Vi as estrelas. Mas não vi a lua, embora sua luminosidade se derramasse pela estrada. Apanhei um pedregulho e fechei-o com força na mão. Por onde andará a lua? perguntei. Fernando arrancou o paletó no auge da impaciência e perguntou com voz esganiçada se eu pretendia ficar a noite inteira ali de estátua, enquanto ele teria que encher o tanque naquela escuridão de merda, porque ninguém lhe passava o raio da lanterna. Inclinei-me para dentro do carro de portas escancaradas, outra forma que ele tinha de manifestar o mau humor era deixar gavetas e portas escancaradas. Que eu ia fechando em silêncio, com ódio igual ou maior. Fiquei olhando o relógio embutido no painel.
– Onde está a lanterna?
– Mas onde poderia estar uma lanterna senão no porta-luvas, a princesa esqueceu?
Através do vidro, a estrela maior (Vênus?) pulsava reflexos azuis. Gostaria de estar numa nave, mas com o motor desligado, sem ruído, sem nada. Quieta. Ou neste carro silencioso, mas sem ele. Já fazia algum tempo que queria estar sem ele, mesmo com o problema de ter acabado a gasolina.
– As coisas ficariam mais fáceis se você fosse menos grosso — eu disse, entreabrindo a mão e experimentando a lanterna no pedregulho que achei na estrada.
– Está bem, minha princesa, se não for muito incômodo, será que podia me passar a lanterninha?
Quando me lembro dessa noite (e estou sempre lembrando) me vejo repartida em dois momentos: antes e depois. Antes, as pequenas palavras, os pequenos gestos, os pequenos amores culminando nesse Fernando, aventura medíocre de gozo breve e convivência comprida. Se ao menos ele não fizesse aquela voz para perguntar se por acaso alguém tinha levado a sua caneta. Se por acaso alguém tinha pensado em comprar um novo fio dental porque este estava no fim. Não está, respondi, é que ele se enredou lá dentro, se a gente tirar esta plaqueta (tentei levantar a plaqueta) a gente vê que o rolo está inteiro mas enredado e quando o fio se enreda desse jeito, nunca mais!, melhor jogar fora e começar outro rolo. Não joguei. Anos e anos tentando desenredar o fio impossível, medo da solidão? Medo de me encontrar quando tão ardentemente me buscava?
– Dama-da-noite — eu disse, respirando de boca aberta o perfume que o vento trouxe de repente. — E vem daquele lado.
– Se o jantar não for bom, juro que viro a mesa — disse ele com sua falsa calma. Destapou o vasilhame. — Estou a fim de comer peixe, será que vai ter peixe?
O ruído do fiozinho de gasolina caindo no tanque. Os ruídos miúdos vindos da terra. Fui andando na direção daquele lado, conduzida pelo perfume que ficou mais pesado enquanto eu ia ficando mais leve. Agora, eu quase corria pela margem da estrada, as pontas franjadas do meu xale se abrindo em asa, fechei- as no peito. E atravessei a faixa de mato rasteiro que bordejava o caminho, a barra do meu vestido se prendendo nos galhinhos secos, poderia arregaçá-lo, mas era excitante me sentir assim, delicadamente retida pelos carrapichos (não eram carrapichos?) que eu acabava arrastando. Segui pela vereda. Tão familiar. Como a casa lá adiante, lá estava a casa alta e branca fora do tempo, mas dentro do jardim. O perfume que me servira de guia estava agora diluído, como se cumprida a tarefa, relaxasse agora num esvaimento, posso? Vi as estrelas maiores nessa noite dentro da noite. Com naturalidade abri o portão e o som dos gonzos me saudou com a antiga ranhetice de dentes doloridos sob a crosta da ferrugem, entra logo, menina, entra! A folhagem completamente parada. Uma luz acendeu no andar superior da casa. Outra janela acendeu em seguida. No andar inferior, três das janelas projetaram sucessivamente seus fachos amarelos até a varanda: nas colunas de tijolinhos vermelhos as flores branquíssimas das trepadeiras pareciam feitas de material fosforescente. Então Ifigênia apareceu na porta principal, o avental nítido no fundo preto do vestido. Levou as mãos à cara, numa alegria infantil. Voltou-se para dentro.
