“Ninguém educa ninguém, ninguém se educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo.”
– Paulo Freire, no livro “Pedagogia do oprimido”. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra. 1981.
O idealizador da Pedagogia do Oprimido, ex-secretário municipal da Educação de São Paulo, relata passagens de sua infância e juventude, declara-se dono de uma “sensualidade ética” e se diz convencido de que, para mudar a sociedade, é preciso pôr em prática as leis que as classes dominantes aprovam para nunca serem aplicadas.
Entrevista concedida a Mario Sérgio Cortella e Paulo de Tarso Venceslau. (Teoria e Debate nº 17 – janeiro/fevereiro/março 1992)
Repensar, reescrever sobre o já escrito e refletido é tão importante quanto escrever coisas ainda não ditas.
Paulo Freire sem limites. Sem censura. Escavando a memória, faz um depoimento à Teoria & Debate capaz de provocar inveja aos melhores psiquiatras e psicanalistas.
Nosso entrevistado descobriu na infância a virtude da tolerância, indispensável ao educador.
E, como educador, não coloca em segundo plano o desejo e a sexualidade, que não podem ser reduzidos à simples descrição fisiológica do corpo. “É sobretudo, um grito em torno do direito de gozar”.
Secretário de Educação do Prefeitura de São Paulo, implantou as diretrizes básicas posteriormente implementadas sob o comando de Mário Sérgio Cortella, revolucionando todo o ensino básico do município.
A entrevista concentrou-se em pontos menos conhecidos, porém mais ousados, da vida de Paulo Freire para propiciar ao nosso leitor uma complementação do que já foi divulgado. Nem por isso ele deixa de abordar temas mais recentes e manifestar um otimismo jovial diante dos desafios que estão colocados.
Socialista confesso, não aceita os discursos neoliberais que sugerem a morte de Marx. “Eu recuso esse discurso porque o meu sonho e a minha utopia têm que estar absolutamente vivos”.
Professor Paulo Freire, pouca gente sabe que antes de se transformar em pedagogo o senhor era advogado. Como se deu essa mudança?
Eu acabei de escrever sobre isso. Trata-se de um longo texto que será uma espécie de retomada da Pedagogia do Oprimido. Um dos meus trabalhos, hoje, é uma espécie de arqueologia, escavando a minha memória e descobrindo algumas tramas, que me conduziram um dia a escrever este livro. Ao retomar a Pedagogia do Oprimido, interessa a mim redizê-la. Dizer as coisas de novo é tão importante quanto escrever coisas não ditas. Estudei Direito porque, em primeiro lugar, morava em Recife. Lá não havia outras possibilidades que ultrapassassem Engenharia, Medicina, Odontologia, Direito, Belas Artes. Na verdade, eu tinha, desde o começo da juventude, um gosto quase irresistível por duas coisas que nunca fiz. Qualquer das duas, porém, me teria remetido à Educação e à Pedagogia, exatamente pelas relações que elas têm entre si. Uma era Psiquiatria, possivelmente Psicanálise. Eu tinha uma forte paixão por isso. Não é coincidência que eu tenha trazido para o campo da Educação o conceito de conscientização. Já naquela época, a consciência tinha para mim papel importante. Creio que exagerei um pouco sua influência na feitura da história enquanto prática pedagógica e resvalei de quando em vez para posições idealistas que eu retifiquei, creio que definitivamente, na Pedagogia do Oprimido.
O conceito de alienação tem origem na Psiquiatria, por exemplo.
Exato. São coisas aparentemente coincidentes. E a esse conjunto de aparentes coincidências eu chamo de tramas no tempo, das quais extraímos tudo.
Além da Psiquiatria, qual era o outro gosto que lhe tocava?
Era fazer Lingüística. Não foi por coincidência que, ao estudar e ao me entregar ao problema da alfabetização, caí numa compreensão mais dinâmica, mais processual, mais dialética da linguagem. Nesse sentido, até recusando a falsa modéstia, eu diria que aceito que se diga “a alfabetização antes e depois de Paulo Freire”. É que eu trouxe para a compreensão da alfabetização uma dimensão histórico-social-lingüística que não existia antes. Ou melhor, que não era percebida.
Na proposta de alfabetização aparecem duas possibilidades frustradas de uma carreira: ora de psiquiatra, ora de linguista.
De todo modo, qualquer desses caminhos me teria trazido à prática educativa em que, na verdade, eu sempre me senti profundamente completo.
Essa opção que o senhor está contando agora já foi documentada antes?
Não, isso está sendo dito pela primeira vez. Eu não tinha como estudar Lingüística a não ser vindo para São Paulo, onde eu não teria condições de sobreviver. Aos 18 anos, a única saída foi me tornar um bom professor de sintaxe da Língua Portuguesa, dar aulas e acompanhar meus alunos particulares, com o que eu ajudava a família. Eu não podia sair de Recife mas gostava de estudar. A saída foi estudar Direito. Confesso que hoje, ao perguntar-me sobre o tempo vivido, tento encontrar sabores antigos no corpo do tempo que estou vivendo e descubro um certo gosto, por exemplo, nas análises filosóficas em torno do Direito. Lembro-me do prazer com que ouvia aulas dos professores discutindo filosoficamente o Direito, a Teoria do Estado etc.
E o senhor chegou a exercer a profissão de advogado?
