sábado, dezembro 21, 2024

O lobo de Zhongshan, uma antiga fábula chinesa

“O pescador e o gênio” é um dos contos mais famosos das Mil e uma noites. Existe uma fábula semelhante antigo na China, trata-se do conto “O lobo de Zhongshan”, que consta no livro “Fábulas chinesas”. organização e tradução Sérgio Capparelli e Márcia Schmaltz. coleção v. 1018 – Porto Alegre, RS: L&PM, 2012 / diversos autores.
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Confira a fábula:
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O LOBO DE ZHONGSHAN (Ma Zhongxi)
Zhao Jianzi, um funcionário muito importante do reino de Jin, organizou uma caçada na montanha. Ao ver um lobo, perseguiu-o, acertando-o nas costas com uma flecha. Mesmo ferido, o animal continuou a fugir. Estava por perto Mestre Dongguo, um velho letrado e moísta[1], conhecido pelo seu bom coração. Ele tinha ido a Zhongshan em busca de emprego. Tinha saído bem cedo com seu burro, levando um saco cheio de livros. Ao vê-lo, o lobo, aterrorizado, deixou de correr e disse:
– Que bom vê-lo, Mestre! Sempre pronto para socorrer quem está precisando, não é mesmo? Tempos atrás, Mao Bao libertou uma tartaruga branca e depois foi ajudado por ela na hora de atravessar um rio. Mais tarde socorreu uma cobra e ela deu para ele uma pedra preciosa como forma de agradecimento. Tanto a tartaruga como a cobra não são tão delicadas quanto um lobo. Se me esconder dentro desse saco, estará me salvando a vida. E eu ficarei agradecido para sempre, assim como a tartaruga e a cobra.
Mestre Dongguo olhou para o lobo e disse:
– Se esconder um lobo fugitivo, estarei indo contra os que mandam no reino de Jin e atrairei a ira deles contra mim. Mas se você, lobo, conseguir escapar com a minha ajuda, certamente me retribuirá de alguma forma. Mas não é só isso. Mozi diz que o princípio mais importante na vida é o amor ao próximo. Só por isso vai receber uma ajuda, mesmo que signifique uma desgraça, porque não posso ir contra os meus princípios.
Mestre Dongguo tirou seus livros de dentro do saco e tentou por três vezes colocar dentro dele o lobo, com todo o cuidado, para não machucá-lo. O lobo, desesperado, disse:
– Rápido, mestre! O senhor tem que pensar logo numa solução!
Assim, o lobo encolheu-se e ficou arqueado como um porco-espinho, enrolado como uma cobra, a cabeça tão escondida como a de uma tartaruga. Mestre Dongguo seguiu então as recomendações do lobo e o colocou junto com os livros, amarrando a boca do saco bem firme e o colocando nas costas do burro.
Quando Zhao Jianzi chegou, não viu o lobo e ficou furioso. Cortou com a espada um dos eixos do carro e ameaçou:
– Quem ousar esconder o lobo terá o mesmo destino dessa roda!
Mestre Dongguo deitou-se no chão e disse:
– O seu humilde servo é muito estúpido, mas tem o desejo de realizar coisas muito importantes no mundo. Eu venho de longe e estou perdido. Como poderia saber para onde fugiu o lobo? Além do mais, lobo é um animal muito astuto. Como é que vou saber onde ele está? – Eu sou uma pessoa muito humilde. Já os lobos, são traiçoeiros e cruéis. Claro, farei todo o possível para avisá-lo se souber de alguma coisa. Mas fique sabendo: jamais eu esconderia um lobo de Vossa Excelência.
Zhao Jianzi escutou em silêncio, deu as costas e foi embora. Mestre Dongguo seguiu então na direção oposta, forcejando com o burro, porque a carga tinha ficado mais pesada.
Logo que o lobo achou que os caçadores tinham se distanciado, gritou de dentro do saco:
– Mestre, me ajude a sair de dentro do saco e tire essa flecha do meu lombo!
Pouco depois, livre, o lobo começou a gritar:
– Mestre, o senhor me salvou há pouco dos caçadores que me perseguiam e eu nem sei como agradecer.
Agora, estou morrendo de fome. Já que o senhor é seguidor de Mozi e gosta de ajudar o próximo, por que o senhor quer continuar vivendo, se sua vida pode salvar a minha?
– Como assim? Não entendi…
O lobo jogou-se então, de boca aberta e garras afiadas, sobre Mestre Dongguo. Ele, muito assustado, começou a se defender e a gritar que o lobo era muito ingrato, e os dois ficaram correndo em volta do burro.
O lobo respondeu:
– Eu não queria ser ingrato, mas pessoas como você são muito ingênuas e foram criadas para serem devoradas por nós!
O sol começou a se pôr e Mestre Dongguo pensou, nervoso:
– Está escurecendo muito depressa. Se vier a alcateia, aí é que morro de verdade.
Fez então uma proposta ao lobo:
– De acordo com o costume popular, quando a gente tem uma dúvida, deve perguntar para quem tem mais idade e experiência. Vamos então procurar três opiniões diferentes. Se acharem que eu tenho de ser devorado, você me devora. Mas se acharem que eu mereço continuar vivendo, sinto muito, não poderá me comer.
