sexta-feira, novembro 22, 2024

Os ensinamentos dos antigos mestres em 9 belas fábulas chinesas

A fábula é um dos tesouros dos primórdios da humanidade. Gênero literário popular, tem origem em histórias transmitidas oralmente, de geração a geração – até que um ou mais escritores decidem registrá-las e dar-lhes uma forma definitiva. São histórias de vários estilos, registradas por diversos autores que eram também poetas, mandarins, historiadores, sábios em geral, nas quais se evidenciam traços da cultura da China e uma sabedoria popular milenar.

Fábulas extraídas do livro “Fábulas chinesas”. organização e tradução Sérgio Capparelli e Márcia Schmaltz. coleção v. 1018 – Porto Alegre, RS: L&PM, 2012 / diversos autores.

As 9 fábulas chinesas aqui selecionadas nos levam a uma extraordinária viagem ao mundo das palavras dos grandes mestres da antiga China. São pequenas histórias que contêm grandes ensinamentos de sabedoria e reflexão. boa travessia!

DOIS MONGES (Peng Duanshu)
Na região de Shu[1] viviam dois monges, um rico e um pobre.
O monge pobre propôs ao monge rico uma peregrinação a Nanhai[2]. O monge rico achou a ideia interessante, mas queria saber o que deveriam levar. O monge pobre respondeu que seria necessário levar apenas uma garrafa para a água e uma tigela.
– O resto eu peço pelo caminho.
O monge rico respondeu:
– Faz anos que eu penso em realizar essa viagem. Já comprei até um barco. Mas até agora não consegui tomar todas as providências necessárias para essa longa peregrinação. Como é que você, com apenas uma garrafa e uma tigela, vai conseguir?
Um ano depois, o monge pobre retornou de Nanhai e foi visitar o monge rico.
O monge rico ficou envergonhado.
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[1] O reino de Shu era um dos Três Reinos (220-280) e se localizava na atual província de Sichuan, no centro da China.
[2] Nanhai: designação da região das águas e das ilhas do rio Yangzi onde está situada a montanha sagrada budista Putuo, localizada na atual província de Zhejiang.

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AMOLANDO UMA BARRA DE FERRO (Chen Renxi)
Quando era pequeno, o grande poeta Li Bai[1] não gostava de estudar. Um dia encontrou uma senhora idosa na calçada, amolando uma barra de ferro. Ele ficou curioso e perguntou o que ela pretendia fazer.
– Pretendo amolar essa barra de ferro até que ela vire uma agulha bem fina, para que eu possa costurar um vestido – respondeu ela.
Após isso, Li Bai compreendeu o que ela estava querendo dizer e, mais tarde, tornou-se um grande poeta.
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[1] Li Bai (701-762), considerado o maior dos poetas chineses da dinastia Tang. Desde muito pequeno chamava a atenção de todos pela sua inteligência e dedicação aos estudos. A partir dos 25 anos de idade, percorreu toda a China. Exerceu o cargo de mandarim por um ano, mas logo o abandonou, devido às disputas de vaidades na corte.

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UMA FOLHA EM TRÊS ANOS (Liezi)
No Estado de Song um homem reproduziu em marfim uma folha de amoreira para dar de presente ao rei. Ele levou três anos nesse trabalho. O resultado foi uma folha maravilhosa, delicada nos traços, cores finas e brilhantes. Quando alguém a colocava junto com outra de verdade, ninguém conseguia distinguir uma da outra, de tão perfeita. Esse homem recebeu o pagamento do governador de Song por tamanha perfeição.
Ouvindo isso, Liezi disse:
– Se a Mãe Natureza precisar de três anos para fazer uma folha, tudo aquilo que tem folhas vai ser tornar uma raridade. Por isso, o sábio deve se apoiar na sabedoria da natureza, e não na inteligência dos homens.

