Arte da capa: ©Leonid Afremov
A partida era na Central com seu relógio enorme, o maior do mundo. Marcava seis horas da manhã. Angela Pralini pagou o táxi e pegou sua pequena valise. Dona Maria Rita Alvarenga Chagas Souza Melo desceu do Opala da filha e encaminharam-se para os trilhos. A velha bem vestida e com joias. Das rugas que a disfarçavam saía a forma pura de um nariz perdido na idade, e de uma boca que outrora devia ter sido cheia e sensível. Mas que importa. Chega-se a um certo ponto – e o que foi não importa. Começa uma nova raça. Uma velha não pode comunicar-se. Recebeu o beijo gelado de sua filha que foi embora antes do trem partir. Ajudara-a antes a subir no vagão. Sem que neste houvesse um centro, ela se colocara do lado. Quando a locomotiva se pôs em movimento, surpreendeu-se um pouco: não esperava que o trem seguisse nessa direção e sentara-se de costas para o caminho.
Angela Pralini percebeu-lhe o movimento e perguntou:
– A senhora deseja trocar de lugar comigo?
Dona Maria Rita se espantou com a delicadeza, disse que não, obrigada, para ela dava no mesmo. Mas parecia ter-se perturbado. Passou a mão sobre o camafeu filigranado de ouro, espetado no peito, passou a mão pelo broche, tirou-a, levou-a ao chapéu de feltro com uma rosa de pano, retirou-a. Seca. Ofendida? Perguntou afinal a Angela Pralini:
– É por causa de mim que a senhorita deseja trocar de lugar?
Angela Pralini disse que não, surpreendeu-se, a velha se surpreendeu pelo mesmo motivo: não se recebe favor de uma velhinha. Ela sorriu um pouco demais e os lábios cobertos de talco se partiram em sulcos secos: ela estava encantada. E um pouco agitada:
– Que amabilidade a sua, disse-lhe, que gentileza.
Houve um movimento de perturbação porque Angela Pralini riu também, e a velha continuava a rir, mostrando a dentadura bem areada. Deu discretamente um puxão para baixo na cinta que a apertava demais.
– Que amabilidade, repetiu.
Recompôs-se um pouco depressa, cruzou as mãos sobre a bolsa que continha tudo o que se pudesse imaginar. As rugas, enquanto ela rira, haviam tomado um sentido, pensou Angela. Agora estavam de novo incompreensíveis, superpostas num rosto de novo imodelável. Mas Angela tirara-lhe a tranquilidade. Já vira muita moça nervosa que se dizia: se eu rir um pouco mais estrago tudo, vai ser ridículo, tenho que parar – e era impossível. A situação era muito triste. Com imensa piedade, Angela viu a cruel verruga no queixo, verruga da qual saía um pelo preto e espetado. Mas Angela lhe tirara a tranquilidade. Via-se que sorriria a qualquer momento: Angela pusera a velha nas pontas dos pés. Agora ela era uma dessas velhinhas que parecem pensar que estão sempre atrasadas, que passaram da hora. Daí a um segundo não se conteve, ergueu-se e espiou pela sua janela, como se fosse impossível manter-se sentada.
– A senhora está querendo levantar o vidro? disse um rapaz que ouvia no rádio de pilha Haendel.
– Ah! exclamou ela aterrorizada.
Oh não!, pensou Angela, estava se estragando tudo, o rapaz não deveria ter dito isso, era demais, não se devia tocá-la de novo. Porque a velha, quase a ponto de perder a atitude de que vivia, quase a ponto de perder certa amargura, tremia como música de cravo entre o sorriso e o extremo encanto:
– Não, não, não, disse ela com falsa autoridade, de modo algum, obrigada, só queria olhar.
Sentou-se imediatamente como se a delicadeza do rapaz e da moça a vigiasse. A velha, antes de subir no trem, persignou-se com três cruzes no coração, beijando discretamente as pontas dos dedos. Estava de vestido preto com gola de renda verdadeira e um camafeu de ouro puro. Na escura mão esquerda as duas alianças grossas de viúva, grossas como não se faziam mais. Ouvia-se do outro vagão o grupo de bandeirantes que cantavam o Brasil agudamente. Felizmente no outro vagão. A música do rádio do rapaz entrecruzava-se com a música de outro rapaz: estava ouvindo Edith Piaf que cantava “J’attendrai”.
Fora então que o trem de repente deu um solavanco e as rodas se puseram em movimento. Começara a partida. A velha disse baixinho: Ai Jesus! Ela se banhava na calda de Jesus. Amém. Pelo rádio de pilha de uma senhora soube-se que eram seis e trinta da manhã, manhã friagenta. A velha pensou: o Brasil melhorava a sinalização de suas estradas. Um tal de Kissinger parecia mandar no mundo.
