A turma era apaixonada pela Livia. Todos os cinco. Livia lhes ensinara o “twist” e o beijo de língua. Livia usava brincos numa orelha só. Livia fora a primeira a fumar maconha e fazer tatuagem. Era Livia quem dizia o que eles deveriam ler, pensar e fazer, e não fazer. Foi da Livia a ideia do pacto de sangue para unir a turma até a morte. Seria um corte na palma da mão, depois decidiram que um corte num dedo produziria o mesmo efeito e não prejudicaria o desempenho da Livia no violoncelo. Um cortezinho no dedo, depois apertos de mão entre todos, finalmente seis mãos entrelaçadas num só nó sangrento, e o grito da Livia, “Até a morte!”. Mas o ritual acabara assustando em vez de unir mais a turma. O Maurinho, por exemplo, declarara que ficara nervoso com o sangue, que a Livia estava querendo puxar a turma para um lado escuro, que aquela coisa de líder e discípulos estava ficando séria demais, que eles não eram, afinal, apenas “a turma da Livia”, como os chamavam na escola, obrigados a seguir suas loucuras. Depois do pacto os cinco começaram a se distanciar, da Livia e uns dos outros. Continuavam indo a todas as apresentações de violoncelo da Livia e depois se reunindo no bar do seu Antonio, onde a Livia tomava cerveja preta com grapa para, como ela dizia, trazer de volta à Terra o espírito elevado pela música antes que ele evaporasse nas alturas. E a cara dos cinco ouvindo a Livia tocar violoncelo continuava sendo de adoração. “Embasbacados” era como o Lorival os descrevia. Os embasbacados da Livia. Mas o domínio da Livia sobre eles estava indo longe demais. O Maurinho foi o primeiro a desaparecer por completo depois do pacto de sangue. O Magro, o último. Suspeitava-se que o Magro era o único da turma que transara com a Livia e foi ele o último a acompanhar suas apresentações de violoncelo e depois ir beber, só os dois, no bar do seu Antonio, onde uma noite a Livia lhe dissera “Você também está dispensado”, decretando o fim oficial da amizade eterna. No fim não ficara nada da amizade, nem um vestígio, nem uma cicatriz, já que não tinham cortado a palma da mão. Foi cada um para um lado, sem saber que caminho obscuro levara Livia para longe deles, para outro Universo. Um dia, anos depois da formatura, anos depois do pacto, Maurinho encontrou-se com o Magro por acaso e perguntou se ele sabia por onde andava a Livia. O Magro não sabia. Não via mais nem seu nome no noticiário da música na cidade. Livia volatizara-se. Os dois brindaram a Livia batendo suas xícaras de cafezinho e dizendo “Linda!” “Linda!”. E que fim teria levado o resto da turma? Maurinho se comprometeu a reuni-los, se conseguisse localizá-los, para relembrar os velhos tempos. Talvez alguém tivesse notícia da deusa desaparecida. A verdade era que ninguém sabia muito a respeito dela mesmo quando se viam todos os dias. Ela era linda, ela lhes ensinava tudo o que sabia e eles não sabiam, mas nunca convidara a turma a subir ao seu apartamento quando iam buscá-la ou levá-la em casa, nem contara muito da sua família e da sua vida quando não estava com eles. Não sabiam onde ela conseguia maconha, e de onde tirava os livros que emprestava a quem prometesse lê-los e devolvê-los. Ela não contava e eles não perguntavam. Todos se contentavam em adorá-la sem fazer perguntas. Livia era Livia, as divindades não precisam contar os detalhes banais da sua existência. As divindades não precisam ter vida doméstica. Depois do encontro com Maurinho, Magro decidiu fazer o que deveria ter feito antes, investigar o desaparecimento da Livia, o que seria um pouco como investigar seu próprio passado. Estava entre empregos, tinha tempo de sobra. Ele também se assustara com o ritual de sangue, com o caminho que estava tomando aquela amizade, com a profundeza para a qual a Livia parecia querer atraí-los. Agora, anos depois, poderia encontrar a Livia sem medo, conviver com o mito sem o perigo de ser tragado pelo sumidouro. Procurou o edifício em que Livia morava. O porteiro ainda era o mesmo e se lembrava, sim, deles e da dona Livia, que vivia no quarto andar com o pai e a mãe. A mãe, dona Vitória, tocava piano. A mãe se suicidara. O pai, o porteiro não sabia. O seu José raramente saía de casa. Depois da morte da mulher tinha se mudado. Deixara tudo no apartamento do quarto andar, inclusive o piano da mulher. Mas não os livros, que levara para o novo endereço, caixas e caixas de livros. Não, o porteiro não sabia qual era o novo endereço. A dona Livia? O porteiro também nunca mais a vira. Gostava dela, apesar das suas esquisitices, das suas roupas malucas, dos brincos numa orelha só, do véu rendado que cobria o seu rosto quando ela saía à rua depois da escola. Magro deu uma risada. O véu! Ele se esquecera do véu. Quando Maurinho conseguiu reunir a turma, menos o Lorival, que fora viver em Curitiba, a primeira coisa que o Magro perguntou foi se todos se lembravam do véu.