– É dona Laurinha! Que bom que a senhora veio, dona Laurinha, que bom! Abracei-a. Cheirava a bolo.
– Bolo de fubá?
– Lógico — disse me examinando. Viera ao meu encontro na alameda e agora parava para me ver melhor: — A senhora está de vestido novo, não é novo?
Tomei-lhe o braço. Andava com dificuldade, as pernas curtas, inchadas.
Ficamos um instante na varanda e sem saber por que (na hora eu não soube por que) evitei ficar muito exposta à luz da janela. Puxei-a para mais perto de mim.
– Estão todos aí?
Ela respondeu num tom secreto.
– Só falta o Rodrigo. Apoiei-me na coluna.
– Mas ele não está no sanatório?
– Saiu faz duas semanas, a senhora não sabia? Mas fique sossegada, dona Laurinha, agora ele está melhor, mudou tanto — disse e tomou a ponta do meu xale examinando a tessitura mais nos dedos do que através das grossas lentes dos óculos. — Acho que esse ponto é o mesmo da manta que fiz pra Avó, lembra? Só que usei uma lã mais grossa. Acho lindo xale branco, fiz pra dona Eduarda com linha de seda.
Interrompi seu devaneio, mas e o Rodrigo? O médico tinha dito que ele teria de ficar no mínimo mais seis meses, não foi o que os médicos disseram? Tinha fugido? Ele fugiu, Ifigênia? Agora ela fechava o xale em redor do meu ombro e seu gesto era o mesmo com que enrolava em meu pescoço uma meia embebida em álcool, um santo remédio pra dor de garganta, mas não pode mexer, menina. Ah, e tem que ser o pé de meia verde do pai. Mas espera, o Rodrigo: ele então parou de beber?
– Parou completamente. E está ajuizado, a senhora lembra como ele falava gritando? Agora fala baixinho, mudou mesmo, acho até que sarou — disse apertando os olhos para me ver. Estranhou meu cabelo curto, gostava mais quando eu usava assim comprido até o ombro, por que cortou, dona Laurinha, por que cortou?
– É que eu não sou mais aquela jovenzinha.
Ela protestou meio distraidamente, interessada ainda no xale, há de ver que paguei uma fortuna, não? Por que não lhe pedi que fizesse um? Impeliu-me para dentro da casa: tinha acendido a lareira com uma lenha sequinha, estava um fogo tão limpo.
– E não tentou mais, Ifigênia? Me responda, ele não tentou mais? Ela arqueou as sobrancelhas inocentes, Se matar?
– Não, dona Laurinha, não tentou mais nem vai tentar, Deus é grande, um menino tão bom.
O vestíbulo de paredes forradas com o desbotado papel bege, salpicado de rosinhas pálidas. O retrato de Pedro I na pesada moldura de ouro gasto, circundado pelos retratos de homens severos e mulheres rígidas nos seus tafetás pretos. O rendilhado das traças avançando audaz na gola de renda de minha avó portuguesa até a fronteira do queixo sépia. A vitrina dos bibelôs de porcelana e jade. A larga passadeira de veludo vermelho ao longo do corredor — ponte silenciosa se oferecendo para me transportar ao âmago, do quê?!
– E tem também biscoito de polvilho, como a senhora gosta — anunciou Ifigênia tirando o meu xale. Dobrou-o no braço com gestos melífluos. — Estou pensando sempre em fazer a vontade dos outros, mas os outros não pensam nunca em fazer a minha vontade. Uma coisa que eu queria tanto, que pedi tanto, será que a senhora ainda se lembra?