Ninguém sabe onde estou, pensou Angela Pralini, e isso assustava-a um pouco, ela era uma fugida.
– Meu nome é Maria Rita Alvarenga Chagas Souza Melo – Alvarenga Chagas era o sobrenome do meu pai, acrescentou em pedido de desculpa por ter que falar tantas palavras só em dizer seu nome. Chagas, acrescentou com modéstia, eram as Chagas de Cristo. Mas pode me chamar de dona Maria Ritinha. E o seu nome?, a sua graça qual é?
– Meu nome é Angela Pralini. Vou passar seis meses na fazenda de meus tios. E a senhora?
– Ah, eu vou para a fazenda de meu filho, vou ficar lá para o resto da vida, minha filha me trouxe até o trem e meu filho me espera com a charrete na estação. Sou como um embrulho que se entrega de mão em mão.
Os tios de Angela não tinham filhos e tratavam-na como filha. Angela lembrou-se do bilhete que deixara para Eduardo: “Não me procure. Vou desaparecer de você para sempre. Te amo como nunca. Adeus. Tua Angela não foi mais tua porque você não quis.”
Ficaram em silêncio. Angela Pralini entregou-se ao ruído cadenciado do trem. Dona Maria Rita olhou de novo para o próprio anel de brilhantes e pérola no seu dedo, alisou o camafeu de ouro: “Sou velha mas sou rica, mais rica que todos aqui no vagão. Sou rica, sou rica.” Espiou o relógio, mais para ver a grossa placa de ouro do que para ver as horas. “Sou muito rica, não sou uma velha qualquer.” Mas sabia, ah bem sabia que era uma velhinha qualquer, uma velhinha assustada pelas menores coisas. Lembrou-se de si, o dia inteiro sozinha na sua cadeira de balanço, sozinha com os criados, enquanto a filha “public relations” passava o dia fora, só chegava às oito da noite, e nem sequer lhe dava um beijo. Acordara-se neste dia às cinco da manhã, tudo ainda escuro, fazia frio.
Depois da delicadeza do rapaz estava extraordinariamente agitada e sorridente. Parecia enfraquecida. No riso ela se revelava uma dessas velhinhas cheias de dentes. A crueldade deslocada dos dentes. O rapaz já se tinha afastado. Ela abria e fechava as pálpebras. De repente bateu com os dedos na perna de Angela, com extrema rapidez e suavidade:
– Hoje todos estão verdadeiramente, mas verdadeiramente amáveis! que gentileza, que gentileza.
Angela sorriu. A velha ficou sorrindo sem tirar os olhos profundos e vazios dos olhos da moça. Vamos, vamos, chicoteavam-na de todos os lados, e ela espiava para cá e para lá como se fosse escolher. Vamos, vamos! empurravam-na rindo de todos os lados, e ela se sacudia ridente, delicada.
– Como todos são amáveis neste trem, disse.
Subitamente procurou se recompor, pigarreou falsamente, se conteve toda. Devia ser difícil. Receava ter chegado a um ponto de não poder interromper-se. Manteve-se em severidade e tremor, fechou os lábios sobre os inúmeros dentes. Mas não podia enganar a ninguém: seu rosto tinha uma tal esperança que perturbava os olhos que a viam. Ela já não dependia de ninguém: uma vez que a tinham tocado, podia-se ir embora – ela sozinha se irradiava magra, alta. Ainda quereria dizer qualquer coisa e já preparava um gesto social de cabeça, cheio de graça prévia. Angela se perguntava se ela saberia se exprimir. Ela pareceu pensar, pensar, e achar com ternura um pensamento já todo feito onde mal e mal podia aconchegar seu sentimento. Disse com cuidado e sabedoria de ancião, como se precisasse tomar esse ar para falar como velha:
– A juventude. A juventude amável.
Riu um pouco fingida. Ia ter uma crise de nervos? pensou Angela Pralini. Porque estava tão maravilhosa. Mas pigarreou de novo com austeridade, deu no banco uma batidinha com as pontas dos dedos como se ordenasse com urgência à orquestra uma nova partitura. Abriu a bolsa, tirou um quadradinho de jornal, desdobrou-o, desdobrou-o, até torná-lo um jornal grande e normal, datado de três dias atrás – Angela viu pela data. Pôs-se a ler.