Todo jovem tem sua turma, seus colegas mais próximos. Dois ou três de nós nos reunimos, alugamos um escritório e começamos a tentar trabalhar. Estudávamos, líamos, e claro que passamos todo um 5º ano sem ter nenhum cliente. Depois nos formamos, nos diplomamos e, um dia, apareceu um cliente para mim. A pessoa que me procurou era um credor. Era o secretário do dono de uma loja que tinha vendido um equipamento para o consultório de jovem dentista. O cara comprou e não pagou e cabia a mim então chamá-lo para discutir as possibilidades de pagamento e acioná-lo. Eu fiz uma cartinha e uma tarde um rapaz, que era da minha idade, chegou ao escritório, tímido, nervoso, e disse: “Realmente eu devo e não posso pagar. Sou recém-casado e tenho os meus móveis. O senhor pode acionar os móveis etc. O senhor não pode tomar nem os instrumentos de trabalho nem minha filhinha de um ano e pouco”. Era exatamente a idade da minha filha mais velha. Eu olhei para o moço e disse: “Olha você e sua mulher vão ter no máximo um mês de paz, porque daqui uns quinze dias eu vou devolver essa causa ao dono da loja que está lhe acionando. Ele vai passar mais quinze dias para achar um outro jovem como eu, porque isso não é causa para um advogado de renome. O sujeito lhe escreve e são mais oito dias. É uma pausa que você vai ter para a família”. Voltei para casa e Elza, minha primeira mulher, perguntou: “Como foi hoje no escritório?”. Essa é uma pergunta que, de modo geral, se burocratiza nas relações marido e mulher. A Elza não perguntava burocraticamente. Ela estava mesmo interessada em saber o que ocorria no escritório. Contei a ela a história, e que tinha encerrado a minha carreira de Advocacia. Ela riu, me beijou e disse: “Eu sabia que um dia isso ocorreria. O que você tem que fazer é Educação”.
O senhor também brigou com a profissão?
Ao contrário. Eu sou um homem profundamente convencido de que uma das formas de brigar para mudar as sociedades é tentar pôr em prática as leis que as classes dominantes, por tática, deixam ser aprovadas para nunca serem aplicadas. Portanto, não houve, na minha desistência, nenhuma negação do Direito.
A sua família tinha uma formação religiosa?
Meu pai era um homem realmente marcante. Morreu quando tinha 52 anos e eu, hoje, tenho setenta. Quando ele morreu eu tinha treze. É importante que eu diga que há momentos em que sinto como se ele estivesse comigo. Elza, só de me ouvir falar e descrever a figura do meu pai, tinha uma enorme admiração pelo velho. Quando nasceu nosso primeiro filho homem pusemos o nome de Joaquim Temístocles Freire Neto. Ele morreu com sete dias de vida. quando nasceu o segundo batizamos de Joaquim, que está vivíssimo, na Suíça.
Um grande músico…
Grande violinista. Nós pusemos de novo Joaquim Temístocles Freire Neto.
Voltemos ao seu pai, cuja influência marca até hoje.
Ele era espírita por opção, por amorosidade. Eu, por exemplo, aos nove anos, conheci Alan Kardec. Não li, mas ouvi meu pai lendo. Meu pai tinha uma pequena biblioteca espírita. Lia muito bem e escrevia em francês, uma façanha que eu não consegui, mesmo morando dez anos na Suíça. Minha mãe era católica. Meu pai jamais impôs sua religião quando predominava o patriarcalismo do Nordeste, o machismo da cultura nordestina. Ele nem sequer fazia restrições veladas à catolicidade da minha mãe. Lembro-me de que, por volta de 1928, houve uma coisa, que acho que hoje não existe mais, chamada Semana das Missões. Depois de comparecer a toda a semana, cheguei a meu pai, num sábado a tarde e disse: “Meu pai, amanhã vou fazer a minha primeira comunhão”. Veja bem, eu não perguntei, eu comuniquei. Ele me beijou a testa e falou: “Eu irei com você”. Ali ele foi um pedagogo e democrata. Mais do que uma prova de que me queria bem, ele me deu uma lição de que, se você respeita o outro, é preciso aprender a conviver com a diferença e poder lutar com o antagônico. No fundo não havia antagonismo nenhum entre a crença nascente, incipiente do filho de sete anos que ia fazer comunhão, convencido de que recebia Deus, e o seu desenho de mundo amoroso, feliz e fraterno. Ele me deu a grande lição da virtude indispensável ao educador progressista, ao revolucionário, que é a virtude da tolerância. É essa capacidade que eu tenho de, reconhecendo a diferença, conviver com ela desde que o sonho do outro coincida com o meu e, portanto, não nos faça antagônicos. Esse testemunho talvez seja a marca do velho sobre mim.
O senhor fala da individualidade?
Ao estar no mundo, você faz mais do que olhar e responder às coisas à sua volta por um sistema de comportamento pré-estabelecido. A questão da individualidade é fundamental ; os marxistas mecanicistas esqueceram isso. Ao negarem a importância da individualidade para ressaltar apenas o social dentro do qual afogaram o individual, eles terminaram por negar o papel substantivo da subjetividade na feitura da História. Nós, homens e mulheres, aprendemos muito mais do que apenas olhar; aprendemos a admirar, a espantar-nos diante do que vemos, a tratar a memória daquilo que ficou porque vimos antes, a estabelecer relações entre as coisas que se memorizam e as coisas que não foram ainda feitas. Descobrimos a razão de ser de coisas que são feitas hoje mas que estão ligadas a um remotíssimo ontem. No momento daquele ontem você não dispunha de um instrumental intelectual.
Essa aquisição é fundamental para o desenvolvimento da crítica. . .
Acontece que muitos de nós jamais adquiriram esse instrumental. À classe trabalhadora é negado o instrumental necessário para compreender mais criticamente a razão de ser de suas experiências anteriores. Nós, os intelectuais, é que vivemos escrevendo a história da classe trabalhadora porque ganhamos um instrumental que nos permite isso. E, porque fazemos isso, às vezes perdemos a humildade de perceber que apenas estamos procurando entender o que não fizemos e que foi feito pela classe trabalhadora. Quando eu falo dessa história do meu pai, obviamente que a presença dele foi fundamental durante o processo do meu amadurecimento, mesmo que dela não tivesse a consciência que tenho hoje. Mas aquela presença iria marcar minha forma de estar no mundo.
O senhor é filho de militar. Como é que alguém formado dentro da Polícia Militar de Pernambuco tinha esse comportamento democrático?
Meu pai era um riograndense do norte que, para ganhar a vida, terminou entrando para o Exército. Naquela época chamava-se “sentar praça”. Um sujeito estudioso, lido como ele, deve ter feito seus concursos. Foi primeiro-sargento do Exército e posteriormente chegou ao posto de capitão da Polícia Militar. Quando sargento namorou minha mãe. Ele passou mais ou menos seis meses passeando durante as noites de uma esquina à outra enquanto minha mãe o via da varanda de um sobrado velho do Recife, sem se falarem.
Seu pai tinha alguma atividade político-partidária?
