A sociedade brasileira priva as crianças de direitos que são essenciais para o desenvolvimento na infância
“O verdadeiro caráter de uma sociedade é revelado pela forma como ela trata suas crianças”. A frase de Nelson Mandela foi escolhida pelo pediatra Daniel Becker, especialista em homeopatia e mestre em saúde pública na área de promoção da saúde, para falar sobre algumas injustiças que nós, enquanto sociedade, estamos cometemos contra as crianças mesmo sem perceber.
O pediatra brasileiro, que participou da organização Médicos Sem Fronteiras em campos de refugiados na Ásia e esteve a trabalho em mais de 23 países, resumiu em 22 minutos de palestra (TEDx Laçador, em Porto Alegre) o que tem acontecido cada vez mais entre as crianças do nosso país: o descaso com a infância, a terceirização da criação das crianças e os maus hábitos de consumo que prejudicam a saúde física e emocional dos nossos filhos.
Dr. Daniel Becker enumerou uma lista de sete pecados capitais que cometemos contra a infância:
De acordo com o pediatra, a cesárea é um avanço da medicina ginecológica e salva vida da mãe e do bebê em muitos casos. No entanto, no Brasil o número de cesáreas ultrapassa muito o recomendado pelas organizações mundiais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS). “92% dos partos no Rio de Janeiro são cesáreas”, diz Daniel. Alguns estudos já provam que crianças nascidas de cesárea têm mais chances de serem prematuras e de terem problemas respiratórios ou alérgicos.
O mesmo acontece com a questão da amamentação. Muitas mulheres querem amamentar seus filhos até os seis meses, o mínimo recomendado pela OMS, mas não conseguem seja porque precisam voltar logo para o trabalho ou porque começam a dar fórmulas prontas para as crianças muito cedo, alega o pediatra. Acontece que a amamentação faz bem tanto para a mãe quanto para os filhos, previne doenças, fortalece a imunidade e ainda cria um laço entre mãe e filho que vai durar para sempre.
Muitas vezes, por causa da correria do dia a dia, as crianças passam mais tempo em creches ou com as babás do que com os próprios pais e irmãos. Claro, muitos de nós precisamos voltar a trabalhar, mas tirar algumas horas do dia para ficar com nossos filhos é fundamental. “O convívio é aquilo que nos dá a intimidade, a capacidade de estar junto, o amor, a sensação de conhecer alguém e estamos perdendo isso por causa da terceirização da infância”, explica Daniel Becker.
Por causa da correria do dia a dia, a gente acaba deixando de lado a comida feita em casa, feita com amor e bem temperada e optando pelos pratos prontos, congelados, que só precisam ser aquecidos no microondas. Na hora da emergência, não tem problema nenhum. Isso começa a ser um problema quando as comidas congeladas deixam de fazer parte da exceção e se tornam um hábito. São alimentos ricos em gordura, sal e açúcar. Por isso, Daniel declara: “Obesidade e diabetes estão explodindo na infância”. Além disso, muitas vezes mesmo os alimentos que achamos que são naturais podem estar cheios de agrotóxicos, já que no Brasil não existe uma preocupação tão grande com esse problema. “Nós somos os campeões mundiais em consumo de agrotóxicos”.
As crianças de hoje passam até oito horas por dia em tablets, celulares, televisões e computadores. São oito horas conectadas com aparelhos eletrônicos que impede que elas tenham um momento de tédio para criarem e soltarem a imaginação. “O tédio e o vazio são berço daquilo que é mais importante para nós, a criatividade e imaginação. Nós estamos amputando isso dos nossos filhos”.
E o mais preocupante é que esse exagero de tecnologia é muitas vezes incentivado por nós, mesmo sem a gente perceber. Claro, nada impede que seu filho brinque de vez em quando com alguns jogos eletrônicos, o problema é deixar as crianças o tempo todo vidradas em uma tela pequena enquanto poderiam estar lá fora brincando. “Ganha muitos presentes quando o que a criança precisa é presença”.
Estar sempre na frente da televisão acaba expondo as crianças a todo tipo de publicidade que incentivam o consumismo. De acordo com Daniel Becker, essa publicidade se aproveita do que há de mais vulnerável nas crianças: “Essa publicidade é covarde, explora a incapacidade da criança de distinguir fantasia de realidade, explora o amor dela por personagens e instiga nela valores como consumismo obsessivo, hipervalorização da aparência e a futilidade”.
Muitas propagandas usam as crianças de forma erotizada para vender diversos produtos, de acordo com o pediatra. Essa erotização é baseada no machismo, na objetificação das meninas e das mulheres e na valorização excessiva da aparência. Crianças que são objetificadas desde cedo têm grande chance de ter contato com o sexo mais cedo do que é ideal, antes mesmo da maturidade sexual física.
Muitos de nós, pais, para compensar a ausência por causa do trabalho de horas a fio, tentamos agradar nossos filhos de todas as formas e acabamos perdendo a autoridade sobre eles. Acontece que as crianças precisam de um adulto que as guiem, que as ensinem o que é certo, o que é errado e o que elas precisam fazer. “A gente sabe que a importância dos limites do não são formas fundamentais de amor. A gente precisa dar limites para os nossos filhos, mas a gente tá perdendo essa capacidade”, conclui Daniel Becker.
Além disso, muitas crianças hoje em dia tomam remédios fortíssimos contra doenças como hiperatividade, TDAH, transtornos diversos e outros quadros clínicos que muitas vezes nem existem. “O que vemos não é uma epidemia de doenças, é um massacre contra a infância”, afirma o especialista.
É claro que sim! As crianças só precisam de dois fatores fundamentais para crescerem felizes e saudáveis, todo o resto, de acordo com Daniel Becker, deriva deles: tempo e espaço. O tempo, que hoje em dia é nosso bem mais precioso, deve ser dedicado aos nossos filhos. Isso implica em passar uma ou duas horas por dia com a criança, para ouvi-la, brincar com ela, estabelecer um laço e se emocionar com cada conquista dela.
O espaço tem a ver com qualidade de vida: imagine um lugar no qual você gostaria de morar para criar seus filhos. Com certeza esse lugar tem praças, muitas árvores, ar puro e espaço de sobra para as crianças correrem e brincarem. Isso porque a natureza é muito importante para as pessoas, principalmente para as crianças. Um lugar saudável para as famílias é um espaço onde a saúde e a sustentabilidade caminhem de mãos dadas.
“O convívio com o espaço aberto vai afastar a gente das telas, vai reduzir o consumismo e o materialismo excessivos, vai promover o livre brincar, vai gerar convívio entre as famílias, vai promover o contato com o ar, o sol e o verde e vai reduzir todos os problemas da infância”, diz o pediatra.
* Originalmente publicado em revista Pais e Filhos.
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