LITERATURA

‘O mistério da poesia’ uma crônica de Rubem Braga

Não sei o nome desse poeta, acho que boliviano; apenas lhe conheço um poema, ensinado por um amigo. E só guardei os primeiros versos: Trabajar era bueno en el Sur. Cortar los árboles, hacer canoas de los troncos(*).
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E tendo guardado esses dois versos tão simples, aqui me debruço ainda uma vez sobre o mistério da poesia.
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O poema era grande, mas foram essas palavras que me emocionaram. Lembro-me delas às vezes, numa viagem; quando estou aborrecido, tenho notado que as murmuro para mim mesmo, de vez em quando, nesses momentos de tédio urbano. E elas produzem em mim uma espécie de consolo e de saudade não sei de quê.
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Lembrei-me agora mesmo, no instante em que abria a máquina para trabalhar nessa coisa vã e cansativa que é fazer crônica.
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De onde vem o efeito poético? É fácil dizer que vem do sentido dos versos; mas não é apenas do sentido. Se ele dissesse: Era bueno trabajar en el Sur, não creio que o poema pudesse me impressionar. Se no lugar de usar o infinito do verbo cortar e do verbo hacer usasse o passado, creio que isso enfraqueceria tudo. Penso no ritmo; ele sozinho não dá para explicar nada. Além disso, as palavras usadas são, rigorosamente, das mais banais da língua. Reparem que tudo está dito com os elementos mais simples: trabajar, era bueno, Sur, cortar, árboles, hacer canoas, troncos.
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Isso me lembra um dos maiores versos de Camões, todo ele também com as palavras mais corriqueiras de nossa língua: “A grande dor das coisas que passaram.”
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Talvez o que impressione seja mesmo isso: essa faculdade de dar um sentido solene e alto às palavras de todo dia. Nesse poema sul-americano a ideia da canoa é também um motivo de emoção.
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Não há coisa mais simples e primitiva que uma canoa feita de um tronco de árvore; e acontece que muitas vezes a canoa é de uma grande beleza plástica. E de repente me ocorre que talvez esses versos me emocionem particularmente por causa de uma infância de beira-rio e de beira-mar. Mas não pode ser: o principal sentido dos versos é o do trabalho; um trabalho que era bom, não essa “necessidade aborrecida” de hoje. Desejo de fazer alguma coisa simples, honrada e bela, e imaginar que já se fez.
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Fala-se muito em mistério poético; e não faltam poetas modernos que procurem esse mistério enunciando coisas obscuras, o que dá margem a muito equívoco e muita bobagem. Se na verdade existe muita poesia e muita carga de emoção em certos versos sem um sentido claro, isso não quer dizer que, turvando um pouco as águas, elas fiquem mais profundas…
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— Rubem Braga, no livro “A traição das elegantes”. Rio de Janeiro: Record, 2010.

SOBRE O LIVRO
“É duro confessar isto, mas é preciso forrar o coração de dureza, porque não sabemos se tudo isso é o fim de uma era ou o começo de uma nova era mais desolada e difícil de suportar.” Em A traição das elegantes está presente o olhar de fascínio e encantamento de Rubem diante dos mistérios das moças de seu tempo, suas reflexões intimistas sobre os desacertos do coração, seu alumbramento em face das criações da natureza e suas imbatíveis divagações acerca de instantes de sua vida que ficaram guardados na memória. Em sua busca por traduzir aos leitores sua visão lírica e desprendida sobre um mundo em fervilhante transformação, o cronista concebe joias de rara beleza que integram o melhor do tesouro literário da moderna prosa brasileira.
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FICHA TÉCNICA
Título: A traição das elegantes
Páginas: 176
Formato: 13.97 x 20.83 x 1.27 cm
Acabamento: Livro brochura
Lançamento: 19/11/2019 (9ª edição)
ISBN: 978-8526024991
Selo: Global Editora
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Saiba mais sobre Rubem Braga:
:: Rubem Braga – entrevistado por Clarice Lispector
:: Rubem Braga – o caçador de ventos e melancolias
:: Rubem Braga – crônicas e contos
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(*) O poema e o poeta citado no início da crônica:
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RAPSODIA DE SAULO
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Trabajar era bueno en el sur, cortar los árboles,
hacer canoas de los troncos.
Ir por los ríos en el sur, decir canciones
era bueno. Trabajar entre ricas maderas.
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(Un hombre de la riba, unas manos hábiles,
un hombre de ágiles remos por el río opulento,
me habló de las maderas balsámicas, de sus efluvios…
un hombre viejo en el sur, contando historias).
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Trabajar era bueno. Sobre troncos
la vida, sobre espuma, cantando las crecientes.
¿Trabajar un pretexto para no irse del río,
para ser también el río, el rumor de la orilla?
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Juan Gálvez, José Narváez, Pioquinto Sierra,
como robles entre robles… Era grato,
con vosotros cantar o maldecir, en los bosques
abatir avecillas como hojas del cielo.
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Y Pablo Garcés, Julio Balcázar, los Ulloas,
tantos que allí se esforzaban entre los días.
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Trajimos sin pensarlo en el habla los valles,
los ríos, su resbalante rumor abriendo noches,
un silencio que picotean los verdes paisajes,
un silencio cruzado por un ave delgada como hoja.
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Mas los que no volvieron viven más hondamente,
los muertos viven en nuestras canciones.
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Trabajar… Ese río me baña el corazón.
En el sur. Vi rebaños de nubes y mujeres más leves
que esa brisa que me mece la siesta de los árboles.
Pude ver, os lo juro, era en el bello sur.
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Grata fue la rudeza. Y las blancas aldeas,
tenían tan suaves brisas: pueblecillos de río,
en sus umbrales las mujeres sabían sonreír y dar un beso.
Grata fue la rudeza y ese hálito de hombría y de resinas.
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Me llena el corazón de luz de un suave rostro
y un dulce nombre, que en la ruta cayó como una rosa.
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Aldea, paloma de mi hombro, yo que silbé por los caminos,
yo que canté, un hombre rudo, buscaré tus helechos,
acariciaré tu trenza oscura, un hombre bronco,
tus perros lamerán otra vez mis manos toscas.
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Yo que canté por los caminos, un hombre de la orilla,
un hombre de ligeras canoas por los ríos salvajes.
Aurelio Arturo (1906-1974) colombiano / do livro “Morada al Sur”. Univ. Externado de Colombia, 2004.

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