Angela tinha perdido sete quilos. Na fazenda iria comer que não era vida: tutu de feijão e couve mineira, para recuperar os preciosos quilos perdidos. Estava magra assim por tentar acompanhar o raciocínio brilhante e ininterrupto de Eduardo: bebia café sem açúcar sem parar para se manter acordada. Angela Pralini tinha os seios muitos bonitos, eram seu ponto forte. Tinha as orelhas em ponta e uma boca bonita arredondada, beijável. Os olhos com olheiras profundas. Ela aproveitava o apito gritado do trem para que ele fosse o seu próprio grito. Era um berro agudo, o seu, só que virado para dentro. Era a mulher que mais bebia uísque no grupo de Eduardo. Aguentava de 6 a 7 de uma vez, mantendo uma lucidez de terror. Na fazenda iria beber leite grosso de vaca. Uma coisa unia a velha a Angela: ambas iam ser recebidas de braços abertos, mas uma não sabia isso da outra. Angela de súbito estremeceu: quem daria o último dia de vermífugo ao cachorro. Ah, Ulisses, pensou ela para o cão, não te abandonei por querer, é que eu precisava fugir de Eduardo, antes que ele me arruinasse totalmente com sua lucidez: lucidez que iluminava demais e crestava tudo. Angela sabia que os tios tinham remédio contra picada de cobra: pretendia entrar em cheio na floresta espessa e verdejante, com botas altas e besuntada de remédio contra picada de mosquito. Como se saísse da estrada Transamazônica, a exploradora. Que bichos encontraria? Era melhor levar uma espingarda, comida e água. E uma bússola. Desde que descobrira – mas descobrira realmente com um tom espantado – que ia morrer um dia, então não teve mais medo da vida, e, por causa da morte, tinha direitos totais: arriscava tudo. Depois de ter tido duas uniões que haviam terminado em nada, esta terceira que terminava em amor-adoração, cortada pela fatalidade do desejo de sobreviver. Eduardo a transformara: fizera-a ter olhos para dentro. Mas agora ela via para fora. Via através da janela os seios da terra, em montanhas. Existem passarinhos, Eduardo! existem nuvens, Eduardo! existe um mundo de cavalos e cavalas e vacas, Eduardo, e quando eu era uma menina cavalgava em corrida num cavalo nu, sem sela! Eu estou fugindo do meu suicídio, Eduardo. Desculpe, Eduardo, mas não quero morrer. Quero ser fresca e rara como uma romã.
A velha fingia que lia jornal. Mas pensava: seu mundo era um suspiro. Não queria que os outros a acreditassem abandonada. Deus me deu saúde para eu viajar só. Também sou boa de cabeça, não falo sozinha e eu mesma é que tomo banho todos os dias. Cheirava a água de rosas murchas e maceradas, era o seu perfume idoso e mofado. Ter um ritmo respiratório, pensou Angela da velha, era a coisa mais bela que ficara desde que dona Maria Rita nascera. Era a vida.
Dona Maria Rita pensava: depois de velha começara a desaparecer para os outros, só a viam de relance. Velhice: momento supremo. Estava alheia à estratégia geral do mundo e a sua própria era parca. Perdera os objetivos de maior alcance. Ela já era o futuro.
Angela pensou: acho que se eu encontrasse a verdade, não poderia pensá-la. Seria impronunciável mentalmente.
A velha sempre fora um pouco vazia, bem, um pouquinho. Morte? era esquisito, não fazia parte dos dias. E mesmo “não existir” não existia, era impossível não-existir. Não existir não cabia na nossa vida diária. A filha não era carinhosa. Em compensação o filho era tão carinhoso, bonachão, meio gordo. A filha era sequinha como seus beijos rápidos, a “public relations”. A velha tinha certa preguiça de viver. A monotonia, porém, era o que a sustentava.
Eduardo ouvia música com o pensamento. E entendia a dissonância da música moderna, só sabia entender. Sua inteligência que a afogava. Você é uma temperamental, Angela, disse-lhe ele uma vez. E daí? Que mal há nisso? Sou o que sou e não o que pensas que sou. A prova que sou está nesta partida do trem. Minha prova também é dona Maria Rita, aí defronte. Prova de quê? Sim. Ela já tivera plenitude. Quando ela e Eduardo estavam tão apaixonados um pelo outro que estando juntos numa cama, de mãos dadas, eles sentiam a vida completa. Pouca gente conheceu a plenitude. E, porque a plenitude é também uma explosão, ela e Eduardo covardemente passaram a viver “normalmente”. Porque não se pode prolongar o êxtase sem morrer. Separaram-se por um motivo fútil quase inventado: não queriam morrer de paixão. A plenitude é uma das verdades encontradas. Mas o rompimento necessário fora para ela uma ablação, assim como há mulheres de quem são tirados o útero e os ovários. Vazia por dentro.
