quinta-feira, novembro 21, 2024

‘O jazz não morreu, não foi superado e continua tão inventivo quanto antes.’ , Herbie Hancock – pianista americano

Uma das lendas da música americana afirma que o jazz perdeu espaço no cenário pop porque o público “está mais interessado em celebridades do que em música”

O pianista e compositor americano Herbie Hancock (nascido em 12 de abril de 1940, na cidade Chicago, Illinois, EUA), é um dos mais ousados experimentadores do jazz.

No seu “currículo” Herbie tem grandes momentos de sucesso, como aquele vivenciado com o Miles Davis no anos 60. Nesta época, ele participou de um quinteto que entrou definitivamente para história do jazz. Aliás, foi nessa época que Herbie teve contato pela primeira vez com o piano elétrico Fender Rhodes e a “sintonia” entre instrumento e músico foi imediata, fazendo com que o pianista adapta-se um pedal de wah-wah e uma câmera de eco.

Quando tomou conhecimento das “estranhas adaptações” de Herbie no seu novo modelo de piano, ordenou que os próximos modelos fossem fabricados com as “novidades”.

Nos anos de 1970, depois do sucesso do Miles Davis, o pianista Herbie Hancock montou um novo grupo, dessa vez com uma pegada mais popular afro-americana. Esse novo ritmo fez um grande sucesso e chegou ao grande público. O grupo chamado Head Hunters gravou um disco com experiências sonoras que consistiam na mistura de eletrofunk com o ritmo que fez sucesso no quinteto de Miles Davis.

Não seria incorreto dizer que Herbie Hancock é eclético e misturou e soube brincar com vários ritmos, além dos álbuns dedicados ao jazz é possível sentir o funk, o fusion e a música clássica nas suas composições.

Os críticos afirmam que foram poucos os pianistas que conseguiram reunir tantos ritmos diferentes e por isso, é considerado um dos maios da história do jazz. Um dos seus trabalhos mais aplaudidos pelo público e pela crítica é o álbum Chick Corea, do ano de 1978.

Hancock faz troça dos que acreditam no fim da era de ouro do jazz. “As pessoas têm mania de endeusar os tempos antigos”, diz. “O jazz continua tão inventivo quanto antes, apenas não faz mais parte da cena musical pop. E hoje só ouvimos falar em música pop.”

Eis a entrevista concedida a Rodrigo Turrer | revista Época*, em 16.8.2013.

O maestro Quincy Jones disse recentemente que as novas gerações não conhecem o jazz e sua importância histórica. O jazz perdeu influência entre os jovens?

Herbie Hancock – Sim, perdeu. Os jovens não conhecem o jazz e não sabem o que estão perdendo (risos). Eles não fazem ideia de que muitas músicas que ouvem hoje em dia usam bases de jazz ou tiveram influência do jazz. Muitos DJs em casas noturnas improvisam. O tempo inteiro eles improvisam, quando vão de um disco para outro, quando mudam o andamento da música, quando usam imagens sobre a música. Tudo o que fazem musicalmente é improvisação. Isso é puro jazz. Porque a improvisação, nesse sentido não clássico, vem do domínio do jazz. Então, de certa forma, os jovens ouvem jazz indiretamente. As novas gerações já tiveram contato com as big bands dos anos 1920, com músicas que fiz no passado e que meus contemporâneos fizeram. Eles podem não saber disso, mas conhecem jazz.

Nos anos 1990, houve um ressurgimento do jazz clássico, tradicional, um movimento liderado pelo músico Wynton Marsalis. Para o senhor, que sempre foi um inovador, essa volta às raízes deixou o jazz um pouco careta?

Hancock – Concordo. O jazz nunca esteve preso a tradições. Os artistas sempre se libertaram dessas amarras. Nos anos 1920 e 1930, artistas monumentais como Duke Ellington e Louis Armstrong revolucionaram a música. Nos anos 1940, tivemos Charlie Parker e Dizzy Gillespie. Nos anos 1960, Miles Davis e John Coltrane. Esses artistas usaram a história do jazz para revolucionar o jazz. Mas todos inovaram e foram além do sentido tradicional. Não existe uma única maneira de tocar jazz. Não dá para aprisionar o jazz numa caixa. Muitos querem fazer isso, colocá-lo numa caixa, preso a uma forma de fazer. Mas é impossível. Ele se expressa de muitas maneiras. É difícil dizer que algumas das músicas que faço sejam jazz, porque musicalmente não são. Mas, se você tentar compreender o espírito por trás daquilo, ficará óbvio que é jazz.

Como assim?

Hancock – O jazz vem do espírito. Apenas o espírito do jazz pode fazer certo tipo de música. Muitas coisas que faço não podem ser definidas como jazz, mas têm o espírito. Apenas jazzistas podem fazer isso. É o caso de Wayne Shorter. A música dele não é nada careta nem antiquada. É a música mais moderna, que cresce das tradições do jazz incorporando fontes clássicas.

“Lady Gaga incentiva os
jovens a ser como eles são.
Eu a respeito por isso”

Wayne Shorter fará, em breve, 80 anos. As novas gerações são tão inovadoras quanto as antigas?

