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O retorno triunfal de Stranger Things – porque a quarta temporada é provavelmente a melhor até agora, por Clarice Lippmann

ATENÇÃO: Este texto contém spoilers!!!

A série Stranger Things, criada pelos Duffer Brothers, é sucesso de público da Netflix desde seu lançamento em 2016, há seis anos. Desde então, com quatro temporadas, sendo a última dividida em duas partes, teve momentos de flutuação de qualidade, o que não afetou tanto sua popularidade.

Uma reclamação comum para os espectadores da série era a falta de inventividade para plots além das ameaças conhecidas: os perigos da dimensão invertida, ou mundo invertido, com seus monstros e criaturas predatórias que ameaçavam a vida dos moradores de Hawkins, cidade na qual a série é situada. Não havia muita novidade, e, portanto, estímulo no roteiro para que se entendesse os conflitos da série como mais graves, mais sérios, mais urgentes. E isso muda completamente na quarta temporada.

Além dos personagens estarem mais velhos e enfrentarem as provações dos traumas vividos nas outras três temporadas e típicas questões do “coming of age”, os conflitos amadurecem e se dividem do macro para o micro na nova temporada. Se a dimensão “monstruosa” que assombra Hawkins se torna mais palpável, mais agressiva e com um vilão com nome, passado e objetivos bem delineado, não mais monstros e vilões sem motivo aparente além da pura destruição, também na temporada os personagens têm de enfrentar ameaças políticas, repressões autoritárias e até mesmo mentalidade de massa persecutória dentro do próprio colégio. Como falado, do micro para o macro, ou do macro para o micro.

Do macro: as ameaças monstruosas, desde as criaturas manipuladas por Vecna, ou Henry, ou Um, à sua própria vilania e arco de corrupção trabalhados no roteiro. Introduzido apenas na quarta temporada como personagem, mas presente nas sombras desde a primeira, ele é revelado como o primeiro ser humano “superpoderoso” que acessou e colonizou essa dimensão agressiva. Uma espécie de líder das criaturas, governante dessa dimensão. Boa parte da nova temporada se dedica a isso: construir o arco de “nascimento” e desenvolvimento do grande e último vilão até o momento. A princípio, um jovem superpoderoso com uma tendência sádica desde pequeno, que compreende o ser diferente como um peso, e até uma liberdade para o mal. Tal como Eleven, Henry, Vecna ou One acaba se tornando um “rato de laboratório”, onde sofre mais violências, nas mãos do “Papa”, a mesma figura paterna que assombra o imaginário de Eleven. Seu sadismo é alimentado pelo desejo de vingança contra a sociedade que o reprimiu e tentou dominar. Conforme se afasta do que o faz humano, o vilão conspira e aguarda em desejo de vingança contra aqueles que o tolheram e limitaram, criando prazer na dominação, seguindo o ciclo do oprimido que se torna opressor. E, ao nível das aparências, parece perfeitamente pacato, gentil, talvez até inofensivo.

De maneira simultânea, a série trabalha os conflitos políticos. São os interesses norte-americanos e russos em utilizar a dimensão que Vecna governa e seus seres como arma biológica, a tentativa de sequestro e manipulação tanto do exército norte-americano quanto da KGB desses seres humanos “especiais” para servir como ferramentas de destruição, e, em escala mais particular, o roteiro também trabalha o micro: os conflitos de isolamento, rejeição e repressão que sofrem os protagonistas, por não se encaixarem nas regras, estilo, padrões e preceitos do que é “socialmente aceito”. Nerds, tímidos, introvertidos, rebeldes, vulneráveis. Humanos, mas rejeitados por viverem a diferença, e não se forçarem a se encaixar nas dinâmicas de grupo infanto-juvenis. A ironia e o carisma de Stranger Things não estão só na fantasia e estética anos 80 bem trabalhada, no senso de aventura e na amizade dos protagonistas. Estão, principalmente, nos heróis e suas jornadas ficarem sempre às sombras: à sombra do governo, à sombra de prestígios, fama, glória… À sombra do que é socialmente aceito.

Assim, na quarta temporada a série trabalha o amadurecimento dos conflitos pré-existentes: sentimento de isolamento, incompreensão e abandono dos jovens que lidaram com muita dor em pouco tempo, seja ela a nível dessas batalhas sobrenaturais, ou sofrimentos pessoais. Fala da descoberta da sexualidade (que nem sempre é heteronormativa), e, em suma, sobre a dificuldade de destoar do “padrão social”. Uma das graças do roteiro de Stranger Things sempre foi a possibilidade de se relacionar com os personagens, desde os mais socialmente aceitos, como Steve ou Nancy, por não serem inacessíveis, não serem perfeitos. E também aos considerados párias: no início, com o quarteto principal, Eleven, e Jonathan, todos os seis socialmente disfuncionais. Na segunda temporada, com o acréscimo de Max, a “menina peralta”, na terceira, Robin se junta ao grupo, como a adolescente cinéfila que esconde sua homossexualidade, e, na quarta há a adição talvez mais carismática e bem recebida de um personagem coadjuvante em Stranger Things até o momento: Eddie Munson.

