Cineasta iniciou o movimento cinematográfico no país, fundou o 1º curso na área e conquistou um lugar privilegiado entre os escritores da ABL
O cineasta paulistano Nelson Pereira dos Santos
Para além do cinema, Pereira dos Santos atuou como jornalista e educador. Foi o fundador do primeiro curso de cinema no Brasil, na Universidade de Brasília, e, mais tarde, instaurou a especialidade na graduação da Universidade Federal Fluminense. Lecionou como professor convidado na Universidade da Califórnia, em Los Angeles (UCLA), e na Universidade de Columbia, em Nova York.
Em 2006, foi o primeiro cineasta a se tornar membro da Academia Brasileira de Letras. Pereira do Santos foi eleito para a cadeira de número 7, antes ocupada por Sergio Correia da Costa, e por nomes como Euclides da Cunha, Valentim Magalhães e, o patrono, Castro Alves.
Assim como seus antecessores na ABL, Pereira dos Santos é conhecido pela brasilidade de suas obras, que abordam questões culturais e sociais, entre paisagens variadas, expondo mazelas e alegrias da nação, da malandragem carioca e as delícias da bossa nova, até a seca do nordeste e a vida na favela. Ávido fã de literatura, o diretor bebeu de fontes consagradas, especialmente em nomes como Machado de Assis, Jorge Amado, Guimarães Rosa e Graciliano Ramos. O último, aliás, rendeu dois dos mais importantes títulos conduzidos pelo cineasta: Vidas Secas (1963) e Memórias do Cárcere (1984), ambos premiados no Festival de Cannes.
Cinema como vocação
Nelson Pereira dos Santos nasceu em 22 de outubro de 1928, em São Paulo, filho do alfaiate Antônio Pereira dos Santos (1897-1970) e da dona de casa Angelina Binari dos Santos (1900-1992), dividiu sua infância entre os tradicionais bairros do Brás e da Bixiga. Passava as tardes da adolescência entre as partidas de futebol na rua e as salas de cinema, hábito incentivado pelo pai cinéfilo. Ao fim do colegial, ele conhece sua futura esposa, Laurita Andrade Sant’Anna, antropóloga, com quem ficaria casado por 49 anos (ela faleceu em junho de 1999)
Assim como muitos dos colegas da época, se forma em direito, no Largo São Francisco. Contudo, a paixão pelo cinema já ditava seu futuro. A vocação o conduz a Paris, onde ele cursa o Instituto de Altos Estudos Cinematográficos (IDHEC), escola que recebeu outros famosos cineastas brasileiros, como Eduardo Coutinho e Ruy Guerra.
Na década de 1950, Pereira dos Santos se muda para o Rio de Janeiro, onde trabalha como jornalista e também como assistente de direção, produção e até como ator. Em 55, aos 27 anos, ele lança seu primeiro filme, Rio 40 Graus, sobre o cotidiano de pessoas variadas em um dia de verão na capital carioca. Um grupo de meninos negros, moradores do morro, vendem amendoim para turistas enquanto servem como fio condutor entre as histórias.
Foi com dois filmes pioneiros de Nelson – Rio 40 Graus (1955) e Rio Zona Norte (1957) que o neorrealismo italiano, o movimento do após-guerra e que tinha Roberto Rossellini como deus e Cesare Zavattini como seu profeta, pôde ganhar cores e ambientação brasileiras.
Com Rio 40 Graus, que enfrentou problemas com a censura, Nelson fez aqui o que os neorrealistas já tinham feito na Itália após a 2.ª Guerra: trouxe as câmeras para a rua e colocou o povo como protagonista da história. Era um cinema leve, livre e solto, feito fora dos estúdios, de forma barata e com evidente intenção crítica. Os “heróis” são garotos vendedores de amendoim, malandros, assalariados, mulheres do povo, soldados, trabalhadores. Gente que se encontra na rua, sem qualquer glamour.
Já no filme seguinte, Rio Zona Norte, o protagonista é um compositor popular, Espírito (Grande Otelo), que vende seus sambas aos ricos para sobreviver.
O paulistano Nelson Pereira, queria, com esses filmes, pintar um painel da antiga capital brasileira, um ícone das contradições nacionais expresso na dialética entre morro e asfalto. A trilogia carioca se completaria, de maneira um tanto assimétrica, com El Justicero (1966), retrato, agora em outro estilo, da juventude zona sul.