Dona Maria Rita era tão antiga que na casa da filha estavam habituados a ela como a um móvel velho. Ela não era novidade para ninguém. Mas nunca lhe passara pela cabeça que era uma solitária. Só que não tinha nada para fazer. Era um lazer forçado que em certos momentos se tornava lancinante: nada tinha a fazer no mundo. Senão viver como um gato, como um cachorro. Seu ideal era ser dama de companhia de alguma senhora, mas isso nem se usava mais e mesmo ninguém acreditaria nos seus fortes setenta e sete anos, pensariam que ela era fraca. Não fazia nada, fazia só isso: ser velha. Às vezes ficava deprimida: achava que não servia a nada, não servia sequer a Deus. Dona Maria Ritinha não tinha inferno dentro dela. Por que os velhos, mesmo os que não tremem, sugeriam algo delicadamente trêmulo? Dona Maria Rita tinha um tremor quebradiço de música de sanfona.
Mas quando se trata da vida mesmo – quem nos ampara? pois cada um é um. E cada vida tem que ser amparada por essa própria vida desse cada-um. Cada um de nós: eis com que contamos. Como dona Maria Rita sempre fora uma pessoa comum, achava que morrer não era coisa normal. Morrer era surpreendente. Era como se ela não estivesse à altura do ato de morte, pois nunca lhe acontecera até agora nada de extraordinário na vida que viesse justificar de repente outro fato extraordinário. Falava e até pensava na morte, mas no fundo era cética e suspeitosa. Achava que se morria quando havia um desastre ou alguém matava alguém. A velha tinha pouca experiência. Às vezes tinha taquicardia: bacanal do coração. Mas só isso e mesmo assim desde mocinha. No seu primeiro beijo, por exemplo, o coração se desgovernara. E fora uma coisa boa em limite com o ruim. Alguma coisa que lembrava seu passado, não como fatos mas como vida: uma sensação de vegetação em sombra, tinhorões, samambaias, avencas, frescor esverdeado. Quando sentia isso de novo, sorria. Uma das palavras mais eruditas que usava era “pitoresco”. Era bom. Era como ouvir o marulho de uma fonte e não saber onde ela nascia.
Um diálogo que ela fazia consigo mesma:
– Está fazendo alguma coisa?
– Estou sim: estou sendo triste.
– Não se incomoda de ficar sozinha?
– Não, eu penso.
Às vezes não pensava. Às vezes a pessoa ficava sendo. Não precisava fazer. Ser já era um fazer. Podia-se ser devagar ou um pouco depressa.
No assento de trás, duas mulheres falavam e falavam sem parar. Seus sons constantes se fundiam no barulho das rodas do trem nos trilhos.
Bem que dona Maria Rita esperara que a filha ficasse na plataforma do trem para dar-lhe um adeusinho mas isto não aconteceu. O trem imóvel. Até que dera a arrancada.
– Angela, disse ela, uma mulher nunca diz a idade, por isso só posso lhe dizer que é muita mesmo. Não, com você – posso chamar de você? – com você vou fazer uma confidência: tenho setenta e sete anos.
– Eu tenho trinta e sete, disse Angela Pralini.
Eram sete horas da manhã.
– Quando eu era moça eu era muito mentirosinha. Mentia à toa.
Depois, como se ela tivesse se desencantado da magia da mentira, parara de mentir.
Angela, olhando a velha dona Maria Rita, teve medo de envelhecer e morrer. Segura minha mão, Eduardo, para eu não ter medo de morrer. Mas ele não segurava nada. Só fazia era: pensar, pensar e pensar. Ah, Eduardo, quero a doçura de Schumann! A sua vida era uma vida desfeita, evanescente. Faltava-lhe um osso duro, áspero e forte, contra o qual ninguém pudesse nada. Quem seria esse osso essencial? Para afastar a sensação de enorme carência, pensou: como é que na Idade Média eles faziam sem telefone e sem avião? Mistério. Idade Média, eu vos adoro e as tuas nuvens pretas e carregadas que desembocaram na Renascença luminosa e fresca.
Quanto à velha, desligara-se. Olhava para o nada.
Angela olhou-se no pequeno espelho da bolsa. Pareço-me com um desmaio. Cuidado com o abismo, digo àquela que se parece com um desmaio. Quando eu morrer vou sentir tanta saudade de você, Eduardo! A frase não resistia à lógica porém tinha em si um imponderável sentido. Era como se ela quisesse exprimir uma coisa e exprimisse outra.