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O SONHO DO CAÇADOR (Liezi)
Um lenhador de Zheng viu um veado no campo e o matou com um tiro. Com medo de ser pego, ele escondeu o veado sob folhas de bananeira. E foi embora contente.
Pouco depois ele se esqueceu do lugar onde tinha escondido o veado e pensou que o episódio tivesse sido um sonho. A caminho de casa, começou a conversar sozinho, falando alto sobre esse sonho. Quando falou mais uma vez, um carroceiro que vinha passando escutou suas palavras e imaginou onde o veado podia estar escondido. Logo encontrou o veado e o levou para casa.
Esse carroceiro falou para a sua mulher:
– O lenhador sonhou que tinha matado um veado e havia esquecido o lugar onde o tinha escondido. Eu então achei o veado. Neste caso, o sonho deve ser verdadeiro.
Sua mulher disse:
– Existia de fato um lenhador? Ou você sonhou com um lenhador? Embora você tenha agora o veado, isso não significa que o sonho seja verdadeiro.
O carroceiro respondeu:
– Eu tenho o veado. Não me interessa qual dos sonhos é verdadeiro, o dele ou o meu, o veado é verdadeiro.
Acontece que o lenhador tinha ido para casa muito triste por ter perdido o veado.
Naquela noite ele teve um sonho. No seu sonho apareceu o carroceiro que o tinha escutado enquanto ele falava sozinho e que, no fim, havia encontrado o veado.
Na manhã seguinte, seguindo seu sonho, ele achou esse homem e o veado. Levou então os dois ao juiz, esperando uma sentença favorável, que possibilitasse a ele recuperar o veado.
O juiz disse:
– Primeiro o lenhador matou o veado, mas pensou que fosse um sonho. Depois ele sonhou que tinha matado o veado e acreditou que isso fosse real. Ele encontrou o carroceiro que vinha passando e que pegou o veado real e, agora, acusa esse mesmo carroceiro, para recuperar seu veado. Como dizer que o carroceiro não pegou o veado do sonho de outro homem e sim do sonho do lenhador? Logo, o veado não é de ninguém. O veado está aqui e é real. Melhor então dividi-lo entre os dois.
O juiz achou o caso muito difícil e apelou ao rei Zheng. Este, sorrindo, fez a seguinte observação:
– Bom, pelo jeito vão dizer que o juiz sonhou com uma divisão do veado. Acho que esse caso deve ser levado ao conselheiro-mor.
O rei Zheng mandou o caso para o conselheiro-mor. Não demorou muito, veio a resposta:
– Não sei dizer se esse caso é sobre sonho ou realidade. E apenas sábios como Huangdi[1] ou Confúcio[2] podem diferenciar sonhos de realidade. Como os dois já morreram, recomendo que siga a sentença do juiz.
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[1] Huangdi: lendário primeiro imperador chinês, que teria vivido antes de 2100 a.C.
[2] Confúcio (551-479 a.C.): filósofo e educador, fundou uma escola homônima que é a base da cultura chinesa. Defendia a benevolência, o amor filial, a lealdade e a justiça. Teve mais de três mil alunos. A sua obra está reunida em um volume intitulado “Analectos”. Viveu no período da Primavera e do Outono.

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O PINTOR DE FANTASMAS (Han Feizi)
Um dia o príncipe de Qi chamou um dos pintores que estavam trabalhando para ele.
– O que é mais difícil de pintar?
– Cachorros e cavalos são os mais difíceis.
– E o que é mais fácil?
– Fantasmas e monstros – disse o artista. – Cachorros e cavalos nos são familiares. A toda hora vemos um, seja de dia, seja de noite. Porém, é difícil pintá-los do jeito que eles são. Já os fantasmas e monstros não têm uma forma definida, e ninguém nunca os viu. Por isso são mais fáceis de serem pintados.

