LITERATURA

No prosseguir – João Guimarães Rosa

À tarde do dia, ali o grau de tudo se exagerava. A choça. O pátio, varrido. O dono, cicatriz na testa, sentado num toro, espiando seus onceiros: cachorro de latido fino, cachorra com eventração. Era um velho de rosto já imposto; já branqueava a barba.
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Era caçador de onças, para o Coronel Donato, de Tremedal. Tinha para isso grandes partes. Matava-as, com espingardinha, o tiro na boca, para não estragar o couro.
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Os cães avisavam.
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Outro homem bulira-se de entre árvores, oscilado saía da mata. Vai que uma bala podia varar-lhe goela e nuca, sem partir dente, derribando-o dessa banda. Nem, não imaginar desrazão. Mesmo havia de querer muitas coisas, o pobre. Rapaz, guapo, a onça quase o acabara, comera-lhe carnes. A onça, pagara. Juntos, nenhuma vencia-os, companheiros.

Coxeava, o tanto, pela clareira, no devagar de ligeireza, macio. Também tendo cicatriz, feiosa, olho esvaziado. Não olhava para a casa. Moço quieto, áspero, que devia de ser leal, que lhe era semelhável. Precisava mais de viver; para a responsabilidade.
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Saudaram-se, baixo. O velho não se levantara. — “Queria saber de mim?” — um arrepio vital, a seca pergunta. O outro curvou-se, não ousava indagar por saúde. No que pensava, calava. E rodeavam-se com os olhos, deviam ser acertadamente amigos. Moravam em ermos, distantes.
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Viúvo, o velho tornara a casar-se, com mulher prazível. O moço, sozinho, mudava-se sempre mais afastado. Vinha, raro, ao necessário. Dar uma conversa, incansável escutador. Quanto mais que tinham ali de atacar em comum a onça — braçal, miã, com poder de espaço — o que nenhum dos jagunços do Coronel rompia; o ofício para que davam era aquele.

O moço ia pôr-se de cócoras, o velho apontou-lhe firme o cepo, foi quem ficou agachado. Mas, de chapéu. O moço, o seu nos joelhos, sentava-se meio torcido, de lado.
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Mudo modo, como quando a onça pirraça. Os cães, próximos. — “Aí… s’tro dia…” — ou — “… esse rastro é velho…” — inteiravam-se, passado conveniente tempo. Viravam novo silêncio.
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Fazia ideia, o velho, pesado de coisas na cabeça, ocultas figuras. Mal mirava o outro: aqueles grandes cabelos ruivo-amarelos, orelhas miúdas, o nariz curto, redonda ossuda a cara. Seco de pertinácias, de sem-medo; desde menino pequeno. Tinha as vantagens da mocidade, as necessidades…

Enquanto que, ele, esmorecia, com o render-se aos anos, o alquebro. O que era o que é a vida. A mais, a doença. Tormentos. Porque tinha aceitado de um qualquer dia morrer, deixando a mulher debaixo de amparo? Ia não largar no mundo viúva para mãos de estranhos!
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Daí, com o outro, o conversado, à mútua vontade, para providência. A esse, seguro por sangue e palavra, protetor, entregava então herdada a companheira, para quando a ocasião; tratou-se. Para ele poder morrer sem abalo… A mulher, entendendo, crer que anuía, tranquila calada. Disso ele tinha sabedoria. Em tanto que, às vezes, achava raiva. Agoniava-o o razoável. Direiteza, ou erro? Isso ficava em questão.
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Dera um gemido cavo. De rebate: se esticara para diante, o intento dos olhos se alargando, o corpo dançado. — “A que há, uma onça…” — começara.
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Repôs-se em equilíbrio nos calcanhares. Recuava de pensar, em posição de ação.
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O moço: — “Ah!” — no falso fio; vigiava por tudo, em seu entendimento.
Vagaravam.
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Sem mal-entenderem-se.

Tardinho, na mata, o ar se some em preto, já da noite por vir.
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Agitavam-se súbito os cães, até à choupana, à porta: abrira-a a mulher, com a comida. Mulher pequenina, sisuda. Não voltava o rosto. E pela dita causa.
O moço ia-se, fez menção. Conteve-o o velho: — “Mais logo…” — entre dentes dito.
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Tornou a mulher a abrir a porta. Não olhava, não chamou. Mas tinha um prato do jantar em cada mão. O velho ergueu-se, foi buscar.

O moço comia, a gosto. O coitado, com afeto nenhum, ninguém cuidando dele. Conhecera já a careta, o escarrar, os bigodes — a massa da onça, a pancada! O que arde.
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Por que não o castrara a fera monstra, em vez de escavacar-lhe as costas e rasgar banda da face, consumir barriga-da-perna, o acima-da-coxa, esses desperdícios? Se fosse, mais merecia, para aquilo — por resguardo e defendimento, respeitante, postiço, sem abusos…
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E velhamente. Falava, lembranças, da meninice ainda do outro, falando com a boca amargosa. Nem tinha fome. Os fatos não se emendavam.
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Dava ânsia pensar — a coisa, encorpada. A mulher, mulherzinha nas noites. Aquele, rente, o outro, pescoço grosso, macho gatarro, de onça, se em cio. Tinha vexame do que sendo para ser, do inventado.

Encarou-o: — “Vai.” Falou; foi a rouco. Em dó de sentir o que olhos não vão ver, preenchidos pela terra.
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O moço tristemente, também, se entortando, aleijado. Voltava só a seu rancho. Cruzava caminho da outra, onça jagunça — a abertura em-pé do meio-do-olho, que no escuro vê — o pulo, as presas, a tigresia.
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Mas, tinha no ombro o rifle! E o saber — pelo desassombrar, abarbar, com ela igualar-se à mão-tente — fugir o perigo. Ensinara-lhe, tudo, prevenira… o velho se levantava.
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De supetão: — “Quer ficar?” Assim dizendo. — “Madrugada, a gente vai… mata…” — bufo por bufo.
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De não, o outro respondeu, vago.
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— “…andadora… onça grossa…”
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Não; o moço sacudiu-se.
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O velho tocou-lhe no braço — “Te protege!” — disse, risse.

Depois, de novo, mestre, ia sentar-se na tora, num derrêio, por enfim; esfregava-se as pálpebras com as unhas dos dedos. As coisas, mesmas, por si, escolhem de suceder ou não, no prosseguir.
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O moço se despedia, sem brusqueza. Só a saudação reverencial: — “Meu pai, a sua benção…”
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Tinham contas sem fim. Latiam os cães. Ia dar luar, o para caminhada, do homem e da onça, erradios, na mata do Gorutuba.
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— João Guimarães Rosa, no livro “Tutaméia: Terceiras estórias”. 9ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

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