A velha já era o futuro. Parecia ter vergonha. Vergonha de ser velha? Em algum ponto de sua vida deveria com certeza ter havido um erro, e o resultado era esse estranho estado de vida. Que no entanto não a levava à morte. A morte era sempre uma tal surpresa para quem morria. Tinha, porém, orgulho de não babar nem fazer pipi na cama, como se essa forma de saúde bravia tivesse meritoriamente sido o resultado de um ato de vontade sua. Só não era uma dama, uma senhora de idade, por não ter arrogância: era uma velhinha digna que de repente tomava um ar assustadiço. Ela – bem, ela se elogiava a si mesma, considerava-se uma velha cheia de precocidade como criança precoce. Mas a verdadeira intenção de sua vida, ela não sabia.
Angela sonhava com a fazenda: lá se ouviam gritos, latidos e uivos, de noite. “Eduardo”, pensou ela para ele, “eu estava cansada de tentar ser o que você achava que sou. Tem um lado mau – o mais forte e o que predominava embora eu tenha tentado esconder por causa de você – nesse lado forte eu sou uma vaca, sou uma cavala livre e que pateia no chão, sou mulher da rua, sou vagabunda – e não uma ‘letrada’. Sei que sou inteligente e que às vezes escondo isso para não ofender os outros com minha inteligência, eu que sou uma subconsciente. Fugi de você, Eduardo, porque você estava me matando com essa sua cabeça de gênio que me obrigava a quase tapar os meus ouvidos com as duas mãos e quase gritar de horror e cansaço. E agora vou ficar seis meses na fazenda, você não sabe onde estarei, e todos os dias tomarei banho no rio misturando com o barro a minha abençoada lama. Sou vulgar, Eduardo! e saiba que gosto de ler histórias em quadrinhos, meu amor, oh meu amor! como te amo e como amo os teus terríveis malefícios, ah como te adoro, escrava tua que sou. Mas eu sou física, meu amor, eu sou física e tive que esconder de ti a glória de ser física. E você, que é o próprio fulgor do raciocínio, embora não saiba, era alimentado por mim. Você, superintelectual e brilhante e deixando todos admirados e boquiabertos.”
– Acho, se disse devagarinho a velha, acho que essa moça bonita não se interessa em conversar comigo. Não sei por que, mas ninguém conversa mais comigo. E mesmo quando estou junto das pessoas, elas parecem não se lembrar de mim. Afinal não tenho culpa de ser velha. Mas não faz mal, eu me faço companhia. E mesmo tenho o Nandinho, meu filho querido que me adora.
– O prazer sofrido de se coçar! pensou Angela. Eu, hein, eu que não vou nessa nem noutra – estou livre!!! Estou ficando mais saudável, oh vontade de dizer um desaforo bem alto para assustar todos. A velha não entenderia? Não sei, ela que já deve ter parido várias vezes. Eu não caio nessa de que o certo é ser infeliz, Eduardo. Quero fruir de tudo e depois morrer e eu que me dane! me dane! me dane! Se bem que a velha é capaz de ser infeliz sem saber. Passividade. Eu não vou nessa também, nada de passividade, quero é tomar banho nua no rio barrento que se parece comigo, nua e livre! viva! Três vivas! Eu abandono tudo! tudo! e assim não sou abandonada, não quero depender senão de umas três pessoas e o resto é: Bom-dia, tudo bem? tudo bem. Edu, você sabe? eu te abandono. Você, no fundo de seu intelectualismo, não vale a vida de um cão. Eu te abandono, então. E abandono o grupo falsamente intelectual que exigia de mim um vão e nervoso exercício contínuo de inteligência falsa e apressada. Precisei que Deus me abandonasse para que eu sentisse a sua presença. Eu preciso matar alguém dentro de mim. Você estragou minha inteligência com a tua que é de gênio. E me obrigou a saber, a saber, a saber. Ah, Eduardo, não se preocupe, levo comigo os livros que você me deu para “seguir um curso em casa”, como você queria. Estudarei filosofia perto do rio, pelo amor que tenho por você.