Enlacei-a: mas eu me lembrava, sim, a viagem! Prometera que a levaria de carro até Aparecida do Norte, queria cumprir uma promessa e me ofereci então para levá-la, convenci-a mesmo a desistir da reserva da passagem de ônibus, deixa que eu levo. Não levei.
– Mas não foi por mal, Ifigênia, é que fui adiando, adiando e acabei me esquecendo. Me perdoa?
– Perdoar o quê? — ouvi alguém perguntar atrás de mim, Ducha?
Ela gostava de chegar assim sorrateira, na ponta das sapatilhas da cor do papel da parede. Notei que seu busto continuava tímido sob a malha preta de balé e ainda fina a cintura de menina, treze anos? Beijou-me com seu jeitinho polido, afetando indiferença. Tive que me conter para não puxá-la pelo cabelo, sua bobinha, bobinha!
– É que sua irmã prometeu me levar de carro até Aparecida e até hoje estou esperando — disse Ifigênia. Acariciava o xale dobrado no braço como se acaricia um gato. — Se eu soubesse, ia de ônibus.
Ducha compôs a pose de bailarina em repouso. Olhou para o teto.
– Ela também me prometeu uma coisa e não cumpriu. Era uma troca. Eu daria o suéter amarelo e ela me daria o espelho grande, aquele com o anjinho, eu precisava demais de um espelho pra ensaiar no quarto e o que aconteceu? Minha irmãzinha ficou com o meu suéter, sim senhora, amanhã mesmo trago o espelho, prometeu. Jacaré trouxe? Continuo ensaiando (tapou os olhos fingindo chorar) num espelho pequenino assim!
Quis abraçá-la e ela se esquivou, não fosse desmanchar-lhe o cabelo engomado, preso na nuca por uma fivela. Nada de sentimentalismo, eu quero é meu espelho, parecia dizer com o labiozinho irônico e meu coração se derramou de alegria e dor: sua malha preta guardava o cheiro dos armários profundos com resquícios dos saquinhos de plantas aromáticas. O passado confundido no futuro que me vinha agora na fumaça cálida da lareira. Ou na fumaça das velas?
Apaguei-as. Não, velas não. Escuta, Ducha, juro que amanhã sem falta, sem falta! Acredita em mim? Amanhã!
– Pschiu… — ordenou ela, que me calasse porque a Avó na sala já se decidia por sua valsa de Chopin.
– Ducha — eu comecei e não consegui dizer mais nada.
Ela endireitou o corpo, levantou a cabeça. E esquecida de mim, do espelho, de tudo enveredou diáfana pelo corredor afora, Sou uma artista! exprimia em cada movimento de inspiração desdenhosa. Uma artista!
– Parece uma fadinha dançando — suspirou Ifigênia ao me tomar pela cintura e me conduzir pelo tapete vermelho.
Ouvi ainda as batidas do meu coração tão assustado que me virei para Ifigênia, ela teria ouvido? Mas tinha o piano. E as vozes que já chegavam até nós, estávamos na metade do corredor. Passei as pontas dos dedos no braço do banco de madeira acetinada de tão lisa, um pescoço de cisne se enrodilhando numa curva mansa até descer e afundar a ponta do bico nas penas da asa entalhada na parte lateral do assento. Ao lado, mais uma vitrina de bibelôs com as xicrinhas de porcelana fina como casca de ovo, o famoso serviço de chá em miniatura, paixão da minha vida. Não pode! ralhava a Avó, isso não é brincadeira de criança, você vai quebrar tudo. Não quebrei, engoli um bulinho, gostava de encher a boca com as peças que ia cuspindo em seguida na mesa de chá das bonecas. Senti de novo o bule na inquieta travessia da garganta.
– Estou tão contente, Ifigênia.
– Então por que está chorando?
