“Dizem que Dalton Trevisan guarda notícias de jornal para delas depois extrair suas histórias. Quem conhece os contos do grande escritor paranaense não duvida desta afirmação: a realidade está ali sempre presente – mediada, naturalmente, por seu talento ficcional. Porque para o talento qualquer coisa pode ser ponto de partida. Inclusive e principalmente as notícias do dia a dia. As histórias … foram escritas para a seção “Cotidiano”, do jornal Folha de S.Paulo. Quando recebi o convite para fazê-lo fiquei, a princípio, em dúvida: eu deveria escrever histórias – ou crônicas, como muitos outros colaboradores da imprensa brasileira? A resposta do editor foi taxativa: tratava-se de ficção, de narrativas imaginárias. Lancei-me então à tarefa que, no começo, se revelou difícil. Como ficcionista, eu estava habituado a trabalhar com meu “noticiário” interno, com minhas próprias ideias. De repente, porém, a coisa começou a funcionar. Descobri então o motivo pelo qual Dalton Trevisan teria guardado seus recortes: atrás de muitas notícias esconde-se uma história pedindo para ser contada. É a história virtual que complementa ou amplia a história real (se é que sabemos exatamente o que é uma história real). A partir daí eu tinha uma nova fonte de inspiração – e de prazer. É este prazer que pretendo partilhar com os leitores.”
– Moacy Scliar, na introdução do livro “O imaginário cotidiano”. São Paulo: Global Editora, 2013.
Eis uma das histórias:
O inferno é aqui mesmo?
“Preso no trânsito usa blasfêmia como escape.”
Cotidiano, 8 dez. 1997
Preso no trânsito, ele perdeu a paciência e pôs-se a gritar, esmurrando o volante:
– Diabo! Diabo!
Ouviu-se um estrondo, uma nuvem de fumaça invadiu o interior do carro e, quando ela se dispersou, lá estava, sentada no carro, a figura inconfundível: os pequenos chifres, os olhinhos malignos, o rabo. O Diabo, em pessoa, sorridente:
– Chamaste-me? Aqui estou.
Apavorado, o motorista não sabia o que dizer. Queria voltar atrás, foi engano, Senhor Diabo, eu não chamei ninguém, eu estava apenas protestando contra o trânsito; mas, como se tivesse adivinhado o seu pensamento, o demônio apressou-se a acrescentar:
– E vim para ficar. Você sabe, ninguém invoca impunemente o nome do Demônio. De modo que você pode me considerar seu eterno passageiro. Relaxe, fique tranquilo. Temos muito tempo para conversar.
O pobre homem não dizia nada. Olhava o tridente que o Diabo tinha ao lado e se perguntava em que momento começaria a ser espetado com aquela coisa. Isso sem falar no fogo do inferno que decerto em pouco tempo estaria aceso ali. Tentou disfarçadamente abrir a porta; como suspeitava, estava trancada. Demônios sabem como usar a tecnologia moderna contra suas vítimas. Suspirou, pois, e preparou-se para o sofrimento.
O trânsito continuava parado, as horas passavam, e o Diabo, que de início falara loquazmente sobre as delícias do castigo eterno, agora mostrava-se silencioso. Mais, mexia-se inquieto no banco de trás. E de repente não se conteve:
– Mas será que essa coisa não anda, meu Deus do céu?
Novo estrondo, e nova nuvem, dessa vez luminosa; o demônio tinha sumido e, em seu lugar, estava um ancião de esplêndidas barbas brancas.
– O Diabo já deveria ter aprendido que não se invoca o meu santo nome em vão – disse.
– Mas você é Deus! – exclamou o motorista, maravilhado.
– Pode me chamar assim – disse Deus. – Ah, e pode fazer um pedido, também. Você merece.
O homem não hesitou:
– Quero que você me tire agora deste congestionamento.
Ao que Deus abriu a porta e saltou. Antes de ascender aos céus, esclareceu:
– Desse trânsito, meu filho, nem Deus te tira. Acho melhor você chamar o Demônio de novo.
– Moacy Scliar, do livro “O imaginário cotidiano”. São Paulo: Global Editora, 2013.