Não. Mas tinha uma profunda simpatia pelo que chamava a valentia e a honradez de Prestes. Eu disse isso a Prestes, que estava presente quando recebi o título de cidadão do Rio de Janeiro e que a imprensa fez questão de não noticiar.
As coisas ficaram muito difíceis para sua família depois da morte de seu pai?
Não tivemos nada depois da sua morte com relação a coisas materiais, pelo contrário. Uma das dores maiores que eu carrego em mim ainda hoje é a dor de quando acompanhava minha mãe nas compras. Ela ainda era uma mulher jovem, bonita. Era obrigada a ouvir gracejos, ironias, sugestões desrespeitosas de bodegueiros e açougueiros de quem ia tentar comprar 250 gramas de carne fiado. Representou dor para mim, aos treze anos e até antes – com ele vivo ainda e sem saber – não ter possibilidade física de brigar contra as ofensas. Isso provocou, ao lado da dor que me acompanha, uma profunda intolerância ao desrespeito.
A formação da sexualidade é fundamental em educação. Como foi a formação do educador Paulo Freire?
É a primeira vez que me fazem essa pergunta! A questão da sexualidade sempre me impressionou. Na minha educação foi o único capítulo, talvez, em que as portas se fecharam. Um dia, devia ter uns doze anos, ao despertar, meu pai me chamou, não zangado, mas visivelmente contrafeito, e disse: “Paulo, meu filho, na noite passada, sonhando, você falou uns nomes feios… Essas palavras não podem ser ditas”. É muito interessante, do ponto de vista pedagógico, ver como não é possível coerência absoluta. A vida seria chatérrima se você fosse coerente o dia todo. Eu descobri que havia uma coisa falhando ali. Eu descobri um espaço proibido. E esse era o espaço da sexualidade, cujas explicações eu tinha que buscar fora.
E como foi essa busca?
Aos sete anos, brincando de pular corda, caí mal e fraturei o fêmur. Veio médico, aquela coisa antiga, com aquelas paletinhas de papelão, me puseram numa cama de cabeça para baixo, com três tijolos dependurados para fazer a distensão, coisas terríveis da medicina da época. No dia seguinte, quando chegaram as visitas eu disse: “quebrei a coxa”. Minha mãe, muito delicadamente, pediu que eu falasse “fraturei o fêmur”. Coxa é uma coisa que está muito próxima da geografia do pecado. A geração da minha mãe conheceu e pôde falar em tornozelo. A minha mãe falou em joelho. As mais jovens é que falaram no corpo todo. Ninguém vive bem sua sexualidade numa sociedade tão restritiva, tão hipócrita e falseadora de valores; uma sociedade que viveu a experiência trágica da interdição do corpo com repercussões políticas e ideológicas indiscutíveis; uma sociedade que nasceu negando o corpo. Viver plenamente a sexualidade sem que esses fantasmas, mesmo os mais leves, os mais meigos, interfiram na intimidade do casal que ama e que faz amor, é muito difícil. É preciso viver relativamente bem a sexualidade. Não podemos assumir com êxito pelo menos relativo, a paternidade, a maternidade, o professorado, a política, sem que estejamos mais ou menos em paz com a sexualidade. No fundo, sua pergunta é uma advertência para que assumamos, tanto quanto possível, o que estamos sendo.
O senhor pode falar das suas experiências de criança?
Essa é a primeira vez que eu vou contar isso e não tenho por que não dizer. A crise de 29 abalou o mundo e repercutiu no Brasil, afetando a economia. Minha família, que era de classe média, foi obrigada a deixar a casa em Recife para morar em Jaboatão, com uma idéia mágica de que saindo de lá as coisas melhorariam. No entanto, elas pioraram. Esse fato provocou uma mudança fundamental na minha vida. Meu universo cresceu. Eu morava em Jaboatão à beira de um rio que na época tinha peixe, camarão, onde eu pescava para comer e nadava. Em Jaboatão passei a ver lavadeiras incautas despindo-se para tomar banho depois que cumpriam a sua tarefa de lavar roupa. Tiravam a roupa e banhavam-se nas águas limpas do rio. Eu quero deixar muito claro que eu jamais aceitei a explicação de que a mulher violentada teve culpa porque expôs o seu corpo. Essa é uma tese machista, imoral, indecente, que eu recusei quando era menino ainda. Nada justifica a agressão. O único direito que eu tenho é o de admirar a boniteza do corpo que passa diante de mim.
E como se comportava o jovem Paulo Freire?
Às vezes me escondia em touceiras de arbustos, excitado. Possivelmente alguém encontrará aí certas razões que expliquem ao contrário a Pedagogia do Oprimido. Eu digo, desde logo, que nada disso tem a ver com a minha pedagogia. Sou um homem sensual. Essa sensualidade que me marca não tem nada de imoral, pelo contrário, é profundamente ética. É vida, é sinal de vida, é biofilia e não necrofilia. Às incautas lavadeiras nem pediria perdão mas diria: “que corpos bonitos vocês tinham! E como vocês mereciam uma vida melhor!” Eu fazia isso, vamos admitir assim, numa quarta-feira, numa quinta; no sábado ia me confessar. Normalmente eu levaria quinze minutos para chegar à igreja. Mas passava uma hora rodando para cá, para lá. Quando ia chegando minha vez na fila do confessionário, eu cedia lugar a uma senhora e ela me dizia: “que criança educada!”. Nada disso. Eu tinha era medo de confessar. Finalmente, chegava minha vez, não sabia para onde ir. Eu me ajoelhava e contava de novo a história. O padre, que era um grande maestro, um grande músico, entendia bem a situação. Me dava penitências pequenas; rezar uns três padre-nossos, três ave-marias. A volta para casa era uma maravilha. Eu saía pulando, correndo, cantando, assobiando, cheio de alegria; a esperança renascia, a certeza de que eu prestava voltava. No domingo eu jogava um futebol excelente; na segunda bem firme; na terça não muito, na quarta eu estava de novo na touceira à beira do rio.
E como isso refletiu no educador?