Enxuguei depressa os olhos na barra do seu avental e recuei, não era estranho? Na cambraia alvíssima, nenhuma marca da minha pintura, só o úmido limpo das lágrimas. Fiquei sem saber que olhos tinham chorado, se os atuais ou os de outrora.
A sala parecia palpitar sob os reflexos do fogo forte da lareira, avermelhando os espelhos. O lustre. Vi o Avô na sua cadeira alta, jogando xadrez com o professor de Eduarda, Não era aquele o professor de Eduarda? A Eduarda arranjou um professor de alemão que é um pão! Ducha tinha me anunciado.
Quer dizer que o alemão-pão já estava assim íntimo? quis perguntar, mas Eduarda não me viu, estava entretida em preparar uma bebida na mesa posta no fundo da sala. Tinha uma flor nos cabelos, sinal de alegria, você está amando, Eduarda? Vi a Avó — querida, querida! — no seu vestido das cerimônias especiais. Tinha a cabeça inclinada para o teclado, acelerando o ritmo para acompanhar Ducha que se desencadeava numa grinalda de passos em torno do piano. Vi Ifigênia no seu andar curto, a respiração curta, arrumando os copos na mesa, era um ponche que Eduarda preparava. E me vi a mim mesma, tão mais velha e ainda guardando uma ambígua inocência — a suficiente inocência para me comportar com espontaneidade na reunião dos convidados certos. Um ou outro elemento esclarecedor, que eu já tinha ou ia ter, me advertia que era nova essa noite antiga. Contornei a cadeira do Avô, abracei-o por detrás. Ele me saudou, levantando na mão a torre que já ia movimentar.
– O professor conhece esta minha neta? A intelectual da tribo, hem, menina?
O alemão (era mais alto do que eu supunha) lembrou que já tínhamos sido apresentados e teve uma expressão meio maliciosa, meio divertida, a Eduarda falava muito em mim. Interroguei-o desconfiada, mas seu olhar penetrante fez baixar o meu. Voltou-se para o Avô que ainda segurava a torre.
– É a sua vez.
Eduarda então me viu e veio trazendo um copo de ponche. Estava tão jovem de cabelos soltos e cara lavada que me perturbei: era como se me visse vir vindo ao meu próprio encontro num flagrante de juventude. Beijou-me rápida e me entregou o copo, Vamos, prova, acho que exagerei no açúcar, não está doce demais? Vi que a Avó me chamava para sentar a seu lado no banco do piano e vi ainda, num relance, atrás do piano, o grande relógio marcando nove horas. No copo, o ponche com a cereja descaroçada, exposta, boiando na superfície roxa.
– Vamos, beba, não tem veneno — ordenou Eduarda e seu riso era tão confiante que achei injusto que o tempo continuasse e quis correr e agarrar o pêndulo do relógio, para! Esvaziei o copo trincando nos dentes a cereja cristalizada com pedaços de outras frutas que não identifiquei, Eduarda guardava o mistério dos ingredientes.
– Cuidado, Avô! — eu disse. — Você vai perder este cavalo. O namorado de Eduarda piscou para ela.
– Já está perdido.
O Avô olhou o cavalo. Me olhou. E sacudindo a mão, fingiu uma cólera que estava longe de sentir quando me acusou de ter feito tramoia na nossa última partida, Fez tramoia, sim senhora, pensa que não sei? Aproveitou enquanto fui buscar meu suéter e mudou a torre que defendia minha rainha, eu não podia perder como perdi.
– Roubou a torre do Avô! Roubou a torre do Avô! — gritou Ducha, aproximando-se num salto e fugindo de novo, espavorida, de braços abertos e curvada como que impelida por uma ventania. — Ficou com meu espelho e com a torre do Avô!
– Mais grave do que roubar uma torre é roubar o noivo da prima — sussurrou Eduarda, me puxando pela mão.