O estilo, até então inédito no país, que, na época, apostava nas chanchadas, serviria de inspiração para outros cineastas. “Tinha certeza de que estava assistindo a algo inaugural, a uma obra fundadora”, diz o diretor Cacá Diegues em sua biografia Vida de Cinema (Objetiva). Nelson forneceu material físsil para a detonação nuclear do Cinema Novo, o mais importante movimento cinematográfico do País e que teria nele um dos mais ativos participantes, ao lado de Glauber Rocha, Ruy Guerra, Cacá Diegues, Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade e outros.
Eclético, o cineasta não estacionou no naturalismo e nem no eixo Rio-São Paulo. Sua obra permeou várias linguagens e lugares, em uma constante homenagem à variedade da cultura nacional.
Literatura e música
Nos anos 1960, já com um nome a zelar, o cineasta toma emprestado de Nelson Rodrigues e Graciliano Ramos a trama para os filmes Boca de Ouro (1962) e Vidas Secas (1963), respectivamente. Aliás, a primeira adaptação de Graciliano pelas mãos do cineasta foi indicada à Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 1964, e ganhou o prêmio OCIC, voltado para produções com preceito humanitário.
“Na tentativa inicial de filmar uma obra de Graciliano, em 1959, eu fracassei. Fui filmar em Juazeiro da Bahia quando havia acabado de chover, houve uma enchente, a caatinga ficou verde”, conta, bem-humorado, Pereira dos Santos ao site de VEJA em conversa sobre sua paixão pela obra do escritor alagoano. “Inventei outro filme, na hora. E aí saiu Mandacaru, um verdadeiro fracasso”, diz sobre o romance em tom de faroeste Mandacaru Vermelho (1961), feito às pressas e com roteiro precário.
O universo de Graciliano continuou no radar do cineasta. Ele chega a filmar um curta-metragem, baseado no conto O Ladrão, do livro Insônia, e emplaca uma de suas principais obras: Memórias do Cárcere (1984). Baseado no livro autobiográfico de mesmo nome, lançado em 1953, o filme conquista o prêmio da crítica internacional do Festival de Cannes.
Assim como a literatura, a música popular também serve de inspiração para o diretor, que, em 1979, lança A Estrada da Vida, no qual o gênero sertanejo é usado como fundo para uma análise da construção da identidade do brasileiro. A trama acompanha a trajetória da dupla Milionário e José Rico, com os próprios cantores interpretando seus papéis.
Os dois últimos trabalhos do cineasta, aliás, são documentários focados na bossa nova, especialmente na figura de Tom Jobim. O primeiro, A Música Segundo Tom Jobim (2012), traz uma sequência de canções do compositor, entoadas por ele e por diversos intérpretes do mundo. Já A Luz do Tom (2013) se deleita em histórias intimas do músico, contadas por mulheres próximas a ele.
O Brasil em festivais
As nuances da cultura brasileira permearam toda a obra de Nelson Pereira dos Santos. Apesar de tratar temas locais, seus filmes foram bem recebidos fora do país. Além das produções já citadas, que saíram premiadas em Cannes, ele foi indicado duas outras vezes à Palma de Ouro, com os filmes Azyllo Muito Louco (1970), inspirado em O Alienista, de Machado de Assis, O Amuleto de Ogum (1974), longa em clima musical, que vasculha a cultura da religião umbanda, quando um jovem procura proteção para ter o corpo fechado a pedido da mãe e Tenda dos milagres (1977).
Já no Festival de Berlim, o diretor foi indicado ao Urso de Ouro quatro vezes. A primeira foi com Fome de Amor (1968), talvez o mais sensual trabalho de Santos, em que dois casais se envolvem em uma ilha secreta. Depois, foi a vez de Como Era Gostoso o Meu Francês (1971), longa inspirado em fatos, que mostra o poder dos Tupinambás nas negociações e embate com os colonizadores portugueses e franceses no Brasil. Em seguida, foi eleito pela competição Tenda dos Milagres (1977), adaptação da obra de mesmo nome do autor Jorge Amado, que enaltece a cultura negra popular baiana e a mestiçagem.