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A CORÇA E O TIGRE (Liu Ji)
Um tigre caçava uma corça, mas ela fugiu pulando e gritando na direção de um precipício. Ela pulou. O tigre também. Ambos morreram.
Yulizi[1] fez um comentário:
– A corça precisava pular, pois, tendo o precipício na frente e o tigre atrás, não havia outra saída. Se a corça voltasse, seria devorada. Se pulasse no precipício, haveria uma pequena chance de se salvar, o que, em último caso, seria melhor do que ser devorada pelo tigre. Já o tigre, poderia parar ou seguir adiante, dependendo de sua vontade.
– Então, por que ele escolheu pular e morrer junto com a corça?
– Se a corça não tivesse pulado, o tigre não teria morrido. Isso mostra a estupidez do tigre diante da habilidade da corça. Os que são despóticos e avarentos como os tigres bem que poderiam aprender essa lição.
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[1] Yulizi é o pseudônimo do escritor Liu Ji (1311-1375). Em “Os autores”, no fim deste livro, há uma nota sobre ele.

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O USO DAS METÁFORAS (Liu Jingshu)
O rei Liang[1] havia proibido as parábolas, e Huizi era um sábio conhecido por usá-las quando queria explicar alguma coisa.
Um hóspede do rei comentou:
– Huizi é um sábio porque sabe explicar os fatos utilizando as parábolas de maneira apropriada. Se Vossa Majestade proibir o uso delas, Huizi não poderá mais falar.
O rei ficou pensativo e, no dia seguinte, em audiência com Huizi, disse-lhe:
– Daqui para frente, você, meu conselheiro, deverá falar direto, sem rodeios e meias palavras.
Huizi respondeu:
– Suponhamos que um homem não saiba o que seja uma catapulta e que ele me pergunte que forma ela tem. O que respondo para ele? Que a catapulta tem a forma de uma catapulta? Acha que ele vai entender?
– Claro que não – respondeu o rei.
– Mas suponhamos que alguém diga a esse mesmo homem que uma catapulta tem a forma de um arco, com uma corda feita de bambu, e que é uma máquina de guerra para atacar um alvo com grandes pedras. Nesse caso, acha que ele me entenderia?
– Sim, você estaria sendo claro.
Huizi concluiu:
– Parábola ou metáfora nada mais são do que explicar alguma coisa ou assunto difícil por meio de um exemplo que a outra pessoa conhece, facilitando o entendimento e a compreensão. Se eu não posso utilizá-las, como poderei explicar algum assunto ou coisa para Vossa Majestade?
O rei Liang pensou um pouco e depois concordou com Huizi.
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[1] Liang: um dos feudos da dinastia Zhou (1100-221 a.C.), que mudou de nome para reino de Wei, um dos Três Reinos.

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A RAPOSA E O TIGRE (Liu Xiang)
Um tigre agarrou uma raposa na floresta e decidiu matá-la para comê-la no almoço. A raposa, muito esperta, disse ao tigre:
– Se eu fosse você, não me comeria. Sou uma enviada do Imperador do Céu para ser o rei dos animais. Ele vai ficar muito desgostoso ao saber que você me matou por causa de uma simples refeição.
O tigre exclamou:
– Ah, é?!
– Se duvida do que estou dizendo, vem atrás de mim, vamos passear na floresta. Vai notar que os animais ficarão aterrorizados ao me verem.
O tigre aceitou a proposta.
Os dois foram para a floresta, a raposa na frente, o tigre logo atrás. Em pânico, todos os animais fugiam. O tigre ficou espantado. Ele não percebeu que os animais fugiam dele, e não da raposa.

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A FORÇA E A SABEDORIA (Liu Ji)
Yulizi diz que a força do tigre é, sem dúvida alguma, superior à do homem. O tigre possui garras e dentes afiados e fortes, e o homem não. Logo, é natural que o homem seja devorado pelo tigre. Contudo, é raro se ter notícia de homem devorado por tigre, mas é frequente encontrar tapete de tigre nas casas.
O que acontece?
O tigre usa a força, enquanto o homem usa a inteligência. O tigre possui apenas garras e dentes afiados, enquanto o homem maneja armas. A força é equivalente a um, mas a inteligência é equivalente a cem. O tigre atua sozinho, enquanto o homem atua em grupo. Um tigre sempre perderá, caso lute contra cem homens, mesmo sendo feroz. Um homem só será alimento de tigre se for impedido de usar a sua inteligência ou de usar as suas armas.
Por isso é que se diz que um homem que usa apenas a sua força e não a sua inteligência, ou atua sozinho e não em grupo, é considerado um tigre. Então, por que não usar as peles dessas pessoas nas casas, como tapetes?