Stranger Things (criação The Duffer Brothers). Quarta temporada. Netflix

Com um arco muito similar ao personagem Steve, um dos mais queridos pelos fãs do seriado, Eddie começa parecendo o líder de seu próprio grupo, em uma posição de prestígio às avessas. Se Steve era o popular que se revela sensível, Eddie é o rebelde que se revela sensível. Líder dos metaleiros, nerds, jogadores de D&D e párias sociais adolescentes, transparece de início uma aversão à responsabilidade e coragem, e age de forma brevemente antagonista aos personagens principais. Quando a ameaça de Vecna, o grande vilão da série se torna concreta, Eddie serve como bode expiatório aos crimes do vilão: simplesmente por estar no lugar errado na hora errada e pela sua fama de desencaminhado, é culpado. Isso pela facilidade que a sociedade tem de escolher culpar quem se parece “culpado”, ao invés de efetivamente se investigar autorias. A série brinca com sentimentos bastante realistas que organizam grupos sociais: mais facilmente aceitamos o esquisito como vilão do que como um igual. E, muitas vezes, os verdadeiros monstros se escondem por trás de facetas comuns, lobos em pele de cordeiro.

Tornado suspeito número um, praticamente culpado, Eddie começa sua jornada de fuga, enquanto os protagonistas investigam os verdadeiros criminosos. O senso de urgência da temporada já é colocado ali, nos primeiros episódios: algo muito ruim está acontecendo, está fora de controle, e ninguém parece ver. Assim, Eddie é obrigado a amadurecer e colaborar com o time dos personagens heróicos: não só tomando partido a favor dos personagens principais, como ele mesmo encontrando nessa escolha a sua jornada de redenção. A partir do momento em que precisa proteger Hawkins de Vecna, Eddie passa a pertencer a um grupo maior do que ele mesmo, do que seu ego, do que os traumas gerados por uma juventude sendo colocado à parte pelos atletas preconceituosos da escola. Maior do que sua relação de revolta e amargura com a sua cidade natal, que nunca acolheu bem o diferente. A salvação, relevância e inclusão dos párias de Hawkins como contexto narrativo importante do roteiro de Stranger Things recebe mais essa camada com o personagem e com essa jornada de perseguição social da quarta temporada.

Para Eddie, ter que escolher um lado para defender se torna uma questão de vida ou morte, tanto sua quanto daqueles que ama. E, assim, de coadjuvante secundário, o personagem passa a integrar o grupo principal, tendo a mesma função de “cuidador” que Steve exerce, uma espécie de responsável pelas crianças, se aproximando delas. Especialmente Dustin e Mike, com quem cria laços sólidos pelo pouco tempo de conhecimento, mas muita intimidade. Proximidade essa que apenas o risco de vida ou morte pode causar. Eddie cresce tanto na trama que é o protagonista da melhor sequência de cenas urgentes da série, durante o plano de contra-ataque dos mocinhos, que tem seu clímax quando Eddie “eletrifica” a dimensão invertida com um solo de guitarra.

Se Steve, durante as primeiras temporadas, amadurece depois de levar um fora de Nancy, Eddie amadurece de forma até mais brutal: sua única chance de inclusão e perdão social dependeria de provar que os verdadeiros criminosos à espreita vinham de uma origem não apenas humana, não de um complô, mas de um poder maior e mais agressivo, sobrenatural.

Com um desfecho amargo, a temporada aparentemente demonstra que os planos dos protagonistas não são de fato bem sucedidos: apesar de desvendarem o culpado e o enfrentarem, os heróis enfrentam severas perdas. Max e Eddie saindo os mais prejudicados, com a morte de Eddie antes mesmo de sequer conseguir limpar o próprio nome. O personagem continua sendo culpado pelo senso comum, e Hawkins se mantém em estado de perpétua paranóia e desconfiança do diferente. De certa forma, Vecna tem na manga não apenas ser tão poderoso quanto Eleven, a super heroína dos personagens principais, mas o caos paranóico: saber que a desunião provocada frente ao medo do diferente, do desconhecido e do que é difícil de aceitar é também uma forma de se manter seguro. O preconceito ocultando o verdadeiro mal que assola aquela sociedade.
Ao que tudo indica, a quinta temporada, como a final, concluirá essa história sobre o valor do diverso, o carisma do excêntrico e a coragem da imperfeição. Demonstrando que, muitas vezes, os heróis nem sempre são os mais socialmente habilidosos ou sem máculas, sem traumas e sem esquisitices. Mas sim, os mais humanos, com várias facetas, que se permitem autenticidade, coragem e resiliência.

Que o Hellfire Club siga adepto de muitos “esquisitos” valorosos, e as Hawkins do mundo real entendam, um dia, a graça de divergir.

***

* Clarice Lippmann, colunista da Revista Prosa, Verso e Arte, roteirista, assistente de direção em formação, fã de cinema e cultura pop, estudante entusiasta de filosofia e advogada.

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