Angela Pralini tinha pensamentos tão fundos que não havia palavras para expressá-los. Era mentira dizer que só se podia ter um pensamento de cada vez: tinha muitos pensamentos que se entrecruzavam e eram vários. Sem falar no “subconsciente” que explode em mim, queira eu ou não queira você. Sou uma fonte, pensou Angela, pensando ao mesmo tempo onde pusera o lenço de cabeça, pensando se o cachorro tinha tomado o leite que lhe deixara, nas camisas de Eduardo, e no seu extremo esgotamento físico e mental. E na velha dona Maria Rita. “Nunca vou esquecer teu rosto, Eduardo.” Era um rosto um pouco espantado, espantado com sua própria inteligência. Ele era um ingênuo. E amava sem saber que estava amando. Ia ficar tonto quando descobrisse que ela fora embora, deixando o cachorro e ele. Abandono por falta de nutrição, pensou. Ao mesmo tempo pensava na velha sentada defronte. Não era verdade que só se pensa um pensamento único. Era, por exemplo, capaz de escrever um cheque perfeito, sem um erro, pensando na sua vida, por exemplo. Que não era boa mas enfim era sua. Sua de novo. A coerência, não a quero mais. Coerência é mutilação. Quero a desordem. Só adivinho através de uma veemente incoerência. Para meditar tirei-me antes de mim e sinto o vazio. É no vazio que se passa o tempo. Ela que adorava uma boa praia, com sol, areia e sol. O homem está abandonado, perdeu o contato com a terra, com o céu. Ele não vive mais, ele existe. O ar entre ela e Eduardo Gosme era de emergência. Ele a transformara numa mulher urgente. E que, para manter acordada a urgência, tomava drogas excitantes que a emagreciam cada vez mais e tiravam-lhe a fome. Quero comer, Eduardo, estou com fome, Eduardo, fome de muita comida! Sou orgânica!
“Conheça hoje o supertrem de amanhã.” Seleções do Reader’s Digest que ela às vezes lia escondida de Eduardo. Era como as Seleções que diziam: conheça hoje o supertrem de amanhã. Positivamente não o estava conhecendo hoje. Mas Eduardo era o supertrem. Super tudo. Ela conhecia hoje o super de amanhã. E não suportava. Não suportava o moto-perpétuo. Você é o deserto, e eu vou para a Oceania, para os mares do Sul, para as ilhas Taiti. Se bem que estragadas pelos turistas. Você não passa de um turista, Eduardo. Vou para a minha própria vida, Edu. E digo como Fellini: na escuridão e na ignorância crio mais. A vida que tinha com Eduardo tinha cheiro de farmácia nova recém-pintada. Ela preferia o cheiro vivo de estrume por mais nojento que fosse. Ele era correto como uma quadra de tênis. Aliás, praticava tênis para manter a forma. Enfim, ele era um chato que ela amava e quase não amava mais. Estava recobrando no trem mesmo a sua saúde mental. Continuava apaixonada por Eduardo. E ele, sem saber, também estava por ela. Eu que não consigo fazer nada certo, exceto omeletes. Com uma só mão quebrava ovos com uma rapidez incrível, e os despejava na vasilha sem derramar uma gota. Eduardo morria de inveja de tanta elegância e eficiência. Ele às vezes fazia palestras nas universidades e adoravam-no. Ela também assistia, ela também o adorando. Como era mesmo que ele começava? “Sinto-me pouco à vontade ao ver as pessoas se levantando quando ouvem anunciar que eu falarei.” Angela tinha sempre medo que elas se retirassem e o deixassem sozinho.
A velha, como se tivesse recebido uma transmissão de pensamento, pensava: que não me deixem sozinha. Que idade mesmo eu tenho? Ah já nem sei.
Logo em seguida ela esvaziou seu pensamento. E era tranquilamente nada. Mal existia. Era bom assim, muito bom mesmo. Mergulhos no nada.
Angela Pralini, para se acalmar, contou-se uma história bem calmante, bem tranquila: era uma vez um homem que gostava muito de jabuticabas. Então ele foi para um pomar onde havia árvores carregadas de protuberâncias negras, lisas e lustrosas, que lhe caíam nas mãos todas entregues e que das mãos lhe caíam aos pés. Era tal a abundância de jabuticabas que ele se dava ao luxo de pisá-las. E elas faziam um barulho muito gostoso. Faziam assim: cloc-cloc-cloc etc. Angela acalmou-se como o homem das jabuticabas. Na fazenda tinha jabuticabas e ela iria fazer com os pés nus o “cloc-cloc” macio e úmido. Nunca sabia se devia ou não engolir os caroços. Quem iria responder essa pergunta? Ninguém. Só talvez um homem que, como Ulisses, o cachorro, e contra Eduardo, respondesse: “Mangia, bella, que te fa bene.” Sabia um pouquinho de italiano mas nunca tinha certeza de estar certa. E, depois do que esse homem dissesse, ela engoliria os caroços. Outra árvore gostosa era uma cujo nome científico esquecera mas que na infância todos haviam conhecido diretamente, sem ciência, era uma que no Jardim Botânico do Rio fazia um cloc-cloc sequinho. Viu? viu como você está renascendo? Sete fôlegos de gato. O número sete acompanhava-a, era o seu segredo, a sua força. Sentia-se linda. Não era. Mas assim se sentia. Sentia-se também bondosa. Com ternura pela velha Maria Ritinha que pusera os óculos e lia o jornal. Tudo era vagaroso na velha Maria Rita. Perto do fim? ai, como dói morrer. Na vida se sofre mas se tem alguma coisa na mão: a inefável vida. Mas e a pergunta sobre a morte? Era preciso não ter medo: ir em frente, sempre.
