SOCIEDADE

O legado do cineasta Carlos Alberto Prates Correia – diretor dos filmes ‘Cabaret Mineiro’ e ‘Noites do Sertão’

“A dançarina espanhola de Montes Claros
dança e redança na sala mestiça
Cem olhos morenos estão despindo
seu corpo gordo picado de mosquito.
Tem um sinal de bala na coxa direita,
o riso postiço de um dente de ouro,
mas é linda, linda gorda e satisfeita.
Como rebola as nádegas amarelas!
Cem olhos brasileiros estão seguindo
o balanço doce e mole de suas têtas….”
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“Em sua obra numericamente pequena, mas imensa – talvez exatamente como o São Francisco naquele norte de Minas – Carlos Alberto Prates Correia (1941-2023) inventou um Brasil. Coisa rara no romance, no poema, na canção, na atuação e, em seu caso, no cinema, foi isso que ele fez: um Brasil composto do romance de Rosa, do poema de Drummond aí de cima, da canção que do poema (e do São Francisco) fez Tavinho Moura, de Tânia Alves dançando (dançarina espanhola de Montes Claros), cantando e atuando, um certo Brasil como o dos inventores do Brasil. Um cinema realmente visto por talvez não mais de cem olhos morenos, cem olhos brasileiros, no entanto vidrados na tela como, no cabaré, em um corpo gordo picado de mosquito, ou no balanço doce e mole de suas tetas. Um cinema exatamente como o poema, “Cabaré mineiro”, (ou como o conto, “Noites do sertão”), humor, amor e sacanagem. Como Minas, aquela que não há mais, fotografia na parede, filme na tela.
Mas como dói.”
Hugo Sukman (jornalista, escritor, crítico de música carioca e curador da nova sede do MIS RJ, Museu da Imagem e do Som)

Prates Correia deixa legado no cinema brasileiro e mineiro
Premiado diretor que se inspirava em mineiridades para criar seus filmes, entre eles “Cabaré mineiro” e “Noites do Sertão”
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Prates Correia nasceu em setembro de 1941, na  cidade de Montes Claros/MG, mas mudou cedo para Belo Horizonte/MG. Na capital mineira, trabalhou inicialmente como crítico de cinema no extinto jornal Diário de Minas, entre a década de 1950 e 1960. A carreira no cinema só começou em 1965, quando auxiliou o diretor Joaquim Pedro de Andrade no filme “O padre e a moça”, estrelado por Paulo José, que também estreava no cinema.
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Animado com o universo cinematográfico, ainda na década de 1960, Prates Correia reuniu alguns amigos e montou o Centro Mineiro de Cinema Experimental (Cemice), em Belo Horizonte. Foi com esse grupo, aliás, que ele produziu “O milagre de Lourdes” (1965), sobre um padre corrupto que, para fugir dos fiéis enfurecidos com sua má conduta, se esconde em um dos bordéis da famigerada Rua Guaicurus – local até hoje conhecido pelo grande número de prostíbulos no Centro da capital.
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Em 1966, o cineasta se mudou para o Rio de Janeiro, local onde a produção cinematográfica vivia maior efervescência. De lá, dirigiu o episódio “Guilherme”, do filme “Os marginais” (1966), de Moisés Kendler, onde repetiu a dobradinha com Paulo José.
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MACUNAÍMA Em 1969, voltou a trabalhar com o diretor Joaquim Pedro de Andrade e o ator Paulo José no clássico “Macunaíma”, no qual foi assistente de direção.

A censura do governo militar bem que tentou boicotar o longa – o órgão oficial impôs 15 cortes no filme, a maioria referente a nus, a palavrões e ao texto “Muita saúva e pouca saúde os males do Brasil são” –, no entanto, a versão cinematográfica do romance de Mário de Andrade saiu do Festival de Brasília de 1969 premiado nas categorias melhor ator (Grande Otelo), melhor ator coadjuvante (Jardel Filho), melhor argumento (Joaquim Pedro), melhor roteiro (Joaquim Pedro), melhor diálogo (Joaquim Pedro), melhor cenografia (Anísio Medeiros) e melhor figurino (Anísio Medeiros).