Essa pergunta coloca a questão do desejo. O educador não pode passar por cima dos desejos, não pode escondê-los, não pode traí-los, não pode punir o desejos, nem punir os que desejam. O que a pedagogia tem que fazer é compreendê-los, tentar ver os caminhos de solução legítima para eles. Ao abafá-los, negá-los ou discriminá-los estamos interditando o corpo. Eu continuo sendo um homem para quem a sexualidade não apenas existe mas é importante, fundamental. A minha sexualidade tem a ver com os livros que eu escrevo, com o amor que eu tenho à vida. Se, de repente, me sentir faltoso da sexualidade, o que vai acontecer um dia, espero já estar absolutamente preparado. Não foi por acaso que, quando secretário, abri as portas da secretaria a essa extraordinária mulher que é a Marta Suplicy, para que ela, com sua equipe, fizesse uma das melhores coisas que esse país já viu. Cerca de 5 mil adolescentes transaram a compreensão crítico-amorosa de seus corpos e, com isso, melhoraram seu desempenho com relação à História, à Geografia, à Matemática etc. É que no fundo a sexualidade, sem querer chegar a nenhum reducionismo, tem muito de centro de nós mesmos. Uma coisa é a sexualidade do fenômeno vital, do animal. A outra é a sexualidade que se inventa, que vira jogo, que vira brinquedo. O estudo da sexualidade não pode ser reduzido à pura descrição fisiológica do corpo. É, sobretudo, um grito em torno do direito de gozar. Eu nunca tinha dito isso. Foi bom dizer.
Como se deu sua entrada na área da Educação, deixando de ser advogado, nos anos turbulentos do pós-guerra?
No começo de 46 eu fui convidado para trabalhar no Sesi – Serviço Social da Indústria -, onde aprendi muito e experimentei coisas que, ainda hoje, considero importantes. Fui trabalhar como diretor da Divisão de Educação. Eu tinha sob minha responsabilidade toda a rede escolar chamada, na época, primária. Tem gente que só me entende como educador de adultos. Mas a minha experiência também foi com crianças em escola primária. Eu aprendi a fazer seminários de formação para professoras. Estes seminários precediam a realização dos círculos de pais e professores em que a gente se preparava enquanto escola para receber as famílias e discutir como melhorar a prática docente na escola e a prática pedagógica na família. Foi uma experiência imensa. Foi exatamente minha passagem pelo Sesi que, me dando campo para a prática, exigiu de mim o conhecimento dos educadores Piaget e Dewey. Quando se diz por aí que Dewey já era, que o brasileiro Anísio Teixeira já era, eu fico com uma pena horrível. Nada disso era, tudo continua sendo. Você não pode decretar o desaparecimento de um homem como Anísio Teixeira, por exemplo, da história da educação brasileira. Foi no Sesi que eu comecei a aprender a reunir as professoras para discutir os obstáculos que elas encontravam no trato com as crianças. Foi lá que eu fiz uma primeira pesquisa entre as famílias para saber como é que elas encaravam os castigos aplicados a seus filhos e filhas. Depois, passei a fazer uma jornada por todas as escolas que o Sesi mantinha, debatendo com as famílias a possibilidade de supressão dos castigos violentos.
Nessa época o senhor desenvolveu trabalhos com adultos?
Eu me lembro, por exemplo, de um período em que precisei trabalhar com pescadores. O Sesi também tinha um centro social na área pesqueira de Pernambuco e eu observei que nos meus primeiros encontros com os pescadores, nem os entendia bem. Então eu aproveitei um tempo livre, consegui uma casinha na praia e fui para lá com a minha família. Nessa época eu tinha apenas três filhas, a Madalena, a Cristina e a Fátima, que era a menorzinha. Ficamos lá um mês e eu com uma cadernetinha, repetindo, sem saber, o Guimarães Rosa, tomando nota das frases, das palavras que os pescadores usavam. Eu ouvia largas histórias dos pescadores e perguntava: o que quer dizer isso? Faz mal que registre? E explicava por que precisava registrar. Os pescadores não se sentiam ofendidos por minha curiosidade; eles se sentiam valorizados. Muitas vezes eu explicava que aquilo que eles diziam com tal palavra eu dizia de outra forma. Foi aí que se colocaram diante de mim, concretamente, certos problemas de linguagem; o problema da sintaxe, o da semântica, a estrutura do pensamento diferente e a significação das palavras dentro do contexto do discurso. Eu aprendi muito durante um mês de convivência com os pescadores. Houve uma coisa extraordinária. Antes eu “falava para” os pescadores, depois esse falar virou “falar com” os pescadores, porque eu usava todas as metáforas que tinha aprendido na praia com eles. A comunicação se fazia facilmente e eu podia colocar para eles, como desafio, questões muito sérias.
O senhor interferia na vida social da sociedade?
Eu me lembro, por exemplo, de que o índice de mortalidade de crianças nascituras era incrível. Eu fiz uma pesquisa com um médico e descobrimos que a parteira cortava o cordão umbilical com qualquer gilete que encontrasse. Morria a criança e a mãe também. Era uma aventura ser mãe nessa praia. Nós conseguimos instalar um posto médico nesse centro pesqueiro e uma parteira popular, que recebeu uma bolsa de estudos e aprendeu a trabalhar. Nós conseguimos que os materiais usados no parto fossem constantemente assepssionados e renovados a cada semana. Criamos um clube de mães e pais para ajudar o Sesi, porque o assistencialismo tinha que ser superado, o pescador devia pagar alguma coisa por aquele esforço. Os partos eram pagos por eles. Resultado: nós tínhamos um índice de 95% de mortalidade e diminuímos para algo em torno de 40% em poucos meses. Uma coisa fantástica. Eu me lembro de que quando ia falar sobre esses problemas, era entendido exatamente porque usava a linguagem do pescador.
E a Elza ia junto?
Ia sempre junto. Enquanto eu estava no Sesi, Elza estava na escola. Quando nos casamos, ela era professora do curso primário. Depois ela fez um concurso para diretora e um curso num dos melhores institutos da época em Pernambuco, o Instituto de Formação Permanente do Corpo Docente. Ela fez um curso que não era universitário mas tinha nível universitário. Saiu-se tão bem que passou a ser professora desse instituto. A contribuição da Elza foi enorme. Raramente ela não ia junto: só quando uma criança nossa adoecia, por exemplo. Como éramos jovens, chegávamos em casa à uma hora da manhã e no outro dia às sete ela estava no grupo sem problema. Quando ela me acompanhava, ficava calada, escutando tudo e depois me dizia: “hoje eu acho que você errou quando disse isso”.
