COLUNISTAS

O dia mais feliz da minha infância – Juliana Ludmer

Um dos momentos mais deslumbrantes de minha vida foi o dia em que andei de avião pela primeira vez. Tinha por volta de dez anos, e a curiosidade teimosa pela sensação de voar me consumia a mente desde quando, alguns anos antes, haviam me levado ao aeroporto para buscar um parente. O destino não importava: a principal aventura era o percurso até lá, entre as nuvens, sobre o mundo.

A ansiedade foi aumentando à medida que eu avançava de mãos dadas com meu pai pelo aeroporto. As pessoas arrumadas com coques de laquê, o barulho dos saltos, o cheiro de limpo, a luminosidade homogênea, os letreiros coloridos: tudo parecia compor uma sinfonia caótica que, contudo, se movia harmonicamente em direção aos portões de embarque. Fazer parte daquele mundo de pessoas viajantes me dava uma sensação de invencibilidade: eu era capaz de transpor barreiras, ir para longe, desbravar. Dentro de mim se potencializava um sentimento de independência, não em relação a algo ou alguém, mas às limitações físicas, como se eu tivesse a habilidade de me dissipar no ar e me refazer em outro local.

Um refresco e um salgado, horário do embarque. Atravessamos a passarela. Chegamos ao avião. Ia mesmo acontecer. Afivelei os cintos. Senti um formigamento na parte interna da coxa, que foi se expandindo pouco a pouco para a barriga, faringe, boca, até se tornar uma rede de energia à minha volta. Não conseguia mais conter a felicidade: vivia uma explosão de êxtase em todos os meus órgãos.

E então aconteceu. O avião acelerou, barulho, barulho, barulho e, de repente, um milagre. Não existiam aeronave, pessoas, nem mesmo meu pai. Éramos apenas eu e o universo, em uma conexão única. Eu estava voando. Eu estava voando, e o mundo estava aos meus pés.

Tempos depois, nessas conversas em retrospectiva, vim a descobrir que o meu primeiro voo foi motivado pela falência de meu pai, que, sem família no Rio, retornava a Pernambuco para se abrigar por tempo indefinido na casa da irmã. O meu momento de indestrutibilidade contrastava, nessa costura delicada de sentimentos que é a vida, com um dos momentos de maior fragilidade de meu pai, sentado logo ao meu lado. Ah!, o poder da fantasia. Nunca, nunca mais, me senti invencível como naquele dia.

Juliana Ludmer, colunista da Revista Prosa Verso e Arte. Formada em Direito pela PUC-Rio e mestranda em Sociologia e Direito pela UFF.

Leia outras colunas da autora:
Juliana Ludmer (colunista)

Revista Prosa Verso e Arte

Música - Literatura - Artes - Agenda cultural - Livros - Colunistas - Sociedade - Educação - Entrevistas

Recent Posts

Leo Russo lança ‘Isabella’, parceria com Moacyr Luz

O single “Isabella”, canção de Leo Russo e Moacyr Luz chegou nas plataformas digitais. A…

3 dias ago

Espetáculo ‘Eu conto essa história’ tem apresentação gratuita no Salão Assyrio, do Theatro Municipal do Rio de Janeiro

O espetáculo “Eu conto essa história" apresenta três narrativas de famílias que cruzaram continentes e oceanos em…

3 dias ago

Espetáculo ‘Quando o Discurso Autoriza a Barbárie’ estreia na Casa de Teatro Mariajosé de Carvalho

A Companhia de Teatro Heliópolis apresenta o espetáculo Quando o Discurso Autoriza a Barbárie na Casa de Teatro Mariajosé de…

3 dias ago

Espetáculo ‘Verme’, estreia curta temporada no Teatro Paulo Eiró

A Cia. Los Puercos inicia temporada do espetáculo Verme, no Teatro Paulo Eiró, localizado na Zona Sul de…

3 dias ago

Comedia musical ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’ tem apresentações em seis teatros municipais de São Paulo

Memórias Póstumas de Brás Cubas, dirigido e adaptado por Regina Galdino, faz apresentações gratuitas em…

3 dias ago

Espetáculo-brinquedo ‘Kuenda Kalunga, Kuenda Njila – É Possível Gargalhar Depois da Travessia?’ estreia em novembro

Em novembro, a N’Kinpa – Núcleo de Culturas Negras e Periféricas estreia Kuenda Kalunga, Kuenda…

3 dias ago