Embora não tivesse sido laureado nominalmente no evento, a experiência que Prates Correia adquiriu ao rodar “Macunaíma” foi importante para o trabalho crítico e autoral que viria a desenvolver posteriormente.
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O primeiro filme precisamente dele já foi no ano seguinte, em 1970. Ambientado em Sabará, “Crioulo doido” acompanha Florisberto (papel de Jorge Coutinho em um dos primeiros filmes brasileiros tendo um negro como protagonista), um alfaiate de origem humilde que sonha em ascender socialmente. Tentando alcançar esse objetivo, Felisberto acaba por se envolver em negócios escusos, como agiotagem e jogo do bicho.
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Ainda que questionáveis, as empreitadas dão certo e Felisberto vira um grande fazendeiro. Contudo, no meio do caminho, ele encontra a interesseira Sebastiana (papel de Selma Caronezzi), que tenta surfar na prosperidade do rapaz para também ascender socialmente.

Quando a trama parece se limitar a mostrar o modus operandi de um alpinista social da década de 1970, uma reviravolta se dá com a circulação de um boato sobre um fim do mundo iminente.
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A notícia catastrófica deixa Felisberto transtornado e, para desespero de Sebastiana, muda completamente os planos do alfaiate para o destino da própria riqueza.
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Depois do lançamento de “Crioulo doido”, Prates Correia trabalhou como produtor em “Os inconfidentes” (1972) e “Guerra conjugal” (1974), ambos de Joaquim Pedro; e “Vai trabalhar, vagabundo” (1973), de Hugo Carvana. Também firmou parceria com Cacá Diegues nos longas “Quando o carnaval chegar” (1972) e “Joana Francesa” (1975).

ABUSOS Só depois de todos esses projetos, Prates Correia produziu seu segundo longa, “Perdida” (1976). No filme, Estela (Maria Sílvia) é uma pobre empregada doméstica na cidade mineira de Rio Verde. Por não ser natural do município e não ter nenhum parente lá, Estela aguenta calada os abusos dos patrões por medo de ser mandada embora. Chega a um ponto, entretanto, que ela decide dar um basta nessa relação abusiva com os chefes e vai embora de Rio Verde.
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No caminho, Estela conhece e se apaixona pelo caminhoneiro Júlio César (Alvaro Freire). Eles até engatam um romance passageiro, no entanto, quando já se sente farto da moça, Júlio a deixa num prostíbulo de beira de estrada, onde ela começa a atender sob o nome de Janete, mas sempre na expectativa de que o caminhoneiro volte e, tal qual o bom e velho Odair José, tire-a daquele lugar.
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Não é bem isso que acontece. Cansada de esperar e levar uma vida que nunca pensou para si, Estela abandona a prostituição e vai trabalhar como operária numa fábrica de uma cidadezinha perto. Quando as coisas já estão se ajeitando na vida da moça, Júlio reaparece, reacendendo nela todo o antigo amor.
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O caminhoneiro, no entanto, ao contrário do que pensava Estela, não fica satisfeito com a nova profissão da moça, exigindo que ela volte a trabalhar como prostituta.
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“O Carlos Alberto tinha uma importância muito grande no cinema brasileiro. O trabalho dele era muito autoral”, afirma Maria Tereza Correia, a sobrinha do diretor. “Ele foi uma pessoa que sempre valorizou o cinema mineiro, desde o começo, quando participou do Centro Mineiro de Cinema Experimental. Sempre trazia para os filmes elementos de Minas Gerais ou então gravava no estado”, diz.
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GUIMARÃES ROSA A mineiridade que Prates Correia levou para suas produções talvez esteja presente de forma mais evidente em “Cabaré mineiro” (1980). Estrelado por Nelson Dantas, o filme acompanha as andanças de um sertanejo pelo interior do norte de Minas.

Ao longo da caminhada, ele encontra mulheres marcantes e elementos típicos da região, como a culinária à base de pequi, danças tradicionais, a literatura de Guimarães Rosa e, claro, o famigerado cafezinho mineiro, servido com pão, broa e pão de queijo.