O último filme do cineasta a concorrer ao prêmio foi A Terceira Margem do Rio (1994), inspirado no conto homônimo do livro Primeiras Estórias de Guimarães Rosa, que conta a história de um homem que abandona a família para viver sozinho em um bote, no rio.
A boa presença em eventos cinematográficos mundiais rendeu a Pereira dos Santos uma cadeira no júri do Festival de Veneza de 1986 e em 1993.
Em 2006, quando é eleito para ocupar a cadeira 7 da ABL, o cineasta exalta os escritores que lhe serviram de inspiração, relembra sua trajetória, e faz uma breve menção ao Cinema Novo: “Participo, pois, há meio século, do processo de crescimento e afirmação do cinema brasileiro, apesar dos acidentes de percurso em suas relações imprescindíveis com o Estado. O que importa, porem, é que o cinema brasileiro atual demonstra vitalidade, potência criativa e pluralidade temática, tornando-se cada vez mais representativo da múltipla e rica cultura do país”, disse em parte de seu discurso de posse.
Filmografia de Nelson Pereira dos Santos
O seu filme “Vidas Secas”, baseado na obra de Graciliano Ramos, é um dos filmes brasileiros mais premiados em todos os tempos.
Em entrevista dada ao GLOBO em 1998, Nelson Pereira dos Santos comentou seus clássicos mais marcantes. Veja o que ele falou sobre sua obra:
‘Rio 40 graus’ (1954)
“Eu só descobri uma realidade que merecia um filme neo-realista quando me mudei de São Paulo para o Rio e entrei em contato com a favela carioca. O filme marcou o meu desligamento do Partido Comunista. Alguns dirigentes me falaram que cinema no Brasil só depois da Revolução. Eu não acreditava nisso: tinha câmera, negativo, tudo para fazer cinema.”
‘Rio zona norte’ (1957)
“Esse filme nasceu do meu convívio com o Zé Ketti (autor dos sambas dos dois filmes) no ‘Rio 40 graus’. Tinha nessa época a idéia de fazer um trilogia sobre o Rio, cujo terceiro filme seria o ‘Rio Zona Sul’. Acho que se ‘Rio 40 graus’ é influenciado por Jorge Amado, vejo este mais próximo do realismo de Lima Barreto.”
‘Vidas secas’ (1963)
“A experiência do ‘Mandacaru vermelho’ serviu muito para mim. Me fez entender melhor a luz do sertão e ver que não poderia fazer ‘Vidas secas’ da forma tradicional. Aí vem o Luiz Carlos Barreto dizendo que fotografia era Cartier-Bresson e que tínhamos que filmar o sertão com a lente nua, sem os filtros que se usavam na época. Deu certo.”
‘Tenda dos milagres’ (1975)
“Li o livro de Jorge Amado naquela época e tinha uma velha vontade de filmá-lo. Gostava da forma não dogmática com que ele tratava a religiosidade popular e a questão social. É um filme que abarca um período longo, vai do início do século até a época em que foi feito. Poderia ser mais concentrado.”
‘Memórias do cárcere’ (1983)
“Tive a ideia de filmar o livro do Graciliano logo depois do Golpe de 64, mas não houve condições. Se não fiz no início da ditadura, consegui fazer no final e o filme foi lançado na hora certa, no meio da campanha pelas diretas, como uma celebração do fim da ditadura. Quis mostrar como nossa sociedade produz ciclicamente períodos autoritários.”
‘A terceira margem do rio’ (1993)
“Era um velho projeto filmar Guimarães Rosa. Sempre quis entrar nesse universo, nessa outra visão do Brasil do interior, de um mistério que está sempre presente nas relações humanas. Isto está nos contos que adaptei, como ‘A menina de lá’, ‘Os irmãos Dagobé’. Há nestes personagens, como notou o Paulo Rónai, o convívio com leis não escritas.”
A Filmografia
1949 – Juventude (curta-metragem)
1955 – Rio, 40 Graus
1957 – Rio, Zona Norte
1961 – Mandacaru Vermelho
1962 – Boca de Ouro
1963 – Vidas Secas
1967 – El Justicero
1968 – Fome de Amor
1970 – Azyllo Muito Louco
1971 – Como Era Gostoso o Meu Francês
1972 – Quem é Beta?
