Araquém Alcântara seguiu os passos de João Guimarães Rosa, percorreu cenários do cerrado, entre o norte de Minas e o Sul da Bahia. Após meses de andanças encontrou e registrou paisagens e personagens que parecem ter saído das páginas de Grande Sertão: Veredas, obra máxima do autor mineiro.
“Natureza da gente não cabe em nenhuma certeza.”
– João Guimarães Rosa, em ‘Grande Sertão: Veredas’. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
“O senhor não pode estabelecer em sua ideia a minha tristeza quinhoã. Até os pássaros, consoante os lugares, vão sendo muito diferentes. Ou são os tempos, travessia da gente?”
– João Guimarães Rosa, em ‘Grande Sertão: Veredas’. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
“Na ação de ouvir, digo ao senhor, tive um menos gosto, na ação da pergunta. Só faço, que refugo, sempre quando outro quer direto saber o que é próprio o meu no meu, ah. Mas desci disso, o minuto, vendo que só mesmo Diadorim era que podia acertar esse tento, em sua amizade delicadeza. Ao que entendi. Assim devia de ser. Toda mãe vive de boa, mas cada uma cumpre sua paga prenda singular, que é a dela e dela, diversa bondade. E eu nunca tinha pensado nessa ordem. Para mim, minha mãe era a minha mãe, essas coisas. Agora, eu achava. A bondade especial de minha mãe tinha sido a de amor constando com a justiça, que eu menino precisava. E a de, mesmo no punir meus demaseios, querer-bem às minhas alegrias. A lembrança dela me fantasiou, fraseou – só face dum momento – feito grandeza cantável, feito entre madrugar e amanhecer.”
– João Guimarães Rosa, em ‘Grande Sertão: Veredas’. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
“Eu via, queria ver, antes de dar à casca, um pássaro voando sem movimento, o chão fresco remexido pela fossura duma anta, o cabecear das árvores, o riso do ar e o fogo feito duma arara. O senhor sabe o que é o frege dum vento, sem uma moita, um pé de parede pra ele se retrasar? Eu ambicionava o suíxo manso dum córrego nas lajes – o bom sumiço dum riacho mato a fundo. E adverti memória dos derradeiros pássaros do Bambual do Boi. Aqueles pássaros faziam arejo. Gritavam contra a gente, cada um asia sua sombra num palmo vivo d’água. O melhor de tudo é a água.”
– João Guimarães Rosa, em ‘Grande Sertão: Veredas’. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
“Diadorim acendeu um foguinho, eu fui buscar sabugos. Mariposas passavam muitas, por entre as nossas caras, e besouros graúdos esbarravam. Puxava uma brisbisa. O ianso do vento revinha com o cheiro de alguma chuva perto. E o chiim dos grilos ajuntava o campo, aos quadrados. Por mim, só, de tantas minúcias, não era o capaz de me alembrar, não sou de à parada pouca coisa; mas a saudade me alembra. Que se hoje fosse. Diadorim me pôs o rastro dele para sempre em todas essas quisquilhas da natureza. Sei como sei. Som como os sapos sorumbavam. Diadorim, duro sério, tão bonito, no relume das brasas. Quase que a gente não abria boca; mas era um delém que me tirava para ele – o irremediável extenso da vida. Por mim, não sei que tontura de vexame, com ele calado eu a ele estava obedecendo quieto.”
– João Guimarães Rosa, em ‘Grande Sertão: Veredas’. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
“Fui fogo, depois de ser cinza. Ah, algum, isto é que é, a gente tem de vassalar. Olhe: Deus come escondido, e o diabo sai por toda parte lambendo o prato… Mas eu gostava de Diadorim para poder saber que estes gerais são formosos”
– João Guimarães Rosa, em ‘Grande Sertão: Veredas’. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
“Por esses longes todos eu passei, com pessoa minha no meu lado, a gente se querendo bem. O senhor sabe? Já tenteou sofrido o ar que é saudade? Diz-se que tem saudade de ideia e saudade de coração…”
– João Guimarães Rosa, em ‘Grande Sertão: Veredas’. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
“Na Serra do Cafundó – ouvir trovão de lá, e retrovão, o senhor tapa os ouvidos, pode ser até que chore, de medo mau em ilusão, como quando foi menino. O senhor vê vaca parindo em tempestade. De em de, sempre, Urucuia acima, o Urucuia – tão as brabas vai… Tanta serra, esconde a lua. A serra ali corre torta. A serra faz ponta.”
