sexta-feira, dezembro 20, 2024

O cão viajante – Carlos Drummond de Andrade

A notícia veio de São Paulo, trazida por Anhembi. Foi o caso que certo cavalheiro de posses — um grã-fino, diz a revista — regressou dos Estados Unidos em companhia de um cachorro de raça, lá adquirido. No aeroporto de Congonhas, diante dos funcionários da alfândega, houve a abertura de malas, e verificou-se que quatro eram do cachorro: uma com roupas, outra com coleiras e focinheiras; uma terceira com vitaminas, e a última com alimentos especiais.

O comentarista fala na Revolução Francesa, que reagiu contra coisas desse gênero, e na Revolução Russa, que reuniu em museu as joias oferecidas pelos aristocratas a seus cães e cavalos. Expus o caso a um cachorro de minhas relações, chamado Puck, e ele manteve comigo, por meio dos olhos e da cauda saltitante, este diálogo quase maiêutico, embora às avessas.

— As malas eram quatro, diz você?
— Realmente, meu caro Puck.
— Com certeza eram malinhas à toa…
— Não consta da notícia, mas presumo que fossem malas consideráveis.
— E você quer insinuar com isso que cachorro em viagem não tem direito a mala?
— Não é bem assim. Pareceu-me que havia bagagem em excesso para viajante tão sóbrio de natureza, como — não é por estar em sua presença — eu considero o cão.
— E quantas malas tinha o grã-fino? Quarenta?
— A revista não diz, mas é de supor que trouxesse muitas.
— Você acha direito que um homem viaje com quarenta malas (por hipótese) e seu cão não tenha pelo menos quatro?
— Mas veja bem, Puck, o homem é um animal complicado, que se afastou da natureza. Vai a festas noturnas, que exigem equipamento especial; tem reuniões de negócio, de esporte, de amor, de guerra. Compra livros e até os lê. Precisa de tapetes, automóveis, discos, esmalte de unhas e tudo aquilo que vocês, mais felizes, não conhecem ainda, ou desprezam.
— Essas coisas são necessárias à vida?
— São, na medida em que a tornam mais agradável.
— E não seria tempo de estendê-las ao uso pessoal dos cachorros e de outros animais em condições de saboreá-las?
— Teoricamente, talvez. Não acha, porém, que seria o caso de estendê-las antes a todos os homens?
— Elas chegam para todos?
— No estado atual da produção, é capaz de não chegarem.

— Então, que adiantaria?
— Pelo que vejo, você tomou partido francamente por sua espécie contra a minha, quando as duas se entendem há milênios.
— Engano, meu caro. O que você enxerga no gesto do grã-fino é a falta de sensibilidade diante da miséria alheia, quando eu enxergo precisamente um começo tímido de sensibilidade, a abotoar-se como uma florzinha anêmica. Todo esse cuidado com um cão, um simples cão (pois somos simples, e esta é nossa maior virtude), revela que o homem não está de todo perdido, e já começa a desconfiar da existência do próximo. Por enquanto tem os olhos baixos, e só repara em alguns de nós, de mais pedigree. Amanhã descobrirá as criancinhas, e dia virá em que…
— Ele se estimará a si mesmo, através dos outros?
— Não vou a tanto — resmungou Puck. — Também, você está exigindo demais de seus semelhantes.

— Carlos Drummond de Andrade, no livro “Fala, amendoeira”. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Saiba mais sobre Drummond:
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