Em linguagem psicoterapêutica o senhor levava um ego auxiliar?
Um ego auxiliar que teve uma importância extraordinária. Quando ela não ia, eu sentia falta desse suporte. As reflexões que ela fazia numa reunião de um dia, me ajudavam a não errar nos outros. Obviamente eu não aceitava as observações dela passivamente. Às vezes eu discordava. Às vezes ela dizia “você está discordando porque está sendo criticado”. Eu dizia: “não, não é isso”. Ela foi realmente muito importante, inclusive sugerindo leituras que tinha feito antes de mim.
A partir daí houve um reconhecimento do seu trabalho?
Chegou um momento em que eu comecei a ser conhecido na cidade de Recife como educador. Havia um dispositivo no Estatuto da universidade pelo qual, antes mesmo de fazer a tese, a universidade reconhecia em alguém o que ela chamava de saber notório. Eu requeri à universidade o “saber notório” no campo da Educação. Para mim era fácil provar essa minha presença pedagógica no Recife antes mesmo de ter aparecido nacionalmente com a questão da alfabetização. Fiz um concurso, fui contratado pela Universidade interinamente para ser professor de História e Filosofia da Educação no curso de Professorado de Desenho da Escola de Belas Artes. Eu era professor interino. Nesta época escrevi a tese “Educação e Atualidade Brasileira”. Esse trabalho foi muito bem estudado pelo Beisegel quando ele defendeu sua livre-docência, na USP. Ele a considera um dos melhores textos daquela época em termos de Brasil. Eu passei no concurso mas perdi a cátedra, que foi ganha por uma professora muito culta, muito competente. Ela ganhou o concurso com uma diferença de dois décimos, uma coisa dessas.
Foi a única vez que o senhor foi reprovado?
Não, não fui reprovado. Foi a única vez em que perdi um concurso, mas não fui reprovado. Não fui classificado porque houve uma classificação maior e, ao ser aprovado, mesmo não tendo ganho o concurso, tinha automaticamente o título de doutor. Por isso eu sou doutor em Pedagogia, de acordo com a lei brasileira, embora não tenha chegado ao doutoramento como outros homens da minha idade chegaram.
O senhor é doutor mais vezes, não é?
Eu tenho vinte doutoramentos Honoris Causa, dados por Universidades como a de Bolonha, Madri, Barcelona, Massachussets etc.
Quanto tempo o senhor ficou no Sesi?
Fiquei no Sesi dez anos, de 46 a 56.
E o senhor era getulista?
Não. Minha geração alimentava sonhos democráticos, experimentados na repressão do Estado Novo getulista. Viveu, inclusive, parte do tempo dos seus estudos sob a manipulação populista e ditatorial de Getúlio. Neste contexto ela vai, necessariamente, defender a liberdade, cair numa perspectiva liberal. E o que nós queríamos em 45, com exceção da turma já definitivamente de esquerda, era liberdade de dizer, de criticar, o que coincidia com os sonhos liberais. O desafio que se colocava a essa geração era da restauração de uma democracia liberal. Talvez por isso as classes médias estivessem apoiando o brigadeiro Eduardo Gomes contra Getúlio e as classes trabalhadoras – e o próprio Partido Comunista – tivessem ficado com Getúlio. Naquela época eu não entendia como é que o Prestes, que tinha tido sua mulher presa, deportada e morta, apoiava Vargas. A minha concepção da História era profundamente individual, e não social. Na época, Prestes teve uma baita consciência de classe. A sua era uma ética de classe, não individual. Ele tinha que superar a raiva que ele deveria ter de Getúlio, num momento histórico diferente. Para mim, isso era impossível e eu fiquei irritadíssimo com a posição de Prestes.
Voltemos à sua análise…
O desafio para nós era o do restabelecimento das liberdades públicas. A classe média foi para a rua, em 45, de lencinho branco. Eu também fui de lencinho branco, quando houve eleição.
A classe média saiu de lenço branco?
De lenço branco. Saiu porque o desafio que se colocava era o da sua liberdade. No momento em que o desafio histórico mudou e passou a ser o da presença mais participante da classe trabalhadora, dezenas de companheiros meus, que anos antes tinham estado na rua com um lencinho branco, romperam ideologicamente comigo, me considerando comunista, um sujeito subversivo e perdido. É que havia mudado o desafio histórico. Já não era mais o de uma restauração das liberdades individuais mas o da presença participante, política, das massas populares. A resposta já não podia ser puramente liberal; e teria que se aproximar das propostas mais radicais de transformação do mundo.
O senhor disse que, de repente, de liberal começou a ser taxado de comunista.
É que mudou o desafio que tínhamos depois da guerra, com a presença das massas populares reivindicando transformações fundamentais que possibilitassem ao país diminuir a “malvadez” com relação às classes trabalhadoras. Essa mudança foi substantiva. Antes, a reivindicação de liberdade individual era da classe média. No momento em que a classe trabalhadora mostrou que tinha alguma coisa a dizer, a classe média sentiu que perderia espaço. Então ela se fechou, se trancou e progressivamente passou a ter uma postura reacionária. E foi para as praças públicas com as passeatas de Deus, Pátria e Família.
Como é que esta sua prática educacional acabou provocando tanto ódio nas classes dominantes, mesmo sem que o senhor tivesse uma identidade clara com os setores ditos de esquerda?
É que às classes dominantes não importava que eu não tivesse um rótulo porque elas davam um. Para elas eu era comunista, inimigo de Deus e delas. E não importava que eu não fosse. Perfila quem tem poder. Quem não tem poder é perfilado. A classe dominante tinha poder suficiente para dizer que eu era comunista. É claro que havia um mínimo de condições objetivas para que eles pudessem fazer essas acusações. A fundamentação básica para que eu fosse chamado comunista eu dava. Eu pregava uma pedagogia desveladora das injustiças; desocultadora da mentira ideológica. Que dizia que o trabalhador enquanto educando tinha o dever de brigar pelo direito de participar da escolha dos conteúdos ensinados a ele. Eu defendia uma pedagogia democrática que partia das ansiedades, dos desejos, dos sonhos, das carências das classes populares. Essa pedagogia era mais perigosa do que o discurso sectário stalinista. Isso é óbvio. Do ponto de vista dos que deram o golpe de Estado, me pôr na cadeia foi uma atitude ideologicamente correta. Eu era aquilo que eles diziam que eu era. Eu não só era membro do PC, mas eu era um subversivo. Eles diziam que eu era um subversivo internacional. Eu não cheguei a tanto, mas era um cara de sonhos revolucionários.