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Sobre os autores das fabulas acima:

Peng Duanshu (1699-1779) foi mandarim com o cargo de historiador e depois prefeito. Mais tarde retirou-se da vida pública para estudar chinês antigo, tornando-se um erudito muito considerado. Os seus escritos foram reunidos no livro intitulado Baihetang.

Chen Renxi (1581-1636) foi compilador histórico da antiga Academia Imperial Chinesa.

Liezi (séc. III a.C.): o seu nome era Lie Yukou. O sufixo zi em chinês indica sinal de deferência aos sábios. Ele viveu no período dos Estados Combatentes e viveu no reino de Zheng. Fazia parte da corrente filosófica taoista. A sua doutrina valorizava a simplicidade e a exploração autossustentável do meio ambiente. O período de autoria de seus livros até hoje suscita discussão.

Han Feizi (280?-233? a.C.) era um grande pensador, político e legislador do período dos Estados Combatentes. Nasceu em uma família nobre do reino Han, localizado entre o leste da atual província de Shanxi e o noroeste da província de Henan. Defendia uma forte reforma do Estado. Seus inimigos atribuíram-lhe crimes que ele não havia cometido. Foi incriminado, preso e se matou na prisão.
A sua obra foi reunida num livro chamado Hanfeizi, em que utiliza fábulas e parábolas para defender a sua doutrina jurídica. As suas fábulas e parábolas têm um fundo histórico, com uma linguagem objetiva, argumentos fortes e sem poupar ninguém.

Liu Ji (1311-1375) era mandarim na dinastia Yuan (1271-1368) e teve de abandonar o cargo por ter dado apoio ao general Zhu Yuanzhang, que se tornou o imperador fundador da dinastia Ming (1368-1644). Exerceu o cargo de ministro da Astronomia e recebeu o título de Conde da Sinceridade. Quatro anos mais tarde, caiu em uma armadilha armada por outros mandarins e morreu de desgosto. Deixou o livro Conde da Sinceridade, e no pseudônimo do autor “Yulizi” reúne as fábulas que exerceram grande influência nas gerações posteriores.

Liu Jingshu (390-470) exerceu o cargo de mandarim na corte imperial, mas afastou-se da vida pública por motivo de saúde. As suas narrativas geralmente envolvem o sobrenatural.

Liu Xiang (77-6 a.C.) era descendente de nobres. Foi preso duas vezes, por críticas políticas. Exerceu o cargo de mandarim sênior, responsável pela reorganização da Biblioteca Imperial, realizando a primeira catalogação e compilação de livros da China, após a queima de livros feita pelo imperador Qin (221-206 a.C.). Foi um grande divulgador da doutrina confucionista e escreveu vários livros, entre eles Estratégias de guerra e Ditos sutis. Nesta seleção participa com “O rei Dragão que virou peixe”, “A conclusão do príncipe de Wu”, “A coruja que queria mudar de casa”, “A raposa e o tigre”, “Uma questão de vida ou de morte”, “Tigre versus tigre” e “A direção errada”. Estratégias de guerra é o livro mais conhecido de Liu Xiang. Nesse livro, ele registra em prosa os fatos históricos e acontecimentos ocorridos de 475 a.C. a 221 a.C., tendo como base as estratégias e opiniões expressas por conselheiros da época. Acredita-se que tais estratégias e opiniões tenham sido reunidas num volume de 33 capítulos entre o final do período dos Estados Combatentes até as dinastias Qin e Han (221 a.C. a 220 d.C.). A obra ficou perdida durante um longo tempo, sendo recuperada na dinastia Song (960 d.C. a 127 d.C.), numa versão que chegou até os dias atuais. As fábulas e as parábolas têm uma linguagem objetiva e realista, na intenção de obter resultados imediatos.
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Do livro “Fábulas chinesas”. organização e tradução Sérgio Capparelli e Márcia Schmaltz. coleção v. 1018 – Porto Alegre, RS: L&PM, 2012 / diversos autores.


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