SOCIEDADE

‘O coração tem razões que a razão conhece’ – Dr. Flávio Gikovate

Me surpreendo quando penso que a grande maioria dos humanistas e psicoterapeutas se acomodaram diante da ideia de que o amor é um fenômeno mágico que se apossa de nós de uma hora para a outra e sem nenhum fundamento lógico ou racional. Não se empenharam em estudá-lo e o assunto ficou reservado para os poetas. O amor é visto como um tema menor, apesar de ser fonte de enormes sofrimentos para a grande maioria e de grandes alegrias para um pequeno grupo de bem-aventurados que não sabem porque receberam tamanha graça.
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O sexo tomou conta das especulações mais relevantes, especialmente as masculinas. O amor era “coisa de mulher”. As mulheres passaram a ser vistas como as mais românticas, ao passo que os homens seriam mais práticos. Tudo errado! Na realidade, os homens são os mais românticos e se encantam com facilidade, muitas vezes fascinados pela aparência física delas, objeto de admiração pouco refletida. As mulheres? Elas, antes de se encantarem observam muito bem quem é o homem, sua base cultural, nível de educação, posição social… Agem de forma bem mais racional que eles, que sempre foram os responsáveis por quase toda a literatura romântica disponível.
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Venho me interessando pelo assunto desde que me formei, há 50 anos. Sexo, amor e seus desdobramentos têm sido o objeto dos meus estudos. Me fixei mais nos dramas sofrimentos das pessoas ditas “normais” do que nos temas relacionados às patologias psiquiátricas. Esse tipo de atividade hoje se enquadra no que alguns autores norte-americanos chamam de Psicologia Positiva.

As reflexões sobre a racionalidade do amor têm a ver com os critérios de escolha dos parceiros amorosos. Freud em sua Introdução ao Narcisismo (1914), levantava duas possibilidades: aliança entre parceiros diferentes (defendida por ele) e entre semelhantes. Minha experiência profissional e pessoal me levou para o outro caminho, já que, nos tempos mais unissex, as afinidades iam se tornando indispensáveis. No passado, os homens mandavam e as mulheres obedeciam. É claro que nessas condições as diferenças entre os casais eram menos relevantes e a ideia de complemento era bem prática e racional – um tem o que falta ao outro. Ainda nos anos 1970, percebi que a grande maioria dos casais se formava de forma complementar. Não só eram diferentes, mas opostos quanto ao caráter. Quem não gosta do seu jeito de ser admira seu oposto! O que acontecia? Viviam às turras, como o fazem ainda hoje.

Mesmo hoje quando as pessoas já falam em “almas gêmeas”, as relações entre afins são muito raras: na hora de se unirem, o fazem segundo os critérios tradicionais da tampa e panela; unem-se por força de suas diferenças, brigam o tempo todo por causa delas e se separam em virtude delas. Não pude deixar de reconhecer a existência de um fator contrário ao amor por afinidades, presente em todas as pessoas, e que as impulsionava para elos muito menos satisfatórios.

Minha atenção se voltou para as histórias de paixão, alianças amorosas baseadas em afinidades, onde os pares se entendem muito bem do ponto de vista intelectual; como regra, as histórias terminavam na separação dos amantes (título do livro do Igor Caruso, de 1968). A outra constatação foi a de que a paixão provoca um estado emocional alterado (um “estado extraordinário”, segundo F. Alberoni, no livro que publicou em 1979), no qual as pessoas perdiam peso, dormiam pouco, pensavam no amado o tempo todo com prejuízo das outras atividades. Percebi que o que estava associado ao encantamento era um enorme medo: medo de que o amado desistisse da relação, medo de se entregar a ela e se “diluir” no amado e um medo ainda mais esquisito, que chamei de medo da felicidade sentimental! É como se coisa muito boa atraísse tragédia, de modo que as pessoas tendem a fugir de situações desse tipo, especialmente no amor. Assim, acabei definindo, como uma fórmula, que a Paixão = amor + medo. Tudo parece desprovido de lógica, mas o encaixe intenso provoca um medo explicável e que, a meu ver, deve ser bem entendido e enfrentado.

Nada disso tem a ver com o sexo. Aliás, no auge da paixão muitos homens experimentem enorme dificuldade sexual. Isso confirmou minha convicção de que o sexo e o amor estão longe de ser parte da mesma “pulsão” como hoje se gosta de dizer. O amor tem a ver com o encontro de alguém com quem nos sentimos aconchegados, com uma sensação de completude derivada da reconstrução do animal duplo original (segundo a fala de Aristófanes, no “Banquete” de Platão) que se rompe com o nascimento (O. Rank, no livro “O trauma do nascimento”, de 1924). Desde o nascimento, a sensação de desamparo e incompletude nos persegue e é atenuada através dos elos sentimentais. É claro que o amor que primeiro nos aconchega vem de nossa mãe, sendo os amores românticos adultos apenas uma das formas de expressão desse sentimento.

O amor é paz e atenua a dor do desamparo. É, pois, um prazer chamado de “negativo”, ou seja, alivia uma dor preexistente. Depende da presença de uma outra pessoa, sendo sempre interpessoal. Não existe, pois, amor por si mesmo. O sexo é diferente: a criança o descobre quando sua curiosidade cresce e ela passa a tocar todas as partes do corpo; detecta em algumas a presença de uma excitação muito agradável. Acho que o sexo permanece pessoal ao longo de toda a vida. Tão pessoal, tão pessoal, que dá até para fazer sozinho! E é prazer positivo, pois não depende de desconforto prévio para nos provocar suas sensações.

Como usar todas essas informações para os dias que correm? Hoje, homens e mulheres trabalham; não há como continuarmos a pensar em relacionamentos que não sejam baseados em respeito e cumplicidade. Os inúmeros programas de lazer pedem maiores afinidades e não há espaço para as chamadas “brigas normais dos casais”. Amor tem que ser paz, aconchego, companheirismo e ajuda recíproca. Se não é melhor ficar sozinho. A qualidade de vida dos solteiros só tem melhorado e isso gera uma “nota de corte” para os relacionamentos afetivos: tudo o que for pior do que viver só irá desaparecer. No futuro próximo, não existirão mais casamentos de má qualidade. Só existirão pessoas solteiras e bem casadas.

Os bons casamentos são baseados em afinidades e recíproca admiração. A razão participa tanto das más escolhas como das de qualidade. O “dedo podre” ou persistência em escolhas equivocadas é fruto da ação racional que, por medo do amor, opta por relacionamentos ruins. Quem sabe escolher mal também sabe escolher corretamente!

As relações de boa qualidade contemplam os 3 avais: o erótico (perigoso que tenha relevância exagerada), o do coração (envolvendo os fatores “inespecíficos” do tipo: timbre de voz, jeito de andar, sorriso…) e principalmente o da razão (afinidade de caráter, gostos, interesses, planos de vida…). Os que negligenciarem as razões da razão certamente estarão se envolvendo em uma empreitada com prazo de validade curto. Afinidades de caráter, respeito recíproco, gosto pelo convívio, afinidades eróticas definem um tipo de aliança que, segundo penso, caracterizará o romance do século XXI. A esse tipo de amor, próprio dos que amadureceram a ponto de não fugirem de medo do elo sentimental de qualidade, chamo de + amor.

*Artigo inédito escrito/salvo em 3/9/2016 (Arquivo pessoal), publicado no site do autor in memoriamDr. Flávio Gikovate, foi médico-psiquiatra, psicoterapeuta e escritor

Livros relacionados: “Uma nova visão do amor” e “Para ser feliz no amor – Os vínculos afetivos hoje”.

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