De 56 até o golpe militar, o que aconteceu para acirrar esse ódio que o levou a ser considerado como um inimigo?
A passagem pelo Sesi e os meus estudos que se prolongaram num outro momento: o da criação do Movimento de Cultura Popular. Quando Arraes ganhou a prefeitura do Recife, ele convidou um grupo de intelectuais jovens da época, alguns artistas e também alguns líderes sindicais para um encontro com ele. Nós fomos ao gabinete do Arraes. E ele disse – se a memória não me trai – “Bem, eu ganhei a eleição, sou prefeito, e gostaria enormemente de trabalhar tanto quanto pudesse nessa administração; ter um trabalho de educação e de cultura ligado ao povo, às classes trabalhadoras. Não disponho de dinheiro, mas tenho a infra-estrutura da prefeitura que eu posso pôr à disposição. Conto com a colaboração de vocês intelectuais, a quem não posso pagar”.
Vocês aceitaram o desafio colocado por Miguel Arraes?
Todos toparam a proposta do Arraes e coube a Germano Coelho, para mim o maior ideólogo que tínhamos na época no Recife, fazer uma primeira proposta do que poderia ser o que Miguel nos pedira. Dez dias depois o Germano nos convidou para uma reunião. Já sem Arraes, ele colocou para nós a existência do que veio a se chamar Movimento de Cultura Popular. Nos antecipamos à UNE, a todo o país, com relação a esse tipo de compreensão da educação e da cultura populares. O Germano havia passado dois anos, creio, em Paris, fazendo um curso. Lá ele entrou em contato com o sociólogo francês Joffre De Mazellier que, na época, era presidente de um organismo chamado Peuple et Culture, que é exatamente Povo e Cultura. Germano passou por esse movimento e, sem dúvida, foi influenciado por ele.
O que era o Movimento de Cultura Popular?
Esse movimento se constituiu num extraordinário campo de pesquisa e de aprendizagem para esse grupo de intelectuais. Tudo que a secretaria municipal de Educação do Recife faz hoje como rede municipal estava nas mãos do Movimento de Cultura Popular, sob a liderança de uma das maiores psicólogas e educadoras que esse país já teve. Ana Paes Barreto, hoje com 85 anos e absolutamente lúcida, foi discípula de um dos fundadores da uma escola de psicologia brasileira no Recife, o psiquiatra Ulisses Pernambucano. A Anita era a coordenadora do Projeto de Educação Popular Infantil. Muita coisa que eu escuto hoje, aprendi naquela época, dentro do Movimento de Cultura Popular. Essa passagem pelo Movimento de Cultura Popular foi um prolongamento do que eu fizera no Sesi e abriu uma larga possibilidade de aprendizado e de gestação de uma teoria pedagógica. Me levou à criação, na Universidade, de um serviço que passou a se chamar Serviço de Extensão Cultural. Foi um trabalho extraordinário, com uma equipe que eu escolhi livremente. Faziam parte dela jovens como Luís de França Costa Lima, filho desse grande teórico da literatura brasileira, que é o Luís de França; teve o teatrólogo Ariano Suassuna, teve um grupo enorme de gente extraordinária hoje muito famosa no país e dentro do Recife.
O senhor deixou o MCP?
Eu o deixei mas não o abandonei. Conversei com o Germano e falei na possibilidade de estendermos a frente de briga. O MCP já estava bem forte, bem sustentado, era preciso ampliar, trazer as idéias do MCP para dentro da Universidade.
Como era o trabalho da MCP?
O MCP trabalhava com Educação Popular ao nível das crianças, dos adultos, trabalhava com teatro popular. O Ariano passou pelo movimento, mas certo grupo sectário da esquerda comunista estigmatizou o Ariano por considerá-lo liberal, veja que estupidez! Os projetos do MCP se entrelaçavam, não havia departamentos estanques. Naquela época nós fizemos um circo que era um teatro ambulante. Nós fazíamos um levantamento nos bairros periféricos do Recife para saber em que terrenos colocar o circo, sem pagar imposto. Pesquisávamos o custo do cinema mais barato da área para igualar ao preço do ingresso. Lotávamos os circos, o povo adorava. Levávamos peças muito progressistas, provocávamos os grupos populares a também fazer peças e propor artistas para serem trabalhados pela equipe de teatro. Outra coisa linda, era que durante a peça o povo participava, gritava, entrava na peça. Dizia: “passa a mão na cara desse sujeito”, entende? São lindas as expressões de vida que coincidem com a presença popular no processo histórico brasileiro.
Isso foi no começo dos anos 60?
Isso foi quando o Miguel Arraes foi prefeito. Houve uma fase intermediária, quando o Miguel largou a Prefeitura para se candidatar a governador. Entrou um prefeito reacionário e inimigo de qualquer coisa que cheirasse a povo: o Paulo Guerra. Ele começou a criar obstáculos ao MCP. Darci Ribeiro era ministro da Educação e eu telefonei a Darci e disse: “nós precisamos que você venha ao Recife dar apoio”. E contei a ele. Darci foi ao Recife, foi recebido pelo governador, que não tinha nada a ver com a gente, pelo reitor da Universidade, pelo prefeito que estava contra nós. Foi de noite para a Universidade e fez um discurso desses que ele ainda faz. Defendeu durante uma hora o Movimento de Cultura Popular. Foi um discurso fantástico, que deu segurança ao MCP até Arraes se eleger governador. Aí o MCP deixou de ser municipal e começou a se expandir nas zonas rurais do estado de Pernambuco. Ele fez o que tinha que ser feito na época. É isso que, às vezes, companheiros nossos não entendem quando começam com essa maluquice, essa guerra toda contra o Cieps porque os Cieps estão na cabeça do Brizola, em parte da cabeça e no corpo inteiro de Darci. Um político pós-moderno não pode ser estreito desse ponto de vista. Ele tem que fazer a crítica séria aos Cieps e não essa crítica maluca, boba, que às vezes se faz. Para isso, aliás, não contam comigo.
