefas se torna leve é que sabemos que chegamos! Com um grande sorriso, a parte torna-se uma só com o todo! E, enfim o “assim foi”, transmuta-se em “assim eu quis”. O ser parte torna-se tomar parte. Somente deixando esta apertada casca chamada cultura, moral, bons costumes, homem, podemos enfim caminhar com mais leveza, talvez até como dançarinos! O amor-fati é a prova de que nos tornamos aquilo que somos: “eternamente gratos por nossa existência“, com suas dores, seus prazeres, e tudo que a compõem. A vida não é mais boa apesar da dor ou apesar dos pesares, ela é tudo que pode ser, e isso é ótimo! Apenas quem diz “Sim” para si mesmo e esta existência aprendeu a ser aquilo que é.

“‘Querer’ algo, ‘empenhar-se’ por algo, ter em vista um ‘fim’, um ‘desejo’ – nada disso conheço por experiência própria. Ainda neste momento olho para o meu futuro – um vasto futuro – como para um mar liso: nenhum anseio encrespa. Não quero em absoluto que algo se torne diferente do que é; eu mesmo não quero tornar-me diferente…”
– Nietzsche, Ecce Homo, por que sou tão inteligente, §9

Leia outros textos da série: “torna-te quem tu és“, por Rafael Trindade

* Fonte: Razão Inadequada

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