1974 – O amuleto de Ogum
1977 – Tenda dos Milagres
1980 – Na Estrada da Vida com Milionário & José Rico
1982 – Missa do Galo (curta-metragem)
1984 – Memórias do Cárcere
1987 – Jubiabá
1994 – A Terceira Margem do Rio
1995 – Cinema de Lágrimas
1998 – Guerra e Liberdade – Castro Alves em São Paulo
2001 – Meu Compadre Zé Keti (curta-metragem)
2004 – Raízes do Brasil: uma Cinebiografia de Sergio Buarque de Holanda (documentário)
2006 – Brasília 18%
2012 – A Música segundo Tom Jobim (documentário)
2012 – A Luz do Tom (documentário)
Televisão
1983 – Mundo Mágico (Programa de inauguração da TV Manchete)
1984 – Na Passarela do Samba (televisão, TV Manchete)
1984 – Capiba (televisão, TV Manchete)
1984 – A Música segundo Tom Jobim (especial para televisão)
1985 – Eu sou o Samba (televisão, TV Manchete)
1985 – Bahia de Todos os Santos (Programa de inauguração da TV Bahia)
2000 – Casa Grande & Senzala (televisão)
2009 – Português, a Língua do Brasil (documentário)
*Saiba mais: RAMOS, Paulo Roberto. Nelson Pereira dos Santos: resistência e esperança de um cinema (entrevista). in: Estudos Avançados, vol. 21, nº 59 – São Paulo Janeiro-Abril/2007. Disponível no link. (acessado em 22.4.2018).
:: Filmografia. NPS. ABL.
Nelson Pereira dos Santos (*1928 +2018)
Sobre Nelson Pereira dos Santos
“Ele tinha essa visão de um homem que amava o Brasil, que amava essa terra, como poucos. E amor ao povo brasileiro, que é um povo trabalhador, esforçado, que luta todo dia. E eu acho que é isso que está nos filmes dele, esse amor que ele tem pelo país, esse amor que ele tem pela nossa gente”
– Ney Sant’anna (ator e filho do Nelson), em ‘O Globo’, 21.4.2018.
“O Nelson inventou uma maneira de fazer cinema no Brasil, todo o cinema moderno foi inventado por ele. Ele foi o primeiro a filmar a favela como um tema nobre, foi o primeiro a fazer cenas na rua como a gente precisava conhecer o Brasil. Ele inventou um cinema para o país e o país coube dentro do cinema dele. O Nelson é uma chama que não se apaga, que vai ficar permanentemente aí na cabeça de todo mundo. Ele encerra uma época, mas é uma época que se encerra com ele, mas não se encerra tragicamente. Se encerra até num momento muito bom, que os meninos estão fazendo filmes por aí. Eu acho que mesmo aqueles jovens cineastas que não viram filmes do Nelson, nos filmes dele cada fotograma tem uma influência do Nelson. A influência dele na minha obra é total, não havia escolas de cinema no Brasil na época, então, aprendíamos com ele.”
– Cacá Diegues (cineasta), em ‘O Globo’, 21.4.2018.
“O Nelson era um grande contador de histórias, talvez um dos maiores do cinema brasileiro e um dos maiores do cinema. Ele tinha um afeto e, ao mesmo tempo, um rigor com seus personagens que fazia com que os filmes dele fossem muito únicos”
– Bruno Barreto (cineasta), em ‘O Globo’, 21.4.2018.
“O Brasil perdeu um de seus maiores intérpretes. Nelson teve a ousadia dos grandes. A sua alma coincidiu plenamente com a história de nosso país. Criou uma poética do espaço brasileiro definitiva. Uma perda muito dura. Marcou a todos com a sua presença generosa e aquecida”
– Marco Lucchesi (Presidente da ABL), em ‘O Globo’, 21.4.2018.
*Com informações da Veja, Estadão e O Globo
Saiba mais sobre o cineasta Nelson Pereira dos Santos:
:: Biografia Nelson Pereira dos Santos (Itaú Cultural). AQUI!
:: Biografia Nelson Pereira dos Santos. (ABL). AQUI!
:: Nelson Pereira dos Santos. Papo de Cinema. AQUI!