Fomos para perto da janela. Seus olhos eram roxos como o ponche. Fechei os meus. Eduarda, eu queria tanto explicar isso e não tinha coragem, mas agora escuta, ele disse que vocês tinham rompido, que estava tudo acabado…
– Ele disse?
– Não tive culpa, Eduarda. Quando começamos o namoro eu estava certa de que vocês dois já estavam afastados, que não se amavam mais. Não me senti traindo ninguém!
— Não?…
Vi as estrelas brilhando próximas. Próximo também o perfume da noite que me tomou e me devolveu íntegra. Verdadeira. Encarei Eduarda, pela primeira vez realmente a encarei. Mas era preciso falar? Era mesmo preciso? Ficamos nos olhando e meu pensamento era agora um fluxo que passava das minhas mãos para as suas, estávamos de mãos dadas: sim, eu era ciumenta, insegura, quis me afirmar e tudo foi só decepção, sofrimento. Tinha o Rodrigo (meu Deus, o Rodrigo!) que era o meu querido amor, um amor tumultuado, só imprevisão, só loucura, mas amor. E achei que seria a oportunidade de me livrar dele, a troca era vantajosa, mas calculei mal, logo nos primeiros encontros descobri que a traição faz apodrecer o amor. Na rua, no restaurante, no cinema, na cama e em toda parte, Eduarda, você esteve presente. Cheguei um dia a sentir sua respiração. Foi ficando tão insuportável que na última vez, quando ele entrou na cabine para ouvir um disco, eu não aguentei e fugi, estávamos numa loja comprando discos. Quero ouvir este, ele disse entrando na cabine envidraçada, me espera um instante. Fui até a vitrina, fingindo procurar Deus sabe o quê e então aproveitei, fugi de cabeça baixa, sem olhar para os lados. Eduarda, diga que acredita em mim, diga que acredita!
Seus olhos, que estavam escuros, foram ficando transparentes. Agora está tudo bem, Laura, estamos juntas de novo — parecia me dizer. Estamos juntas para sempre — e apertou com força a minha mão. Mas não deixou que eu me comovesse mais, pegou um biscoito de polvilho que Ifigênia ofereceu, levou-o à minha boca, Vamos, você está muito magra, precisa comer, não fique assim triste. Comecei a me sentir uma coisa miserável: — Fiz trapaça no jogo com o Avô — eu disse, mas me engasguei com o biscoito e Eduarda desatou a rir como na festa das bonecas, quando engoli o bulinho. Sua pulseira, uma argola de ouro, ficou enganchada no meu vestido, tentou tirá-la, Fica com ela, Laura, nossa nova aliança, você gosta desses símbolos. Mas a pulseira, já solta do meu vestido, não se soltava do seu pulso, argola inteiriça que só podia sair pela mão, Engordei, está vendo? Engordei de feliz, estou feliz demais com o meu alemão, não é lindo? O fogo da lareira se refletia na sua face como no lustre, no espelho: Tenho vontade de gritar de tanto amor! Enlaçou-me e saímos dançando, rindo feito duas tontas até chegarmos ao piano, onde ela me entregou à Avó, Fica aí que vou salvar meu amado, vovô deve estar querendo jogar outra partida, disse. E ficou séria.
Apertou meu braço.
– O Rodrigo não demora.
– Quem? — perguntou a Avó. Afastou-se para me dar lugar no banco. — Quem não demora?
– O Rodrigo — disse Ducha abrindo os braços num suave movimento de asas e desabando no almofadão.
Quando ela se inclinou para amarrar a fita da sapatilha, vi o menininho deitado no tapete. Estava de pijama e brincava com os cubos coloridos de uma caixa: mas ele já estava aqui quando cheguei?
