por Maria Clara Vergueiro* – Especial para Folha
Na primeira terça-feira de maio meu avô e eu almoçamos juntos, como fazíamos toda semana, há muitos anos. Naquele dia, a conversa começou assim: “Nasci em um mundo, me desenvolvi em um outro, e agora estou neste terceiro, que eu não compreendo, do qual não sou parte”.
Já era recorrente a queixa de que, àquela altura da vida, nenhuma das suas referências poderia perseverar. Fui cúmplice: “Eu também, Vô, não compreendo e muitas vezes não me sinto parte, inclusive porque este terceiro tem uma característica que o diferencia brutalmente dos anteriores, que é a velocidade. Também não acompanho”. Sorrimos juntos e partimos para o tema seguinte.
Todos os assuntos eram nossos, qualquer questionamento valia a pena, nenhuma inquietação pedia reserva. De uns tempos para cá, nos relacionávamos como um par sem idade, sem gênero. Eu me divertia de pensar que meu mais querido e precioso confidente era meu avô, de 98 anos. Ele, um homem, um senhor quase centenário, absolutamente atuante no topo da hierarquia familiar. Eu, uma mulher, sua neta, que ele ajudou a criar.
Confeccionávamos chapéus e espadas de jornal, comprávamos presentes nas lojas do bairro, assistíamos a toda a sua coleção do Chaplin ou do Fred Astaire em um feriado. Entrava na sua Brasília cor de vinho depois da escola, ia para o balé e, na volta, podia bater a máquina o quanto eu quisesse, fazer perguntas sobre mitologia grega para a lição de casa ou ouvir alguma das nossas fábulas, tiradas de livros italianos, dos exemplares raríssimos da sua própria infância, ou da sua imaginação. Ganhava notas de dinheiro dentro de envelopes com dedicatória. Fazíamos a barba juntos, com pincel, espuma e sem gilete. Pedi socorro e me abriguei na sua casa até o fim.
Três dias depois do nosso último almoço ele foi internado, com um problema que logo de saída me pareceu insolúvel. Foi aí que uma ideia nunca mais me abandonou: o mundo do meu avô era o meu mundo preferido e, apesar da idade avançada ser sempre prenúncio de partida, não estava de fato preparada para seguir sem ele.
Como permanecer na minha frenética dimensão sem a possibilidade de escapar para aquele universo carregado de conforto e delicadeza, que ele oferecia sempre que qualquer um de nós se dispusesse a bater na sua porta? Seria desalentador viver dali em diante, sem o bálsamo da sua palavra, dos gestos, das histórias.
Para mim, o mundo do Vovô Candido –como todas as seis netas e o único neto homem o chamam– é tecido nas linhas da memória e do afeto. Começa quando o primeiro antepassado pisa em terras brasileiras e nunca termina de ser costurado. Parte do princípio de que somos todos personagens de uma mesma história, ligados por existências múltiplas e cheias de significado, não importando se fomos barbeiros na sua pequena Santa Rita de Cássia, escravos libertos de uma fazenda esquecida do sul de Minas, influentes barões de Cerro Azul, comerciantes poliglotas ou fazendeiros de café que sonham em ser poetas. Cada um dos milhares de filhos das suas árvores genealógicas favoritas (colecionadas ao longo de quase um século) tem uma história e uma marca para ser lembrada.
Sabia de cabeça datas de aniversário, casamento e morte. Contava com riqueza de detalhes –incluindo os timbres vocais, o caminhar, os tiques nervosos– cenas reais que pareciam saídas de um dos seus filmes prediletos, que assistíamos juntos em fitas VHS e cujos diálogos decorávamos e repetíamos exaustivamente como bordões, pela vida afora.
Esse interesse tão singular pelas trajetórias fazia dele um ouvinte gentil, rico de um repertório que não estava nos livros, mas na experiência de carne e osso.
Dizia que vinha vivendo tanto porque “era um sujeito moderado”, que quase nunca se exaltava, de modo que isso devia ter-lhe conservado o coração, o sono, a consciência e, ao final, a saúde. Que, apesar de adorar a companhia dos amigos e da família, sentia-se bem quando só, com suas ideias.
Um dos funcionários do prédio em que ele viveu os últimos 20 anos fez questão de deixar claro: “Sei que o professor era muito importante. Mas o que eu queria mesmo dizer é que ele foi a pessoa mais maravilhosa que conheci, sempre tão atencioso conosco”. No mundo do meu avô a gentileza, a solidariedade e a beleza da vida são rainhas. Com seus atributos femininos, governam as leis naturais. Distribuem, ofertam, pacificam, toleram, cuidam.
Tivemos o privilégio de tê-lo na dimensão familiar, possivelmente tão exaltada nele quanto a intelectual. Mas meu avô foi além. Levou longe sua capacidade de compartilhar conhecimentos e, mais longe ainda, a nobreza das suas atitudes. Embora ele próprio não acreditasse em Céu e invejasse aqueles presenteados pela fé, tenho certeza de que o que se lhe reserva é bom, como ele. E eu, aqui neste mundo, me conforto na ideia de que tive meu Céu em vida.
* Maria Clara Vergueiro, jornalista e editora, é neta de Antonio Candido.
Fonte: Folha de S. Paulo
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