O filme ganhou os principais prêmios do Festival de Gramado de 1981, entre eles os de melhor filme, melhor direção, melhor fotografia, melhor ator (Nelson Dantas), melhor trilha sonora (Tavinho Moura) e melhor atriz coadjuvante (Tânia Alves).

Já em 1984, Prates Correia rodou “Noites do sertão”. Baseado no conto “Buriti”, de Guimarães Rosa, publicado no livro “Corpo de baile”, o filme começa se passando na Belo Horizonte de 1950. Lalinha (Cristina Aché) é abandonada pelo marido. As notícias que se tem é que ele fugiu com outra mulher.

Desquitada, conforme Lalinha é chamada pejorativamente, a moça vai para a fazenda Buriti Bom com as duas cunhadas (uma delas é vivida por Débora Bloch) e o sogro viúvo. Lá, ela se enreda numa trama amorosa – com o personagem de Tony Ramos, diga-se – que acaba se tornando perversa.
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MILTON NASCIMENTO O filme guarda algumas curiosidades. Tavinho Moura, por exemplo, responsável pela trilha sonora, faz uma ponta interpretando um violeiro. Milton Nascimento, por sua vez, dá vida ao Chefe Zequiel. E o cineasta Helvécio Ratton é quem assina a produção executiva.

“Milton Nascimento, no papel de Chefe Zequiel, e Manuelzão que interpreta a si mesmo, personagem de Guimarães Rosa. Intervalo da filmagem de “Noites do Sertão”, de Carlos Alberto Prates Correia, em 1983. “Gente, não vai ficar nem um tatu, no mundo?” – foto (acervo Apolo Heringer Lisboa)

.“O Prates era um cineasta além de muito talentoso, com uma grande ligação com a cultura mineira. Ele sabia dirigir muito bem e tinha essa ligação profunda com Minas Gerais”, afirma o cineasta Helvécio Ratton, que foi produtor executivo de “Noites dos sertão”. (ao Estado de Minas, 28.5.2023).
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No final dos anos 1980, Prates Correia rodou “Minas-Texas” (1989), que acompanhava a relação romântica tumultuada entre a jovem Januária (Andréa Beltrão) e o peão de rodeio Roy Pereira (José Dumont). O elenco conta ainda com Tony Ramos, Elke Maravilha, Tavinho Moura e Saulo Laranjeira.
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HIATO Depois de um hiato de quase 30 anos, Prates Correia gravou seu último filme em 2007. No documentário “Castelar e Nelson Dantas no país dos generais”, ele traz depoimentos de cinéfilos e realizadores mineiros de sua própria geração no intuito de fazer um recorte do cinema local entre as décadas de 1960 a 1980.
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O cineasta morreu aos 82 anos, no sábado, 27 de maio de 2023, deixou companheira, Margarida, e o filho, João. O corpo do diretor foi cremado na segunda-feira (29/5/2023), no Rio de Janeiro, em cerimônia restrita à família.
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* Com informações de Lucas Lanna Resende / Estado de Minas.

 

Carlos Alberto Prates Correia – Diretor, roteirista e produtor de cinema

Carlos Alberto Prates Correia – Diretor, roteirista e produtor, natural de Montes Claros -MG. Formado em Sociologia e Política pela UFMG.
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Nos anos 60, foi cineclubista e crítico, professor de cinema, trabalhou como continuísta em O Padre e a Moça (1965) e realizou o 1º curta-metragem sonoro, de ficção, rodado em Belo Horizonte (O Milagre de Lourdes, 65-66), dirigiu um episódio de Os Marginais (67-68), produzido pela Columbia Pictures, e atuou como diretor assistente de Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade. No início dos anos 70 recebeu financiamento do BDMG para realizar Crioulo Doido (o 1º longa), exerceu as atividades de diretor de produção e produtor executivo de filmes do Cinema Novo e foi coautor de um método de acertar na loteria esportiva razoavelmente bem sucedido.
1975 – Perdida (produção da Mapa Filmes) – Filme proibido e a seguir liberado pela Censura com 10 minutos de cortes na imagem e 30 palavras raspadas no som.
1976 – Festival de Gramado – Após a proibição ele foi excluído da seleção oficial e exibido em sessão paralela com forte repercussão.
1978 – Bem atrás da Câmera – Ensaio de montagem do Cabaret. Curta-metragem.
1979Cabaret Mineiro – 7 prêmios em Gramado, inclusive de melhor filme e diretor.
Antes e depois de Noites do Sertão, à espera de financiamentos para suas realizações seguintes, coordenou a produção e atuou como produtor executivo de mais dois filmes de seus companheiros.
1983Noites do Sertão – Baseado na novela Buriti de Guimarães Rosa. 23 prêmios (inclusive de melhor filme) em festivais do Brasil, como Gramado e Brasília, e no exterior.
1989Minas Texas – Sem exibição nas salas devido à extinção da Embrafilme. Premiado em Brasília e no Fest-Rio, o realizador considera o filme sua principal realização.
Retrospectiva na Cinemateca Francesa.
Depois de 17 anos de afastamento retornou à atividade cinematográfica em suas funções habituais e pela 1ª vez como montador:
2006Castelar e Nelson Dantas no País dos Generais, semidocumentário – Melhor filme e montagem no Festival de Gramado.
2007 – Recuperação e reedição do acervo da Sertaneja de Cinema.