O senhor tinha militância político-partidária?
Não.
E como era a relação com a esquerda partidarizada, dentro de Recife e do Movimento?
As posturas sectárias e autoritárias sempre me fizeram arrepiar. Eu não reajo mal à ignorância mas sim à petulância pensando-se sábia. O autoritarismo me faz esquentar. E a experiência preponderante das esquerdas no Brasil era esta. No exílio eu disse isso ao Prestes e ao Giocondo Dias. O Giocondo Dias esteve em minha casa, em Genebra, não abertamente, conversando comigo antes do processo de reabertura, querendo ouvir minha opinião e o que eu achava do processo de retomada democrática do país etc. Lembro-me que ele foi muito humilde na sua autocrítica. Eu disse a ele: “Olha Giocondo, eu tive experiência na minha mocidade muito sintomática. Se o PC trabalha numa área popular, por exemplo, e durante algum tempo é o único cuja palavra ressoa dentro da comunidade, ele não aceita diálogo com nenhuma outra força. Seis meses depois ele descobre que tem outra força que chegou a ser mais ou menos ouvida. Ele trabalha com a outra força. Mas, se a despeito do seu trabalho, ele percebe que a nova força começou a crescer e que tem voz também, ele aceita o diálogo, mas para acabar com a outra voz”. Todo mundo que ler isso vai se dar o direito de dizer que Paulo Freire está mentindo, Giocondo nunca foi à casa dele. Ele morreu e não pode dizer nada. Mas que foi, foi e conversou comigo sobre isso, conversou. E ele disse que concordava comigo.
E a sua conversa com o Prestes, como foi?
Meses depois encontrei o Prestes. Tive uma longa conversa com ele num apartamento em Genebra. Eu fiz uma série de perguntas sobre a Coluna. Conversamos muito sobre o panorama brasileiro e ele já estava bem mais aberto do que tinha sido historicamente. Não foi por acaso que quando eu recebi o título de cidadão da cidade do Rio de Janeiro Prestes estava presente.
A militância partidária nunca atraiu o senhor?
O único partido que poderia ter me atraído era o Partido Socialista. Por várias razões ele não chegou a me tocar fortemente. Por outro lado, eu também não tinha, como continuo não tendo, características exigíveis para um certo tipo de militância que um partido como o PT exige. Eu não dou para ir para boca-de-urna, eu não dou para comício. O próprio Lula já descobriu. Ele insistiu, eu fui e foi um fracasso. Eu não sei falar para uma multidão, eu sei dar aula, eu sei discutir, mas não sei falar quando me põem diante de um palco, de um palanque para 10 mil pessoas. Fico falando como se estivesse na PUC. Naquela época, os partidos teriam feito exigências às quais eu não responderia.
E o PT?
Hoje, eu posso militar no PT e o partido não vem me pedir nenhuma dessas coisas porque sabe que eu não vou mesmo. Eu acho que sou útil a ele e que minha presença o ajuda. Quando me perguntaram porque o PT, eu respondi que tinha passado quarenta anos esperando por ele. Porque o Partido dos Trabalhadores na história política do país é o único que nasceu de baixo para cima; não é resultado de meia dúzia de intelectuais de bom gosto, de bom senso e de bom sonho, que traçaram um esquema de projeto socialista e começaram a tentar falar desse esquema aos operários. Pelo contrário, nasceu mesmo é da briga sindical, da luta pelos direitos da classe trabalhadora. A essa briga se juntaram alguns intelectuais, que não pretendiam ser donos da verdade revolucionária. Os que pretenderam ser donos da verdade revolucionária não foram bem recebidos pelo partido. O PT não estigmatiza os intelectuais mas rejeita os intelectuais metidos a proprietários da luta de transformação do mundo. Essa foi uma das razões fundamentais pelas quais me tornei militante nessa idade. Quando voltei da Europa, já estava filiado ao PT. Fui um dos fundadores. O Moacir Gadotti, por procuração, assinou minha filiação.
O senhor não era religioso?
Eu tive uma formação cristã-católica. E alguns comunistas estreitos me recusaram por causa dessa formação católica. E alguns católicos tão estreitos quanto esses comunistas me recusavam pela minha conivência com Marx. Eu nunca neguei a minha camaradagem com Cristo e nunca neguei a contribuição de Marx para melhorar a minha camaradagem com Cristo. Marx me ensinou a compreender melhor os Evangelhos. Quem me apresentou a Marx foi a dor do povo quando eu trabalhei no Sesi, quando eu fui menino do mundo, dos rios de Jaboatão, foi a miséria, a deterioração física, a morte. Sou um pedagogo também dessa revolta, da indignação. Fui a Marx e não descobri razão nenhuma para não continuar minha camaradagem com Cristo. Mas eu não sou um homem religioso. Sou muito mais um homem de fé do que um religioso. A minha fé se funda sobretudo na crença da existência de um Deus, que não é o “fazedor” da minha história, mas é uma presença na História dos homens e das mulheres, na minha crença de que Deus não mente, Cristo não mente. Eu estou no mundo acreditando numa transcendentalidade que eu não dicotomizo, não separo da mundanidade. No fundo, eu vivo dialeticamente a História e a Meta-História, sem jamais admitir a ruptura entre elas. É isso que eu acho que a pós-modernidade tem que aceitar. Um partido de esquerda que recusa um homem ou uma mulher, pelo fato deste não negar a sua crença numa transcendentalidade, é um partido que deve fechar. É tão pouco democrático que não tem o que fazer.
E a Teologia da Libertação?
Eu discordo do papa, acho que é muito retrógrado. E não tenho por que negar isso. Mas não posso deixar de salientar minha relação com todo o movimento da Teologia da Libertação. Recentemente recebi um convite do Peru para discutir a Teologia da Libertação, a Política Pedagógica, sobretudo pela marca que dizem eles que eu deixei na Teologia da Libertação, na obra, por exemplo de um Gustavo Gutierrez.
Toda vez que a sua história é relatada, o período mais enfocado é o do exílio. Nós conhecemos muito o que o senhor aprendeu nesse período. E o que o senhor não aprendeu nesses anos de exílio?