– Você emagreceu, Laurinha — lamentou a Avó, examinando-me afetuosa mas fiscalizante, e será que eu não estava pintada demais? Me preferia mil vezes sem pintura, como a Eduarda. E por que eu estava assim trêmula? — Você está gelada, menina, tome este chá — ordenou pegando a xícara. Era por causa dele que estava tão tensa? Do (disse o nome em voz baixa) Rodrigo?…
Seus cabelos faceiramente frisados tinham reflexos de um tom azul-lilás que me fez pensar em violetas. Agora procurava me acalmar no mesmo tom com que vinha me dizer, na hora do boa-noite, que não tem nada essa história de fantasmas, Isso tudo é invenção, minha bobinha, vamos, durma. O Rodrigo? Mas agora ele está curado, não se preocupe mais, foi uma crise muito séria, não nego, mas passou. Passou. Ainda ontem conversamos, ele está pensando em recomeçar os estudos, já faz planos, disse e senti no seu olhar (ou no meu?) algo de reticente. Por um instante a Avó me pareceu feita de um úmido tecido azul- lilás, do mesmo tom dos cabelos.
– Não vá ainda, espera! — pedi, e fiquei sem saber se gritei. Na lareira o fogo era mais brando.
– Às vezes volta o medo — eu disse.
– Medo do quê, minha querida? Mas você não está amando? Então, precisa amar — disse olhando para as minhas mãos. — Nenhum anel especial? Nenhum namorado especial? Pois a Eduarda, que tinha a minha idade… — (Hesitou, tomando o lorgnon dependurado na corrente de ouro) — Mas não tínhamos a mesma idade? Sempre pensei que vocês duas regulassem, porque quando a Ivone estava de barriga, a sua mãe também… — (Fez contas nos dedos mas se perdeu nas datas.) — O que eu queria dizer é que a Eduarda arrumou esse namorado de repente, tudo foi no galope. Vão se casar em dezembro, não é maravilhoso?
Sua voz passava agora para um outro plano, enquanto ia entrando em detalhes: depois do casamento seguiriam para a Alemanha, os pais dele moravam lá, numa cidadezinha que tinha um nome muito gracioso, Ulm, mas depois da visita viajariam por toda a Europa no período das grandes férias. A Ducha estava ardendo de vontade, queria ir junto para se matricular num curso de balé em Paris, uma pirralha dessas, vê se pode! Não estava era gostando nada dessa ideia de avião, por que os jovens têm mania de avião? Tão melhor um vapor, ih, as deliciosas viagens por mar, ainda se lembrava bem quando foi com o Avô para a Itália, tantas brincadeiras de bordo, os jogos, as festas! Mas a hora melhor ainda era aquela em que se recostava na cadeira do tombadilho, puxava a manta até os joelhos e ficava lendo um romance de Conan Doy le. Ou simplesmente olhando o mar.
– Será que ele ainda pensa em mim?
A Avó demorou para responder. Fez um ligeiro movimento, juntando as mãos espalmadas, como se fechasse um livro, Quem, o Rodrigo? Sim, pensava, mas de modo diferente, sem aflição, sem rancor, estava bastante mudado depois da tentativa. Se ele pudesse sair, fazer uma viagem, mas uma viagem por mar, num vapor como aquele, não lembrava o nome do vapor, não era curioso? Mas não se esquecia das gaivotas. Do vento.
– Onde ele conseguiu o revólver?
A palavra revólver caiu-lhe no colo como uma gaivota. Ou um peixe. A Avó assustou-se, sacudindo do vestido os farelos de biscoito. Limpou com a ponta do lenço a gota de chá que escorreu no teclado, O revólver? Quem é que sabe?
Sempre foi um menino tão reservado, vivia inventando um mundo particular, só dele, não deixava ninguém entrar nesse mundo.
– Ele me chamou, mas recusei.
Ducha apoiou-se nos cotovelos e veio se arrastando pelo tapete até tocar no meu sapato.
– Que chique este salto dourado — disse e fez um sinal para que me abaixasse, queria falar no meu ouvido. — A bala passou um tantinho assim perto do coração.
