quinta-feira, dezembro 19, 2024

Os versos esquecidos por Chico Buarque

De: Chico Buarque Para: Augusto Boal

Um dos maiores interlocutores de Augusto Boal quando o criador do Teatro do Oprimido esteve exilado, em Lisboa, durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985), Chico Buarque certa vez lhe mandou notícias por meio da canção Meu caro amigo, gravada em fita K7 e enviada além-mar. Esta versão, como se pode ouvir na leitura em vídeo ao final da carta,[1] contém trechos excluídos na versão final. O fato só seria revelado publicamente em 2016, quando a equipe do IMS entrevistou o compositor, que se surpreendeu, ele mesmo, com os versos.

Rio [de Janeiro], 20 de julho [de 1975]
Caro Boal,

Você é um sacana. Peguei o seu Milagre no Brasil[2] no fim da tarde e é evidente que não consegui dormir. Terminei a leitura de manhã e perdi o dia. Mas ganhei muito mais. Que porrada. Não sei se este é o famigerado que eu trouxe para o Ênio [Silveira], e o Ênio ficou meio assim, e prometeu me entregar para ler, e desconversou, e tal, e acabei esquecendo. Se é o mesmo livro, compreendo, não aprovo mas compreendo o cagaço do nosso amigo. Que porrada.

E Lisa?!?!?!?![3] Tudo bem com ela, não se preocupe. A canção de abertura está pronta. É uma coisa simples, funcional, teatral. Eu tinha preocupação de tentar ajeitar as canções de maneira que pudessem ser aproveitadas também fora da peça. Mesmo porque estou preparando um disco e o material é escasso. Mas essa canção de abertura, acho que fica exclusiva para a peça. Quer dizer, não sei ainda, talvez pinte uma ideia para modificá-la um pouco em função de uma gravação, mas de qualquer maneira está pronta para você. O mesmo vale para a canção que fecha o primeiro ato, só que ainda não está pronta. Mas eu componho logo, logo. E a canção de encerramento, idem idem, sendo que eu tenho a impressão que cabe ajeitar os versos dessas duas na mesma melodia. Ou então, adaptar esta última à melodia já pronta da canção de abertura. É fácil. Difícil é o Casal procura esposa.[4] Difícil porque o poema é longo e já está bem elaborado. Musicá-lo, bem que tentei, sem êxito. Não dá pra desenvolvê-lo e não me agrada a ideia de tentar simplificá-lo, reduzi-lo, barateá-lo em música. Proponho o seguinte: faço um tema melódico para sublinhar o poema recitado. E esse tema fica valendo para outros pontos da peça. Tá legal? Não estou tirando o corpo fora, não, acredito mesmo que vá funcionar melhor assim.

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Augusto Boal e o Teatro do Oprimido em Paris, 1975 – foto: Cedoc-Funarte

Mulheres de Atenas. Era a situação inversa. Um esboço de poema que deu gosto desenvolver. Sou meio contra mostrar letra de música sem música. Acontece que a letra saiu, cheia de erros, no Jornal do Brasil. Não quero que você a leia errado, por isso é que estou mandando. Assim que tiver um portador, mando uma fita com todo o material que estiver pronto. Bem, Mulheres de Atenas já foi devidamente proibida pela censura federal. Tudo indica que o seu nome, com a modesta contribuição do meu, provocou um curto-circuito, já que a letra, em si, não me parece tão perigosa assim. Pra não perder a viagem, estou transando a publicação da letra numa espécie de livro-objeto. É o seguinte. Um pessoal de artes gráficas pediu-me um texto, um poema, um conto, qualquer coisa que pudesse ser ilustrado numa bolação lá deles que me pareceu muito bacana. Como estou sem muito tempo, e como a música foi proibida, propus que trabalhassem em cima de Mulheres de Atenas. Eles vibraram. Você concorda?

Outra coisa. Eu devo ir à Itália em meados de setembro. É claro que gostaria de passar por Lisboa na volta. Mas tem o seguinte. Tenho um amigo aí que trabalha na RTP.[5] Seu nome é José Nuno Martins. É meu conhecido dos tempos do salazarismo e o máximo que eu sei dele é que era veementemente antissalazarista. Logo após a revolução, mantivemos muitos contactos telefônicos, naquela euforia dos cravos vermelhos. E o Nuno foi quem me ajudou a lançar aí o Tanto mar,[6] que aqui foi vetado. Mas agora que passou a euforia, eu não sei bem como é que o Nuno se situa. Ele sabe que eu vou à Itália e me telefonou outro dia convidando para passar aí e participar de um programa de televisão com o Raul Solnado. Aí é que eu fico meio ressabiado. Como é que é o Raul Solnado? Você acha que vale a pena participar de um programa com o Raul Solnado? Faça por favor uma sondagem aí e mande-me uma orientação. Se for um troço negativo em algum sentido, eu dou um jeito de despistar e baixar aí sem RTP, sem Solnado e sem badalação. No fundo, é isso o que estou preferindo, assistir e não dar show.

Esta carta esta meio esculhambada. Se eu for parar para caprichar, nunca que termino. Um grande abraço pra você, pra Cecília e pra todos aí. Aliás, meio na brincadeira, outro dia comecei a botar letra num chorinho do Francis Hime que é mais ou menos assim:

Meu caro amigo, me perdoe, por favor
Se eu não lhe faço uma visita
Mas como agora apareceu um portador
mando um abraço nesta fita
Aqui na terra continua o futebol
Tem muito samba, muito choro e rock and roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta

… e por aí vai. Mais adiante, tem:

Meu caro amigo, eu sei que é triste a situação
Sei que a saudade está danada
Mas se você quiser a minha opinião
Você não está perdendo nada……………. etc. etc. etc.[7]

Acervo do Instituto Augusto Boal

Você pode ouvir a leitura da carta feita por Chico Buarque no vídeo abaixo:

[1] Esta carta foi gravada pelo compositor em vídeo exibido durante a exposição Meus caros amigos – Augusto Boal – Cartas do exílio, realizada no IMS em 2016.
[2] N.S.: Milagre no Brasil, livro de Augusto Boal sobre sua prisão, publicado em 1979 pela Civilização Brasileira.
[3] N.S.: Lisa, a mulher libertadora é uma adaptação de Lisístrata, de Aristófanes, feita por Augusto Boal. A peça nunca foi encenada.
[4] N.S.: Letra de Boal musicada por Chico Buarque para a peça Lisa, a mulher libertadora.
[5] N.S.: Rádio e Televisão de Portugal, empresa estatal de telecomunicação portuguesa.
[6] N.S.: Disco de Chico Buarque, lançado somente em 1978 no Brasil. A música que dá título ao álbum é uma homenagem à Revolução dos Cravos.
[7] N.S.: Este trecho seria excluído da versão final gravada no LP Meus caros amigos.

Fonte: Correio IMS


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