Eu sabia que o exílio significava uma ruptura. Era uma espécie de corte e implicava, necessariamente, um aprendizado difícil de, continuando vivo, lidar com um contexto novo. A realidade do exílio é sempre uma realidade que você toma de empréstimo; porque não está podendo experimentar-se na sua realidade original. Você tem que fazer o aprendizado da outra realidade sem esquecer o seu contexto anterior. No fundo, quando você aprende a viver num contexto de empréstimo recusando-se a esquecer o de origem, você não aprende a viver sem ele. Esse foi o meu melhor aprendizado. Para alguns exilados o problema foi não se ocupar no contexto de empréstimo, tentar fazer política só com relação ao contexto anterior, o que não era viável. Você não pode transformar o Brasil em Genebra. Eu procurei me ocupar no exílio para poder me preocupar com o Brasil. Aproveitei o tempo para aprender nas minhas passagens pela África, Ásia, Austrália, Nova Zelândia, Pacífico Sul, América Central.
O exílio é martírio ou troféu de guerra?
Eu acho que não é uma coisa nem outra. Houve brasileiros que na volta ao Brasil quiseram dar a seus corpos e caras a marca da gente que, tendo sofrido o martírio do exílio, teria privilégios na volta. Esquecidos de que não teríamos voltado se não fossem os exilados internos, se não fossem as lutas daqueles que, tendo ficado, se arriscaram muito mais do que nós que saímos. Eu não quero dizer que eu devesse ter ficado. Ficar teria sido ingenuidade. Mas o fato de eu ter saído me tirou da arena da briga. Outros que puderam ficar entraram nessa arena, muitos deles morreram aqui, para que eu voltasse depois. Na minha volta eu não tinha por que pensar em ter privilégios. Também não é um martírio. É uma dor, o exílio é sofrimento. Ele vira martírio se o exilado não tiver competência emocional, científica, política sobretudo. Uma das sabedorias do exilado é ter clareza política suficiente para não permitir que a dor vire martírio. Eu conheci muita gente que conseguiu fazer isso e tenho a alegria de também ter conseguido. Eu voltei para o Brasil inteiro, inclusive mantendo meu sotaque nordestino, apesar de todas as interferências lingüísticas que sofri.
O que representou para o senhor – pernambucano – estar na Prefeitura de São Paulo sob o comando de uma paraibana?
Foi uma coisa realmente fantástica. Aceitei o convite que a Erundina fez porque não tinha direito de dizer não depois de toda a vida que tinha vivido, depois das denúncias que fiz, de ter escrito o que escrevi. Para dizer não, teria que tirar os livros que escrevi do prelo e não escrever mais. Eu precisava continuar escrevendo e falando.
Por que o senhor não permaneceu na Secretaria?
Ter aceito não significava necessariamente ficar até o fim, mas dar um testemunho durante um período bom de dois anos e meio. Assisti aos primeiros encontros que Erundina fez, pude ouvi-la, vê-la discreta mas com energia, sem ser autoritária mas jamais aceitando licenciosidade. Testemunhei a coragem cívica da Erundina, a lucidez, a maneira correta, a advertência criteriosa a qualquer servidor, qualquer auxiliar que estivesse ultrapassando os limites. A autoridade, a forma como se entrega apaixonadamente ao sonho de fazer o mundo menos malvado, me fez ter por Erundina uma imensa admiração, uma confiança inabalável. Eu aposto nessa mulher como uma das expressões mais claras, mais lúcidas e competentes de políticas que podem sonhar em mudar este país. Eu vejo a Erundina com muita disponibilidade para transformar o país de cima para baixo e de baixo para cima. Às vezes eu tenho saudade do período em que eu ficava sempre muito calado, escutando os companheiros, aprendendo como fazer uma administração democrática realmente.
0 senhor foi feliz?
Fui imensamente feliz. Evidentemente que entre essas alegrias eu também tive minhas raivas, minhas decepções, minhas tristezas, mas não há como escapar disso. O que você tem que fazer é não deixar que a razão de ser da raiva e da tristeza perdurem demais. Nós vivemos muito mais momentos de alegria do que de raiva e tristeza. A raiva também é importante para poder vir a alegria. Sem estouros de raiva você não constrói a alegria. Quantos estouros de raiva a Erundina tem por semana! Ela precisa disso para poder gerar essa alegria enorme. A Erundina prova que administrar seriamente, administrar lucidamente, administrar com respeito às massas populares é dever de qualquer progressista e não tarefa de administrativistas.
Como o senhor vê essa crise do socialismo?
Eu acho que a gente tem que dar umas respostas a um certo tipo de discurso liberal modernizante e por isso mesmo até tradicional já que vive falando na morte das utopias, na morte da História, na morte do sonho. Que vive defendendo o que se chama de posições pragmáticas, segundo as quais deve-se aceitar o que está feito porque já está feito e não adianta brigar contra o que está feito porque brigar contra o que está feito é uma forma romanticista de encarar a História. Isso é falso, é a renúncia. É esse discurso que termina por sugerir que Marx morreu, que não há que pensar mais em socialismo. Eu recuso esse discurso porque o meu sonho e a minha utopia têm que estar absolutamente vivos. Acho que nunca tivemos na História um momento mais cheio de possibilidades, de esperança e de sonho do que esse, em que se esfacelou, diante de nossos olhos estupefatos, um modelo que escondia mentiras e que agora exige de nós a invenção real do socialismo dentro de uma moldura democrática. O que há de positivo na experiência capitalista não pertence à natureza substantiva do capitalismo, e sim à moldura democrático-burguesa em que nasceu, e na qual se encontra. Na essência ele continua tão ruim quanto sempre foi. E a criação do socialismo passa pelo crescimento democrático, pela compreensão do que é liberdade, pela compreensão da necessidade da autoridade enquanto constitutiva da própria liberdade, pelos limites que se impõem. Imagine-se, agora, o quanto errados estavam alguns companheiros quando no começo de nossa administração nos acusavam de puros gerenciadores de uma burocracia.
Fonte: Memória: Entrevista Paulo Freire | Fundação Perseu Abramo – Teoria e Debate, publicado em 14/4/2006.
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