– por Paula Cosme Pinto/Expresso
Kajol não se lembra sequer quantos anos tem, mas o que não esquece é o dia em que a família do marido a vendeu e foi parar a um bordel. Asma nasceu e cresceu num bordel, onde em criança já dançava para os clientes. Com 14 anos começou a sua atividade de trabalhadora sexual. Meghla tinha 12 anos quando um homem lhe prometeu um trabalho bem pago, longe da sua aldeia. Tal como Kajol, acabou por ser vendida e obrigada a trabalhar num bordel. Num país onde a prostituição é legal, as malhas do tráfico humano arrastam milhares de meninas e mulheres para os bordéis, onde são obrigadas a trabalhar gratuitamente como prostitutas até conseguirem pagar o preço que as levará, em alguns casos, ao trabalho remunerado. Um processo que para estas mulheres demorou entre 2 a 5 anos. Mas entre cenários de profunda violência familiar e de pobreza extrema, ironicamente, é nessa atividade que muitas encontram a libertação para vidas de sofrimento. Mesmo que para isso tenham de perder a sua liberdade pessoal durante alguns anos, a dignidade dos seus corpos e a oportunidade de constituírem um família dentro dos moldes aceites pela sociedade do Bangladesh.
Kajol, Meghla e Asma são apenas três das jovens mulheres retratadas no inquietante e controverso ensaio fotográfico “Os desejos dos outros”, que retrata a vida dentro de um dos mais famosos e antigos bordéis da Tangail. O sítio chama-se Kandapara, é protegido por ONG’s e alberga mais de 700 trabalhadoras de sexo, com os seus filhos. Para muitas destas crianças, este é o cenário onde nascem, crescem e aprendem a tratar a prostituição por tu. Como algo normal, um simples meio de subsistência e de fuga à miséria e violência extrema que muitas das suas mães tiveram de suportar dentro dos seus seios familiares.
A fotógrafa alemã Sandra Hoyn passou uma temporada dentro de Kandapara e o resultado é uma série de fotografias e histórias de mulheres marcadas pela dureza da vida. O sexo forçado, depois das primeiras vezes, tornou-se apenas num pormenor. Dos que não se esquecem, que doem, mas que se suportam. A verdade é que mesmo tendo sido traficadas e forçadas à atividade, uma vez trabalhadoras sexuais, nunca mais se livram do estigma e o regresso à vida dita normal dentro da sua sociedade torna-se uma miragem. Mesmo quando são vítimas de abuso sexual, são desacreditadas pela justiça. Em Kandapara encontram compreensão e sentido de camaradagem das outras mulheres. Uma comunidade de centenas de mulheres com percursos semelhantes que se aceitam mutuamente.
LEGALIDADE VS TRÁFICO HUMANO
Esta é a realidade de Kandapara, mas nem sempre é assim. Embora a prostituição apenas seja legal a partir dos 18 anos, são muitas as meninas que começam a trabalhar em bordéis com apenas 12 anos, em ambientes inenarráveis onde são sujeitas a todo o tipo de violência. Muitas nunca chegam a ser remuneradas e tornam-se escravas vida fora (estima-se que cerca de 15 mil mulheres e meninas sejam traficadas anualmente para trabalho forçado fora do país). A legalidade da prostituição torna as inspeções a estes espaços diminutas e infrutíferas, até porque entre os clientes estão muitos políticos e polícias. Todos eles querem desfrutar do que lá encontram, das liberdades com o sexo feminino que fora daquelas quatro paredes lhes é culturalmente vedado, mesmo que para isso seja preciso fechar os olhos a crimes como o tráfico humano e o trabalho escravo.
Em Kandapara, muitos procuram sexo, mas há também quem – garante Sandra Hoyn – procure apenas companhia para um chá. Outros procuram amor. Se isto nos pode parecer a nós uma solução óbvia para a vida de muitas destas mulheres, para elas não é bem assim. As que recebem propostas de casamento tendem a recusá-las: depois de passado o martírio inicial do trabalho escravo às mãos das “madames” que gerem este bordel, a partir do momento em que podem ter voz ativa quanto aos clientes que recebem e se tornam autónomas economicamente, nunca mais querem deixar de o ser. Não podemos esquecer que foi precisamente graças à dependência financeira de outrora que grande parte destas mulheres ali foram parar. A sociedade fortemente patriarcal a isso incita, com as ‘mulheres de família’ eternamente afastadas do mercado de trabalho e da independência financeira. Se o preço a pagar por essa independência é o corpo, que assim seja. Por mais atroz que possa ser, é o único caminho para a liberdade que muitas encontraram num país onde uma mulher ainda pode ser vendida como um saca de batatas.
O trabalho de Sandra Hoyn foi finalista dos LensCulture Portrait Awards 2016 e pode ser visto AQUI.
Fonte: jornal Expresso