“O que fazer com Prates Correia e seu cinema? Um cinema sem a arrogância de uma obra divisora de águas, traço excepcional marcado pelo desvio, flor mínima e rara. Um cinema que, por força de sua singularidade e da alta definição de seu desejo de imagens, não sofreu do impacto dos movimentos, das publicidades, das blasfêmias, das exasperações. Um cinema feito praticamente “a sós”, quero dizer, irredutível em sua vontade e em sua determinação. Um cinema verdadeiramente de autor, isto é, que ousou não dar satisfações às entidades transcendentes que assombram consciências frágeis e/ou beligerantes e/ou retóricas, tais como: Público, Crítica, Cinema em si, Brasil, Minas, Revolução, Transição Democrática, Psicanálise, Feminismo, Vanguarda, Subdesenvolvimento… – e reservou, para quem se disponha a percorrê-los, infinitos labirintos”
– Alcino Leite Neto, Estado de Minas – 10.6.1986.
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Filmografia de Carlos Alberto Prates Correia
1965O Milagre de Lourdes
1968Os Marginais – 1º episódio.
1970Crioulo Doido
1975Perdida
1978Bem atrás da câmera
1979Cabaret Mineiro
1983Noites do Sertão
1989Minas-Texas
2006Castelar e Nelson Dantas no País dos Generais.
>> Saiba mais sobre as realizações no site oficial.

Quer saber mais sobre a filmografia de Carlos Alberto Prates Correia
CABARET MINEIRO. 1979 [Cartaz | Fotos]. In: Cinemateca Brasileira – Banco de Conteúdos Culturais, s/data. Disponível no link. (acessado em 29.5.2023).
CARLOS Alberto Prates Correia. Filmografia. In: Cinemateca Brasileira, s/data. Disponível no link. (acessado em 29.5.2023)
DI FATIMA, Branco. Cabaret Mineiro: o cinema sertanejo de Carlos Prates. In: Significação, São Paulo, v. 49, n. 57, p. 280-294, 2022. Disponível no link. (acessado em 29.5.2023)
DIB, André. Abraccine organiza ranking dos 100 melhores filmes brasileiros. In: Abraccine, [s. l.], 27 nov. 2015. Disponível no link. (acessado em 29.5.2023)
GARDNIER, R. “Crioulo Doido (1970)”. Contracampo, São Paulo, n. 30, 2010.
LEITE NETO, A. “O que fazer com Prates Correia, 1986”. In: CD Livreto de Carlos Prates. São Paulo: Editora do Autor, 2008. p. 1-4.
MARINHO, Maria Gabriela. S. M. C. “Cabaret mineiro: lirismo e transgressão no ocaso da ditadura”. In: MAIA, G.; ZAVALA, L. (org.). Cinema musical na América Latina: aproximações contemporâneas. Salvador: EDUFBA, 2018. p. 453-467.
NOITES DO SERTÃO. 1983 [Cartaz | Fotos]. In: Cinemateca Brasileira – Banco de Conteúdos Culturais, s/data. Disponível no link. (acessado em 29.5.2023).

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