O lobo ficou feliz e seguiu com Dongguo pela estrada, à procura de quem fosse mais velho e mais experiente.
Depois de algum tempo, encontraram uma velha árvore na beira da estrada. O lobo, ávido, sugeriu que Dongguo explicasse a situação para ela. Mestre Dongguo respondeu ao lobo:
– As plantas são ignorantes. De que adianta perguntar?
O lobo disse:
– Pergunta, que ela vai responder.
Sem alternativa, Mestre Dongguo fez um gesto de reverência à velha árvore e contou o que tinha acontecido.
– Pelo que contei, acha que mereço ser comido por este lobo?
Algumas folhas, ainda verdes, começaram a farfalhar, e a árvore disse:
– Eu sou uma amendoeira. Anos atrás, quando o meu dono me plantou, só gastou uma semente. Depois de um ano, dei flores. Depois de dois anos, frutos. E depois de três, o meu tronco ficou bem grosso. E dez anos depois, dois homens não conseguiam me abraçar. Agora já se passaram vinte anos. Nesse tempo todo, meu dono e sua mulher comeram os meus frutos. Não só eles, mas também as visitas. Os criados vendiam o que sobrava no mercado. Eu fiz muito para o meu dono. Agora que envelheci, não frutifico mais. Meu dono fica bravo e me poda sem nenhum cuidado. Pensa até em me derrubar, pegar minha madeira e vender para um carpinteiro. Uma inútil como eu, quando chega na velhice, só pensa em não cair na desgraça de um machado.
“Que gratidão espera do lobo? Ilusão pensar em escapar da morte. O lobo deve te comer!”
Mal a velha amendoeira acabava de falar, o lobo veio lambendo os beiços, preparando-se para dar o bote. Mestre Dongguo advertiu-o:
– Olha, lobo, nada de quebrar promessa. Combinamos conseguir três opiniões diferentes e estamos na primeira. Nada de se apressar, achando que já tem a resposta!
O lobo ficou muito nervoso e, pouco depois, ao avistar uma velha vaca que tomava os últimos raios de sol, disse ao Mestre Dongguo:
– Essa vaca é bem velhinha. Ela pode ser a segunda da lista.
Mestre Dongguo respondeu sarcástico:
– Agorinha mesmo você me pediu que expusesse o problema para uma planta ignorante, que só me prejudicou. Agora, uma vaca? Ah, assim não dá! Vaca é apenas um animal doméstico e me nego a perguntar qualquer coisa para ela!
O lobo respondeu:
– Melhor perguntar, porque estou com muita fome.
Não tendo saída, Dongguo fez um sinal de reverência à vaca e contou do início ao fim o que tinha acontecido. No fim, perguntou se ele merecia ser comido pelo lobo.
A vaca franziu a testa, arregalou os olhos, deu uma lambida no nariz, abriu a boca e disse:
– A velha amendoeira tem razão! Quando eu era nova, os meus chifres eram do tamanho de um bicho-da-seda, mas muito fortes. Meu dono me trocou por uma faca, para que eu ajudasse os bois a lavrarem a terra. Depois os bois envelheceram, não conseguiam mais trabalhar e eu tinha de fazer todo o trabalho sozinha, arando terra a perder de vista.
“Meu dono saía pra caçar e quem é que puxava a carroça? Euzinha, aqui! Corria atrás dele, para não me perder.
“Quando ele mesmo queria arar, me tirava da canga, mas eu ia na frente, arrancando os espinhos. Eu era sua mão direita e sua mão esquerda. Eu contribuía para que não faltassem comida e roupa em casa. Eu levava e buscava as filhas e as noras nos casamentos. Era eu que pagava os impostos, transportava os grãos e enchia o celeiro.
“Antigamente, na casa do meu dono, não havia sacos de grãos sobrando. Agora, depois de pagar os impostos, ainda sobra uma porção.
“Antes, meu dono não tinha ninguém que cuidasse dele e vivia sem segurança nenhuma. Agora anda de peito aberto, balançando os braços pra lá e pra cá.
“Antes as garrafas de vinho do meu dono viviam empoeiradas. Seus lábios eram rachados, nunca tinham pousado numa taça. Agora ele mesmo faz o vinho, bebe-o em taças finas e se exibe, orgulhoso, na frente de sua mulher.
“Antigamente, ele vestia calças arregaçadas nas canelas e a sua camisa era um remendão só. Só conseguia ser amigo de pedras e de plantas. Não tinha onde colocar as mãos. Não sabia o que era saber. Agora, carrega em suas mãos livros, anda de chapéu e de cinto, todo elegante. Cada fio, cada grão, cada coisa em sua casa foram obtidos com o meu trabalho.
“O meu dono, vendo que eu já estou velha e cansada, me expulsou para esta parte solitária do descampado. Quando sopra o vento frio, meus olhos doem de tão secos. Estou sozinha e sem ninguém. Magra como um palito. Minhas lágrimas secaram. Não consigo mais controlar a saliva dentro de minha boca. Mal consigo ficar em pé. Estou perdendo pelos e ninguém passa remédio em minhas feridas.