Sempre.
Como o trem.
Em algum lugar existe uma coisa escrita no muro. E é para mim, pensou Angela. Das chamas do Inferno virá um telegrama fresco para mim. E nunca mais minha esperança será decepcionada. Nunca. Nunca mais.
A velha era anônima como uma galinha, como tinha dito uma tal de Clarice falando de uma velha despudorada, apaixonada por Roberto Carlos. Essa Clarice incomodava. Fazia a velha gritar: tem! que! haver! uma! porta! de saííída! E tinha mesmo. Por exemplo, a porta de saída dessa velha era o marido que voltaria no dia seguinte, eram as pessoas conhecidas, era a sua empregada, era a prece intensa e frutífera diante do desespero. Angela se disse como se se mordesse raivosamente: tem que haver uma porta de saída. Tanto para mim como para dona Maria Rita.
Eu não pude parar o tempo, pensou Maria Rita Alvarenga Chagas Souza Melo. Falhei. Estou velha. E fingiu ler o jornal só para se dar uma compostura.
Quero sombra, gemeu Angela, quero sombra e anonimato.
A velha pensou: seu filho era tão bondoso, tão quente de coração, tão carinhoso! Tratava-a de “mãezinha”. Sim, talvez eu passe o resto de minha vida na fazenda, longe da “public relations” que não precisa de mim. E minha vida deve ser muito longa, a julgar pelos meus pais e avós. Podia alcançar fácil, fácil, cem anos, pensou confortavelmente. E morrer de repente para não ter tempo de sentir medo. Persignou-se discretamente e pediu a Deus uma boa morte.
Ulisses, se fosse vista a sua cara sob o ponto de vista humano, seria monstruoso e feio. Era lindo sob ponto de vista de cão. Era vigoroso como um cavalo branco e livre, só que ele era castanho suave, alaranjado, cor de uísque. Mas seu pelo é lindo como o de um energético e empinado cavalo. Os músculos do pescoço eram vigorosos e a gente podia pegar esses músculos nas mãos de dedos sábios. Ulisses era um homem. Sem o mundo cão. Ele era delicado como um homem. Uma mulher deve tratar bem o homem.
O trem entrando no campo: os grilos grilavam agudos e roucos.
Eduardo, uma vez por outra, sem jeito como quem é forçado a cumprir uma função – dava-lhe de presente um gélido diamante. Ela que preferia brilhantes. Enfim, suspirou ela, as coisas são como são. Tinha às vezes, quando olhava do alto de seu apartamento, vontade de se suicidar. Ah, não por Eduardo mas por uma espécie de fatal curiosidade. Não dizia isso a ninguém, com medo de influenciar um suicida latente. Ela queria a vida, vida plana e plena, bem bacana, bem lendo às abertas as Seleções. Queria morrer só aos noventa anos, no meio de um ato de vida, sem sentir. O fantasma da loucura nos ronda. Que é que você está fazendo? Estou esperando o futuro.
Quando finalmente o trem se pusera em movimento, Angela Pralini acendera o cigarro em aleluia: receava que, enquanto o trem não partisse, não tivesse coragem de ir e terminasse por descer do vagão. Mas logo depois já estavam sujeitos aos amortecedores e no entanto repentinos solavancos das rodas. O trem marchava. E a velha Maria Rita suspirava: estava mais perto do filho amado. Com ele poderia ser mãe, ela que era castrada pela filha.
Uma vez em que Angela tivera dores menstruais, Eduardo tentara, muito sem jeito, ser carinhoso. E dissera-lhe uma coisa horrorosa: você está dodói, não é? Era de se corar de vergonha.
O trem corria quanto podia. O maquinista feliz: assim é que é bom, e ele apitava a cada curva da estrada. Era um longo e grosso apito do trem em marcha, ganhando terreno. A manhã era fresca e cheia de ervas altas e verdes. Assim, sim, vamos para a frente, disse o maquinista para a máquina. A máquina respondeu com alegria.
A velha era nada. E olhava para o ar como se olha para Deus. Ela era feita de Deus. Isto é: tudo ou nada. A velha, pensou Angela, era vulnerável. Vulnerável para o amor, amor de seu filho. A mãe era franciscana, a filha era poluição.
Deus, pensou Angela, se você existe, se mostre! Porque chegou a hora. É nesta hora, é neste minuto e neste segundo.