– Vão pegar por lá um inverno forte. Se fossem de vapor não sentiriam a mudança tão rápida — suspirou a Avó. Voltou-se enervada para a Ducha que lhe apontava o piano, Quero dançar, toca, toca! — Espera, menina, espera! Se você não precisa de intervalo, eu preciso.
Olhei para as cortinas pesadas. Para a cristaleira que me pareceu menos brilhante sob a leve camada de pó. O tempo não alcança você, Avó, eu disse. Estão todos iguais. Iguais.
– O piano mudou, querida — disse a Avó sorrindo e dando um acorde grave.
– Mandei afinar, lembra como ele estava? E se você não sabe é porque nunca vem me visitar. Fiquei doente, sarei, fiquei doente de novo e nem um telefonema. Nada. Podia ter morrido e minha neta nem ficaria sabendo porque não ligou uma só vez para saber, a Avó, como vai?
– Vovó querida, você sabe muito bem como amo vocês. E que tenho andado mesmo sumida, mas você sabe.
– Sei, Laurinha. Mas gosto de provas, tão importantes as provas. Ducha fez uma careta.
– Que feio, Laura! A Chapeuzinho Vermelho atravessou um bosque cheio de lobos só pra levar o bolo pra Avozinha que estava com resfriado, não era um resfriado? — Pôs-se na ponta dos pés, pronta para dançar. Teve seu sorrisinho: — Não veio buscar Ifigênia que queria cumprir a promessa, não trouxe meu espelho, roubou a torre do Avô, roubou o noivo de Eduarda e não visitou a Avó! É demais!
– Ducha, vai dançar, vai — pediu a Avó. Começara uma melodia um tanto dissonante. Esgarçada. — Pronto, vai dançar!
– E ainda por cima faz a femme fatale — acrescentou Ducha rapidamente, com o gesto de quem empunha uma arma e aponta contra o próprio peito.
Acionou o gatilho. — Pum!… — (Cambaleou, esboçando o movimento de se desvencilhar da arma. Estendeu-se no almofadão, a mão direita apertando o peito, a outra acenando na despedida frouxa.) — Me mataria em março se te assemelhasses às coisas perecíveis! — recitou, arquejante. E levantou-se de um salto. — Por que março? H. H. é que sabe. Se a poeta diz que é em março, tem que ser março… Foi recuando, os braços em arco: — Março ou abril?…
– É um amor de menina, mas cansa um pouco — murmurou a Avó, inclinando-se para me beijar. — Esta música é minha, você gosta? Vai se chamar Noturno Amarelo.
Antes mesmo de me aproximar da lareira, adivinhei o fogo se reavivar num último esforço. Ifigênia tocou no meu braço, pensei que fosse me oferecer alguma coisa.
– O Rodrigo acabou de chegar — avisou.
Escondi a cara nas mãos, mas mesmo assim podia vê-lo na minha frente, com seu jeans puído e o blusão preto com reforços de couro nos cotovelos. Segurou-me pelos punhos e me descobriu. Ardia o carvão dos seus olhos, mas tinha o mesmo doce sorriso de antes. Esperou. Quando consegui falar, a cinza já cobria completamente o braseiro.
– Eu te neguei, Rodrigo. Te neguei e te traí e traí Eduarda. Mas queria que soubesse o quanto amei vocês dois.
Ele arrumou meu cabelo. Acendeu meu cigarro. Riu.
– Se a gente não trair os mais próximos, a quem mais a gente vai trair? — Ficou sério. — Éramos muito jovens, querida.
Éramos? Levantei a cabeça. Já não me importava que ele me visse de frente, queria mesmo me expor assim devastada, ele então sabia? Ouvi minha voz vindo de longe.
– Passei a noite me desculpando, só faltava você. Ó Deus! como eu precisava desse encontro — disse, tocando no seu peito.
Ele estremeceu. Então me lembrei, Mas ainda dói, Rodrigo? E continuam as bandagens? Ele pegou um copo de ponche, me fez beber: que eu não me impressionasse com isso, era mesmo um sensível e nos sensíveis essa zona é sensível demais, demora a cicatrização.