“A mulher do meu dono é má e invejosa. Fica o dia inteiro falando pra todo mundo que eu sou um traste velho e inútil. Diz que se eu for levada para o matadouro, pelo menos podem conseguir carne seca para comer, couro para curtir, ossos e chifres para instrumentos. Vive dizendo ao seu filho: ‘Você tem curso de magarefe, por que não amola essa faca e faz o serviço?’.
“A situação para mim está feia, como pode ver. Nem sei onde vou morrer. Prestei valiosos serviços ao meu dono mas, e daí? Meu dono é um ingrato, apesar de todo o meu esforço.
“Que gratidão esperar então de um lobo? Ilusão a sua, querer escapar da morte. Se quer saber minha opinião, o lobo deve te comer!”
O lobo abriu a boca para pegar Mestre Dongguo, mas parou no meio do caminho ao ouvir:
– Calma! Pra que essa pressa toda?
Nesse momento, viu um velhinho vindo pela estrada, apoiado na sua bengala. Mestre Dongguo correu na sua direção, ajoelhou-se diante dele e disse, chorando:
– Senhor, uma palavra de sua boca pode salvar minha vida!
O velhinho quis saber o que estava acontecendo.
– Este lobo estava sendo perseguido pelos caçadores e me pediu ajuda. Ajudei. Salvei a vida dele. Agora ele quer me devorar. Eu lhe suplico, diga alguma coisa a meu favor, que ele descubra o grande erro que está cometendo.
“Como quis ganhar tempo, combinei com ele pedir outras opiniões, mas de quem tivesse mais experiência e mais idade. Primeiro, encontramos uma velha amendoeira. O lobo disse que ela devia ser consultada. Como o senhor sabe, as plantas são estúpidas, e a opinião dela quase me leva à morte.
“Depois, encontramos uma velha vaca. Os animais também são estúpidos, como o senhor sabe, e ela também achou que eu devia ser comido pelo lobo. Foi então que avistamos o senhor vindo pelo caminho. Pode, por gentileza, dizer algumas palavras justas a meu favor?!”
Ao dizer essas palavras, Mestre Dongguo bateu várias vezes a cabeça no chão, em sinal de reverência.
O velhinho, ouvindo o relato de Dongguo, deu um grande suspiro e bateu com a bengala no chão. Ele disse ao lobo:
– Você errou, lobo! Em vez de agradecer, comete essa ingratidão! E que ingratidão! Recebe ajuda e nem agradece? Devia agradecer, como diz Confúcio, agradecer quando recebe uma ajuda, dentro e fora de casa. Até tigre e lobo têm de retribuir o que receberam. Alguma vez já agradeceu ao seus pais, lobo?!
O lobo disse:
– É que o senhor não está entendendo. Melhor eu contar: há pouco, quando eu pedi ajuda para esse Mestre Dongguo, ele me amarrou as patas e me jogou para dentro do saco, empilhando livros em cima de mim. Esmagado debaixo dos livros, eu nem podia respirar. Em seguida, quando o caçador chegou, eles ficaram conversando durante muito tempo. Mestre Dongguo queria que eu morresse sem ar dentro do saco, pois assim poderia vender minha pele por um bom dinheiro. Um tipo de gente como essa não merece ser devorada?
– Eu não acredito em nada do que está falando – disse o velho. – Entre de novo no saco, pois quero saber, por mim mesmo, se você estava muito apertado junto com os livros.
O lobo aceitou alegremente e entrou de novo para dentro do saco.
– Você tem uma faca? – perguntou o velho, bem baixinho, na orelha do Mestre.
– Sim – ele respondeu, passando-lhe a faca.
Imediatamente o velho fez sinal que o Mestre enfiasse a faca no saco. Mestre Dongguo gritou:
– Se eu fizer isso, vou machucar o lobo!
O velho começou a rir:
– Você hesita em matar um animal feroz que lhe foi tão ingrato? Você é muito bom, Mestre, mas você é também muito bobo.
Em seguida, ele ajudou Mestre Dongguo a passar a faca na garganta do lobo e seguiram caminho, deixando o cadáver na estrada.
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[1] Moísta: seguidor do filósofo chinês Mozi (468?-376? a.C.) do Período da Primavera e do Outono e um dos pilares da filosofia chinesa, ao lado do confucionismo e do taoismo. Essa doutrina defende o amor entre as pessoas e a paz, bem como a recusa das coisas materiais.
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– conto “O lobo de Zhongshan” (Ma Zhongxi), do livro “Fábulas chinesas”. organização e tradução Sérgio Capparelli e Márcia Schmaltz. coleção v. 1018 – Porto Alegre, RS: L&PM, 2012 / diversos autores.

Sobre o autor da fábula:

Ma Zhongxi (1446-1512) exercia o cargo de censor na corte imperial. Chegou a ser preso por desavenças com um eunuco. Mais tarde, defendeu uma rebelião camponesa e não teve a mesma sorte de antes, vindo a morrer na prisão.

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O lobo de Zhongshan, uma antiga fábula chinesa

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