E o resultado foi que ela teve que disfarçar as lágrimas que lhe vieram aos olhos. Deus de algum modo lhe respondera. Ela estava satisfeita e engoliu um soluço abafado. Como viver magoava. Viver era uma ferida aberta. Viver é ser como o meu cachorro. Ulisses não tem nada a ver com Ulisses de Joyce. Eu tentei ler Joyce mas parei porque ele era chato, desculpe, Eduardo. Só que um chato genial. Angela estava amando a velha que era nada, a mãe que lhe faltava. Mãe doce, ingênua e sofredora. Sua mãe que morrera quando ela fizera nove anos de idade. Mesmo doente mas com vida servia. Mesmo paralítica.
Entre ela e Eduardo o ar tinha gosto de sábado. E de súbito os dois eram raros, a raridade no ar. Eles se sentiam raros, não fazendo parte das mil pessoas que andavam pelas ruas. Os dois às vezes eram coniventes, tinham uma vida secreta porque ninguém os compreenderia. E mesmo porque os raros são perseguidos pelo povo que não tolera a insultante ofensa dos que se diferenciavam. Eles escondiam o amor deles para não ferir os olhos dos outros de inveja. Para não feri-los com uma centelha luminosa demais para os olhos.
Au, au, au, latira o meu cachorro. Meu grande cachorro.
A velha pensou: sou uma pessoa involuntária. Tanto que, quando ria – o que era raro – não se sabia se ria ou chorava. Sim. Ela era involuntária.
Enquanto isso Angela Pralini efervescendo como as bolhinhas da água mineral Caxambu, era uma: de repente. Assim: de repente. De repente o quê? Só de repente. Zero. Nada. Estava com trinta e sete anos e pretendia a cada instante recomeçar sua vida. Como as bolhinhas efervescentes da água Caxambu. As sete letras de Pralini davam-lhe força. As seis letras de Angela tornavam-na anônima.
Com um longo apito uivado, chegava-se à pequena estação onde Angela Pralini saltaria. Pegou sua valise. No intervalo entre o boné do carregador e do nariz de uma jovem, lá estava a velha dormindo inflexível, a cabeça empertigada sob o chapéu de feltro, um punho fechado sobre o jornal.
Angela desceu do vagão.
Naturalmente isso não tinha a menor importância: há pessoas que são sempre levadas a se arrepender, é um traço de certas naturezas culpadas. Mas ficou-a perturbando a visão da velha quando acordasse, a imagem de seu rosto espantado diante do banco vazio de Angela. Afinal ninguém sabia se ela adormecera por confiança nela.
Confiança no mundo.
— Clarice Lispector, no livro “Onde estivestes de noite”. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
SOBRE O LIVRO
Os textos reunidos em Onde estivestes de noite desenham um conjunto heterogêneo, onde é possível identificar o tom das crônicas que Clarice Lispector publicava semanalmente em sua coluna do Jornal do Brasil de 1967 a 1973, reunidas em A descoberta do mundo (1984), como também certa crueza e humor que os aproxima daqueles publicados na mesma época em A via crucis do corpo (1974). Alguns dos textos, além disso, sofreram um deslocamento, pois já tinham sido publicados anteriormente (“Esvaziamento” e “Um caso complicado”), outros foram extraídos de romances e submetidos a ligeiras modificações, procedimentos que indiciam a urgência que a autora tinha de escrever para garantir sua sobrevivência.
Passo a passo, as narrativas vão compondo uma cartografia de impressões, sensações, notícias da vida carioca, onde figuram também amigos, referências afetivas e artísticas – Alberto Dines, Fauzi Arap, Raul Seixas, Marly de Oliveira, Nelson Rodrigues, Roberto Carlos, Angela Pralini, personagem que reaparece em Um sopro de vida, e também a escritora, uma “tal de Clarice”–, formando uma série de flashes fotográficos que cristalizam, em imagem, um instante no movimento sem parada da existência. É, aliás, movimento o eixo que enlaça as narrativas desta coletânea. As personagens estão sempre em trânsito. O movimento tanto pode ser obstinadamente direcionado, como pode carecer de leme, pode ter como horizonte a vida, ou a morte. Em qualquer circunstância, no entanto, há um sentimento de solidão e uma zona de silêncio que atravessam essas pequenas peças, o que não impede a narradora de “O relatório da coisa” de dizer: “Acorda-me, Sveglia, quero ver a realidade”, e continuar em frente.
– BERTA WALDMAN, Profª de Literatura Brasileira e Teoria Literária – UNICAMP/USP
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FICHA TÉCNICA
Título: Onde estivestes de noite
Páginas: 112
Formato: 21.08 x 13.72 x 1.02 cm
Acabamento: Livro brochura
Lançamento: 15/8/2020 (1ª edição)
ISBN: 978-6555320145
Selo: Rocco
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