– João Guimarães Rosa, em ‘Grande Sertão: Veredas’. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
“Por que era que eu estava procedendo à-toa-assim? Senhor, sei? O senhor vai pondo seu perceber. A gente vive repetido, o repetido, e, escorregável, num mim minuto, já está empurrado noutro galho. Acertasse eu com o que depois sabendo fiquei, para de lá de tantos assombros… Um está sempre no escuro, só no último derradeiro é que clareiam a sala. Digo: o real não está na saída nem na chagada: ele se dispões para a gente é no meio da travessia.”
– João Guimarães Rosa, em ‘Grande Sertão: Veredas’. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
“O sertão não tem janelas nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa… Aquilo eu repeli?”
– João Guimarães Rosa, em ‘Grande Sertão: Veredas’. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
“Esbandalhados nós estávamos, escatimados naquela esfrega. Esmorecidos é que não. Nenhum se lastimava, filhos do dia, acho mesmo que ninguém se dizia de dar por assim. Jagunço é isso. Jagunço não se escabreia com perda nem derrota – quase que tudo para ele é o igual. Nunca vi. Pra ele a vida já está assentada: comer, beber, apreciar mulher, brigar, e o fim final. E todo o mundo não presume assim? Fazendeiro, também? Querem é trovão em outubro e a tulha cheia de arroz. Tudo que eu mesmo, do que mal houve, me esquecia. Tornava a ter fé na clareza de Medeiro Vaz, não desfazia mais nele, digo. Confiança – o senhor sabe – não se tira das coisas feitas ou perfeitas: ela rodeia é o quente da pessoa”
– João Guimarães Rosa, em ‘Grande Sertão: Veredas’. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
“De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de difícil, peixe vivo no moquém: quem mói no asp’ro não fantasêia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede. E me inventei nesse gosto de especular ideia. O diabo existe e não existe. Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias. O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é negócio muito perigoso…”
– João Guimarães Rosa, em ‘Grande Sertão: Veredas’. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
“Consegui o pensar direito: penso como um rio tanto anda: que as árvores das beiradas mal nem vejo… Quem me entende? O que eu queira. Os fatos passados obedecem à gente; os em vir, também. Só o poder do presente é que é furiável? Não. Esse obedece igual – e é o que é.”
– João Guimarães Rosa, em ‘Grande Sertão: Veredas’. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
“Obedecer é mais fácil do que entender.”
– João Guimarães Rosa, em ‘Grande Sertão: Veredas’. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
“A vida da gente vai em erros, como um relato sem pés nem cabeça, por falta de sisudez e alegria. Vida devia de ser como sala do teatro, cada um inteiro fazendo com forte gosto seu papel, desempenho.”
– João Guimarães Rosa, em ‘Grande Sertão: Veredas’. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
“Hem? Hem? O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação da alma… Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio… Uma só, para mim, é pouca, talvez não me chegue. “
– João Guimarães Rosa, em ‘Grande Sertão: Veredas’. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
“Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar – é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dor. E a vida do homem está presa encantoada – erra rumo, dá em aleijões como esses, dos meninos sem pernas e braços. Dor não dói até em criancinhas e bichos, e nos doidos – não dói sem precisar de se ter razão nem conhecimento? E as pessoas não nascem sempre? Ah, medo tenho não é de ver morte, mas de ver nascimento. Medo mistério. O senhor não vê? O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo. O inferno é um sem-fim que nem não se pode ver. Mas a gente quer Céu é porque quer um fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo. Se eu estou falando às flautas, o senhor me corte. Meu modo é este. Nasci para não ter homem igual em meus gostos. O que eu invejo é sua instrução do senhor…”
– João Guimarães Rosa, em ‘Grande Sertão: Veredas’. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
“Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for… Existe é homem humano. Travessia.”
– João Guimarães Rosa, em ‘Grande Sertão: Veredas’. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
Fontes/livros:
. Fotografias: Veredas. Araquém Alcântara. São Paulo: Editora TerraBrasil, 2014.
. Citações: Grande Sertão: Veredas. João Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
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