Hancock – As pessoas têm mania de endeusar os tempos antigos. Sempre ouço a mesma história sobre como eram bons os clubes enfumaçados e as jam sessions que varavam madrugadas. Isso é romântico, mas é mentira. Eram tempos duros para os músicos. As coisas melhoraram bastante. Em termos musicais, o jazz continua tão inovador quanto antes. Você conhece o músico Robert Glasper? Ele é um músico jovem, com pouco menos de 30 anos. É um dos jovens da nova geração que fazem um jazz altamente inovador. Flying Lotus é outro exemplo de jovem que faz um jazz de primeira linha. Gente que não está associada ao jazz, cuja música é difícil de identificar ou rotular, mas que nitidamente tem um espírito de jazz e uma profunda influência do jazz. Ele usa música de várias fontes, mas a mistura que faz é tão improvisada e inventiva que só pode ser jazz. Há alguns bons artistas nos Estados Unidos, mas o jazz mais inventivo que tenho ouvido vem de fora dos Estados Unidos.

Por que isso acontece fora da terra natal do jazz?

Hancock – O jazz é o verdadeiro diplomata musical, porque une gente de todas as nacionalidades. Danilo Perez, que toca com Wayne Shorter, é do Panamá. A música dele tem profundas raízes nas tradições latino-americanas, não apenas na tradição panamenha. Ele leva isso para a música de Wayne Shorter. Há dois anos, fui nomeado embaixador da boa vontade da Unesco para a promoção do diálogo intercultural. Visitei países como Camboja e Indonésia e organizei o Dia Internacional do Jazz. A segunda edição foi neste ano, em 13 de abril (2013). Vi ótimos jazzistas na Coreia do Norte, na Síria e no Iraque. Há dezenas de outros artistas fazendo isso hoje. Tenho ouvido músicos da Armênia, músicos que fazem jazz com toques da música armênia. Há muita inovação vinda do jazz da China, músicos que fazem jazz com influência da música tradicional chinesa. Então, o jazz continua muito inovador.

O senhor acha que o jazz envelheceu bem e sobreviveu a seu apogeu?

Hancock – O jazz apenas mudou. Ele não envelhece e não está nem perto de morrer. O jazz nunca parou de respirar. Sempre esteve em franca expansão. Não ouvimos falar de jazz porque ele não toca no rádio. Vejo centenas de jovens músicos recém-saídos de faculdades de música totalmente encantados com o jazz, apaixonados pelo jazz. Eles querem tocar, querem gravar jazz, querem desenvolver seus talentos com base nos improvisos do jazz. Muito mais do que havia no meu tempo. Eles fazem música de primeira linha, mas o jazz voltou para o underground, não chega ao público em geral.

Isso não é uma prova de que o jazz perdeu influência?

Hancock – Não, ele apenas mudou de forma. A influência do jazz é sua vitalidade e inventividade. O jazz mudou e tem um papel diferente. Muitos músicos de jazz hoje são professores em faculdades de música, ou em colégios, não são mais músicos profissionais. Ao mesmo tempo, o jazz se tornou uma música internacional, não apenas americana. O jazz não morreu, não foi superado e continua tão inventivo quanto antes. O jazz apenas voltou a ser underground, não faz mais parte da cena musical pop. E hoje só ouvimos falar em música pop e na cena pop.

Por que o jazz não faz mais parte da cena pop?

Hancock – Porque não é mais a música que importa. As pessoas não querem mais saber da música em si, mas sim de quem faz a música. O público está mais interessado nas celebridades e em como determinado artista é famoso do que na música. Mudou a maneira como o público se relaciona com a música. Ele não tem mais uma ligação transcendental com a música e sua qualidade. Quer apenas o glamour. O jazz não quer fazer parte disso. Sabe por quê? Não se trata de humildade, nem de arrogância, de uma postura “não queremos ser famosos, somos underground”. Nada disso. O jazz é sobre a alma humana, não sobre a aparência. O jazz tem valores, ensina a viver o momento, trabalhar em conjunto e, especialmente, a respeitar o próximo. Quando músicos se reúnem para tocar juntos, é preciso respeitar e entender o que o outro faz. O jazz em particular é uma linguagem internacional que representa a liberdade, por causa de suas raízes na escravidão. O jazz faz as pessoas se sentir bem em relação a si mesmas.

A música pop não faz isso?

Hancock – Tem sido cada vez mais raro. Apenas Lady Gaga faz algo nesse sentido. Ela incentiva os jovens a ser como eles são, não importa quão estranhos ou diferentes pareçam. Ela os encoraja a ser como são. Eu a respeito por isso. Ela é totalmente contra agressões, abusos e ofensas a qualquer tipo de pessoa. Encoraja gays, lésbicas, transexuais a ser como são. Dá total apoio à comunidade LGBT por lutar por seus direitos civis. É uma mulher corajosa e uma das poucas artistas na música pop a ser tão combativa. O público hoje liga apenas para celebridades.

Foram as novas tecnologias que causaram essa mudança na relação do público com a música?

Hancock – Elas ajudaram, mas é um problema da nossa era. As pessoas estão cada vez menos ligadas no verdadeiro sentido das coisas. Essa sempre foi uma preocupação minha: como usar a tecnologia na música sem roubar sua alma. Fiz engenharia no colégio técnico e sempre me interessei por ciência e tecnologia. Me empolgo com as possibilidades que as novas tecnologias abrem para a música. Mas são seres humanos que fazem a música. O sintetizador não faz nada se alguém não o programar ou o tocar. São os músicos que têm de ter o talento, a sensibilidade, o gosto para usar a tecnologia para fazer boa música.

*Entrevista originalmente publicado na revista Época, em 16.8.2013. 

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