— O véu! O que era mesmo que ela dizia? Que era para proteger não o seu rosto do sol, mas os outros da luminosidade do seu rosto. Uma luminosidade de santa.
— Dizia que não queria queimar a retina de ninguém.
— Agora estou me lembrando, ela dizia que tinha saído de um quadro do, como era mesmo?
— Boticelli. Era uma virgem luminosa do Boticelli.
— Metade do que ela dizia eu não entendia.
— Mas ela era linda.
— Ah, era.
— E você, Magro? Dormiu com ela ou não dormiu?
— Tá doido.
— Conta, Magro.
— Não pintou nada. Eu sou louco?
O Magro poderia dizer que chegara à beira do sumidouro, mas recuara. Não era louco.
— E vocês se lembram do pacto de sangue?
— O pacto de sangue… Até hoje eu não entendi o que ela queria com aquilo.
— O que ela esperava de nós…
O Magro contou que na última vez em que estivera com Livia ela dissera que ele estava dispensado. Tinha a permissão dela para também desaparecer, como os outros. Se a “turma da Livia” tinha uma missão a cumprir, tinha fracassado. Estavam todos dispensados. Livia desistira deles.
— Que fim terá levado?
Magro contou o pouco que sabia. O suicídio da mãe pianista, as caixas e caixas de livros do pai. E só. Também fracassara como investigador. Por ironia, foi Maurinho, o primeiro desertor, quem descobriu onde estava Livia. Por acaso. O primo de uma técnica em enfermagem que trabalhava numa clínica psiquiátrica contara que na clínica havia uma louca que tocava um violoncelo imaginário, e poderia ser a Livia. Alguém deveria ir visitá-la, para ter certeza. Só o Magro se animou. A clínica ficava num antigo casarão pintado de verde. Mesmo depois de tanto tempo, o Magro reconheceu o perfil da Livia, sentada perto de uma grande janela numa sala vazia e ensolarada. Não teve um choque com sua velhice, com seus cabelos desgrenhados ou com seu camisolão branco de tecido barato. Mas quase parou, emocionado, quando ela virou o rosto e viu que ele se aproximava, e sorriu — o sorriso era o mesmo! — e disse seu nome: “Felipe!” Ela se lembrava do seu nome! Ele curvou-se para beijá-la mas não conseguiu dizer uma palavra. Ela segurou sua mão e perguntou: “Como vão vocês?” Ele ainda demorou antes de poder dizer “Bem, bem” e depois mentir: “Todos mandam lembranças.” Depois ele foi buscar uma cadeira para sentar-se ao seu lado e ela pegou sua mão entre as suas outra vez e repetiu: “Felipe!” E disse que ele decididamente não podia mais ser chamado de Magro, e os dois riram, e o Magro teve que se controlar para que a risada não desandasse em choro. Perguntou se ela estava sendo bem tratada, se estava bem, se precisava de alguma coisa, e ela respondeu que estava ótima. Que tinha tudo que precisava. E tinha a sua música.