Nem precisamos falar. Dentro de mim (e dele) agora era só a calma. O silêncio. Comecei a sentir frio, fui buscar o xale. Quando voltei, não o encontrei mais.
– E o Rodrigo? — perguntei a Ifigênia. Ela levava pela mão o menininho que resistia, O Rodrigo!? Mas agora mesmo ele não estava aqui com você?
– Eu sei fazer cara de bicho, olha, tia! — o menino gritou espetando os dedos na testa. — Olha o bicho!
Tudo então aconteceu muito rápido. Ou foi lento? Vi o Avô dirigir-se para a porta que ficava no fundo da sala, pegar a chave que estava no chão, abrir a porta, deixar a chave no mesmo lugar e sair fechando a porta atrás de si. Foi a vez da Avó, que passou por mim com sua bengala e seu lorgnon, me fez um aceno e deixando a chave no mesmo lugar, seguiu o Avô. Vi Eduarda de longe, ajudando o noivo a vestir a capa, Mas onde foram todos? perguntei e ela não ouviu ou não entendeu. Estavam rindo quando foram se aproximando da porta, enlaçados. Num salto, Ducha varou por entre ambos, pegou a chave, ajoelhou-se num só joelho e pousou a chave no outro, flexionado, inclinando-se na reverência de um pajem medieval oferecendo seus serviços.
Desviei a cara, não quis mais olhar. Por pudor, continuei de costas quando Ifigênia passou arrastando o menino que queria brincar mais, Não pode, amor, nada de manha, fica bonzinho. A pirâmide dos cubos coloridos que ele erguera no tapete foi desabando através das minhas lágrimas. Quando olhei de novo, a sala já estava vazia. Vi o jogo de xadrez interrompido ao meio. O piano aberto (ela terminou o Noturno?) e o livro em cima da lareira. A xícara pela metade. A fivela de Ducha esquecida no almofadão. A pirâmide. Por que os objetos (os projetos) me comoviam agora mais do que as pessoas? Olhei o lustre: ele parecia tão apagado quanto a lareira.
Saí pela porta da frente e antes mesmo de dar a volta na casa já tinha adivinhado que atrás da porta por onde todos tinham saído não havia nada, apenas o campo.
Atravessei o jardim que não era mais jardim sem o portão. Sem o perfume. A vereda (mais fechada ou era apenas impressão?) fora desembocar na estrada: o carro continuava lá adiante com suas portas abertas e seus dois faróis acesos. Fernando tapava o vasilhame.
– Demorei muito?
Ele vestiu o casaco. Acendeu um cigarro, Se eu demorei? Mas como? Eu tinha saído?
Entrei no carro e me vi no espelho iluminado pela lanterna: minha pintura estava intacta.
– Sabe as horas, Fernando?
– Nove em ponto. Por quê? — perguntou ele ligando o rádio do painel. Pôs a mão no meu joelho: — Você está linda, amor, mas tão distante, tão fria. Ih! que merda de música — gritou, mudando de estação. — Será que o jantar vai ser bom? Hoje estou a fim de comer peixe.
Fiquei olhando a Via Láctea através do vidro. Fechei os olhos. Fechei com força a argola de Eduarda que ainda trazia na mão.
– Não é um esquilo? — perguntou Fernando apontando excitado para a estrada. Ali, não está vendo?
– Pode ser uma lebre.
– Mas agora não é hora de lebre!
Nem de esquilo, pensei em dizer ou disse. E de repente eu me senti sozinha e feliz assim em silêncio, olhando a estrada.
– Lygia Fagundes Telles, no livro “Seminário dos Ratos” .Rio de Janeiro: Editora Companhia das Letras, 2009.
** foto (capa): Lygia Fagundes Teles – foto: André Lessa/ Estadão.
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