— Seu violoncelo está aqui?
— Não. Eles não deixaram. O que não quer dizer que eu não toque todos os dias.
E quando acabou de rir, ela disse:
— Até formei um quarteto de cordas. Ensaiamos sempre. Cada um com seu instrumento invisível, imagine só. Não é uma coisa de louco?
— São todos músicos?
— Não! A única música nesta casa sou eu. Os outros só fingem. Mas estamos progredindo. Vamos até dar um recital. Música para surdos, o que você acha? Vamos tocar exatamente o que Beethoven ouvia: nada. A sua música interna, a música da sua cabeça, um silêncio inconspurcado por sons. In-cons-pur-cado. O que você acha? Música sem a música para atrapalhar.
O Magro embasbacado.
Ela continuou:
— Lembra dos últimos quartetos de corda do Beethoven? Ninguém entendia o que ele queria dizer com aquilo, com aquela confusão, aquela quase cacofonia. Eu estou lhe aborrecendo?
— Não, não. Eu…
— Era diferente de tudo que Beethoven tinha feito até então. Ninguém entendia. Um pouco como o véu preto que eu usava para tapar o rosto, lembra? O que era aquilo? Loucura, só loucura. Era o que todo o mundo pensava.
— Nós não.
— Vocês também.
— Nós só achávamos… estranho.
— Era o que todo o mundo pensava dos últimos quartetos de Beethoven. Uma excentricidade. Uma coisa que não era para ser entendida, a não ser por ele mesmo, na sua reclusão de surdo. Mas não era isso. Os críticos também se enganaram. Mais tarde disseram que Beethoven estava, conscientemente, mudando o rumo da música. Que estava inaugurando a música moderna. Que o Beethoven dos últimos quartetos era o precursor direto de Schoenberg, de Stravinski, de Bela Bartok. E não era nada disso. Os quartetos não estavam começando nada, estavam terminando. Beethoven estava não só acabando com o período clássico como dizendo que a música racional não tinha mais para onde ir, que a própria racionalidade chegara ao fim. Ele mesmo não tinha mais para onde ir no mundo, a não ser para o seu exílio interior, para a sua loucura. A verdade é que os últimos quartetos de Beethoven não foram os últimos. Foram os penúltimos. Os últimos são os que nós tocamos. Ou fingimos que tocamos. Você quer ouvir?
— Como?
— Fique aqui. Daqui a pouco vamos ensaiar. No fim do dia. Agora me conte de vocês…
Naquela noite o Magro relatou a visita à Livia ao Maurinho. Contou que ao entardecer tinham chegado os outros três membros do quarteto, cada um arrastando uma cadeira e segurando um instrumento imaginário. E tinham começado a fingir que tocavam, parando a intervalos para ouvir as correções e direções da Livia. Eram dois senhores e uma moça, todos de camisolão igual ao dela. Parecia um congresso de anjos. O apelido deles na clínica era “a turma da Livia”.
E o Magro contou que nunca vira uma expressão de felicidade como a do rosto da Livia tocando seu violoncelo invisível. Estava em outro Universo.
— Ela continua bonita?
— Linda. E o sorriso é o mesmo.
— Ela perguntou pela turma?
— Perguntou, perguntou. Queria saber tudo a nosso respeito.
Mas o Magro não disse ao Maurinho que se esforçara para encontrar alguma coisa para contar da turma. Algum sucesso profissional, alguma grande alegria, alguma notícia, por medíocre que fosse, que justificasse terem escolhido ficar no Universo de cá. E que, não encontrando nada para dizer, o Magro se vira, idiotamente, como se aquilo resumisse os feitos dos cinco, contando que o Lorival se mudara para Curitiba.
— Luis Fernando Verissimo, no livro “Os últimos quartetos de Beethoven e outros contos”. 1ª ed., Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.
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